Navegando nos rios voadores

A bordo de um monomotor Sertanejo, fabricado em 1985 no Brasil, o aventureiro Gérard Moss está realizando, desde agosto de 2007, sua mais nova maratona aérea. Mas, desta vez, não são aventuras como a volta ao mundo que realizou durante 980 dias, de 1989 a 1992, acompanhado por sua mulher, Margi Moss, com o mesmo avião; ou outra volta ao mundo, mas em vôo solitário pilotando um motoplanador, realizada em 2001; ou então a passagem pelos quatro extremos das Américas, uma epopéia realizada em 1997, sempre com o Romeo, nome dado ao Sertanejo, que o levou ao sul do Chile, ao norte do Canadá, ao extremo oeste do Alasca e finalmente a Ponta Seixas, na costa da Paraíba. Agora, Gérard Moss se transformou em um caçador das correntes de vapor d’água que circulam pela atmosfera, de Norte a Sul, chamadas rios voadores. Sim, um dos mais conhecidos pilotos aventureiros do Brasil, com milhares de horas de vôo, está voando atrás de um dos fenômenos menos conhecidos, mas mais intrigantes da atmosfera, as correntes de ar que carregam, sob a forma de vapor d’água, um volume de água equivalente à vazão do Rio Amazonas e seus espantosos 200 mil m3/s de água despejados no Oceano Atlântico.

Esse novo desafio, e que mostra o ângulo científico e ambientalista do aviador, é na verdade uma espécie de novo filho do projeto Brasil das Águas, realizado de 2003 a 2004, junto com Margi, a bordo de um hidroavião, o Talha-Mar, transformado em uma espécie de laboratório de coleta e avaliação das águas de todas as bacias hidrográficas do Brasil, de Norte a Sul e de Leste a Oeste. O mais acurado retrato – tanto em termos de imagem quanto na quantidade de material coletado – das condições das águas dos rios, lagos e baías de todo o Brasil resultou, primeiro, na realização de um novo projeto, o Sete Rios, no qual Gérard e Margi se concentraram no estudo das populações ribeirinhas dos rios Araguaia, Rio Grande (na Bahia, um dos afluentes do São Francisco), Miranda, no Pantanal, Ribeira (SP), Ibicuí (RS), Verde (MT) e Guaporé (RO). Os dois trabalhos, feitos com o Talha-Mar e com apoio da Agência Nacional de Águas (ANA) e da Petrobras, além dos ministérios da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e da Defesa, atraíram a atenção da comunidade científica para as experiências e a disposição para aceitar desafios e empreitadas difíceis de Gérard Moss. Ele conta que participou da Conferência Mundial sobre Mudanças Climáticas em outubro de 2006, em Manaus, relatando as experiências vividas nas duas fases do Brasil das Águas. “Foi a primeira vez que ouvi falar do conceito dos rios voadores e da importância que a umidade trazida pelos ventos do Norte do País tinha para o clima e o regime de chuvas do resto do Brasil”, conta.
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Ainda na reunião, Gérard se deu conta de que poderia oferecer a cientistas como Enéas Salatti, Antônio Nobre, José Marengo e Reynaldo Luiz Victoria, entre outros, não só a ferramenta capaz de coletar amostras de vapor d’água dos rios voadores ao longo de milhares de quilômetros no caminho entre o Norte e o Sul do Brasil, mas servir de ponto de integração entre as várias pesquisas que os cientistas faziam, como a do uso de isótopos para estudar a origem do vapor d’água e das chuvas, o estudo do fluxo das águas e pesquisas meteorológicas e de mudanças climáticas. “Acho que esse é o grande mérito do projeto, unir pessoas que trabalhavam em áreas diferentes em torno de um objetivo comum”, explica. A preparação do projeto durou muitos meses até que, em agosto do ano passado, os primeiros vôos foram feitos com o renovado Romeo, que já está no seu terceiro motor. Equipamentos especiais para coleta e armazenagem das amostras de vapor foram desenvolvidos, com o primeiro teste sendo feito de 23 a 26 de agosto. “Voamos na região de Piracicaba, em São Paulo, no litoral paulista e sobre o Oceano Atlântico, fazendo coletas de teste a 500, 1.000 e 1.500 metros de altitude”, conta Gérard. Equipamento aprovado, a segunda etapa foi realizada de 9 a 15 de setembro. A partir de Brasília, onde Gérard mora hoje, o Romeo passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso e Rondônia. A etapa seguinte foi realizada na Amazônia, de 19 a 28 de outubro, já buscando detectar e estabelecer os padrões da umidade vinda do Oceano Atlântico e que entra no País pelo Pará.

Navio a vela: A equipe de Moss percorreu 7 mil quilômetros em uma semana, uma média de três horas por dia. As medições de umidade do ar eram feitas a cada dez segundos, captadas pelos aparelhos do lado de fora do avião

 
Encerrada a fase dos testes, tanto do equipamento quanto do próprio manejo do avião no meio dos rios
voadores, Gérard, seguindo os mapas e as projeções dos supercomputadores do Instituto Nacional de Pesquisas Aeroespaciais (Inpe), voou por Pará, Amazonas, Amapá, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins de 27 de novembro a 5 de dezembro do ano passado. “Nós percorremos grande parte do trajeto dos rios voadores, comprovando que tínhamos grandes possibilidades de fazer, na prática, o que se imaginou na teoria”, explica. Finalmente, depois de detalhadas análises e das previsões feitas pelos cientistas do Inpe, usando os mesmos computadores empregados nas previsões do tempo, Gérard e sua equipe, formada por Tiago Iatesta e Júlio Filardi, decolou de Brasília rumo a Palmas, no Tocantins, e de lá para Belém, no Pará. Estava começando uma maratona que percorreu 7 mil quilômetros, desde o Norte até Piracicaba. “Foi sensacional. Seguimos a rota prevista pelos computadores e ‘navegamos’ todo o tempo no trajeto de um rio voador”, conta. De 4 a 11 de fevereiro, Gérard e sua equipe voaram uma média de três horas por dia, sempre acompanhando a corrente de ar, como se, em vez de no bravo Romeo, estivessem a bordo de um navio a vela. Pior, sempre variando de altitude, de acordo com as medições de umidade que eram feitas a cada dez segundos pelos equipamentos. A captação é feita no lado de fora do avião, com o vapor sendo conduzido por uma tubulação especial até uma máquina onde a amostra é congelada, com gelo seco, em um tubo de vidro. Cabe a Tiago fazer a operação de congelamento do vapor e a troca e o armazenamento dos tubos que são depois levados para análise no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), em Piracicaba.

Gérard conta que, quando o Romeo finalmente pousou em Piracicaba, a sensação foi de sucesso total. Toda a teoria sobre o comportamento dos rios voadores foi comprovada. “Mais ainda, a opção de usar um avião se mostrou a ideal”, lembra Gérard. Com a análise das amostras, será possível determinar qual a porcentagem, por exemplo, da umidade que chega ao Sudeste, que vem do mar, da Amazônia e de outras regiões. A expectativa é que, com a análise dos dados, seja possível detectar alterações no volume de umidade circulando pela atmosfera, a sua origem, e se realmente estão ocorrendo reduções no volume, por causa da interferência humana no solo, por exemplo. O coordenador científico do projeto, Enéas Salatti, afirma que estudos já realizados mostram que 44% da umidade que gera as chuvas no Sul e no Sudeste vem mesmo da Amazônia. O que a Expedição Rios Voadores pode mostrar é se o desmatamento da Amazônia poderá, no futuro, afetar a chuva nessas regiões. Gérard acredita que uma comprovação dos efeitos do desmatamento no meio ambiente não apenas da Amazônia poderá forçar até mudanças nas políticas de ampliação da fronteira agrícola e na preservação da região. Quando se pensa em desenvolvimento sustentável, em sustentabilidade, esse tipo de dado pode se revelar decisivo. “As maiores hidrelétricas do país, por exemplo, estão no Sudeste e no Sul, onde, aliás, estão os principais consumidores e produtores”, alerta.

E não se pense que, por estar desenvolvendo atividades de caráter científico, os vôos de Gérard Moss com o Romeo – o Talha-Mar tem servido de avião de apoio, participando de coletas de água nos rios – não incluem riscos. No mês passado, entre os dias 12 e 15, Gérard saiu de Brasília rumo ao Pantanal Mato-Grossense. O objetivo foi acompanhar a chegada de um rio voador à região, que também, a exemplo da Amazônia, gera boa parte da umidade de suas chuvas. Só que, além disso, vinda do Sul, estava chegando uma frente fria que, ao encontrar com o rio voador, provocou grandes tempestades e chuvas torrenciais. “Primeiro, no domingo, cruzamos todo o Pantanal até Foz do Iguaçu, colhendo amostras do rio voador. E depois viemos voando rente à frente fria e às tempestades, desviando de CBs (cumulus nimbus, nuvens carregadas de chuva) e coletando amostras todo o tempo”, comenta. Gérard recorda que, na segunda-feira, depois de terem voado 5 mil quilômetros, decolaram às pressas de uma fazenda em Miranda, onde tinham passado a noite, no meio da frente fria. De lá até Corumbá, o Romeo sacolejou nas bordas da tempestade, mudando de altitude com freqüência. O pouso em Corumbá foi feito por instrumentos, pouco antes de o aeroporto fechar de vez. Na verdade, o Romeo, por dentro, tem equipamentos e aviônica semelhantes aos de um grande jato comercial moderno. Gérard explica que, para o tipo de serviço que o projeto pede, não poderia ser de outra forma. “Esse é um velhinho muito jovem”, afirma, referindo-se ao companheiro de mais de 25 anos. Em princípio, a Expedição Rios Voadores deverá estar concluída em dezembro. Mas tudo indica que será prorrogada. “Vamos ter de repetir todas as rotas, para checar se o comportamento dos rios voadores se mantém ou começa a ser afetado por mudanças ambientais em terra”, conta. Gérard deverá fazer o próximo vôo saindo do Oceano Atlântico, no litoral da Bahia, e acompanhar as correntes impulsionadas pelos ventos de Leste, que formam outro grupo de rios voadores. A data, no entanto só será definida pelos computador do Inpe. “A verdade é que temos de ficar o tempo todo prontos para voar”, comenta, com um sorriso de satisfação.


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