Estou em frente à Casa Rossa, na pequena vila de Montagnola, Suíça, onde o escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962) viveu os últimos 40 anos de sua vida. Vim passar dois dias de agosto nessa localidade e conhecer alguns dos cenários descritos em seus livros. Agora, faz semanas que estou pensando na minha vida.

Hesse esteve a meu lado no momento exato em que dei de cara com a realidade, encerrando os idílicos tempos da infância. Confesso que naquele tempo outros romances de alta voltagem existencial também se apresentaram como farol, entre eles os de William Burroughs, Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregory Corso e John Fante. Era a geração beat que procurava, entre barris de cerveja, a droga máxima para o espírito livre. Mas a literatura de Hesse me tocou mais. No final da década de 1960, eu queria viver a vida e as aventuras de Emil Sinclair, Siddhartha, Eva, Max, Demian, Narciso, Pistorius, Piktor, Harry Haller, entre os muitos personagens do escritor que ali nasceram e com quem mantive profunda convivência na juventude.

Não havia em suas obras o folclore dos livros on the road, do mapa da mina, e tampouco dicas de autoajuda. Havia, sim, a obstinação pelo ser livre e por encontrar a própria alteridade. Sua missão talvez fosse a de ajudar os outros a chegarem a si mesmos, obrigando-os a criar regras próprias de conquista, obedecer aos próprios desejos e ter coragem de seguir um caminho próprio. “O importante é a vivência”, como reiterou Hermann Hesse em seus últimos dias de vida.

Mesmo no calor sufocante de meio-dia do ferragosto suíço, eu não arredava pé dali, em frente à sua antiga residência. Quase não se vê mais a casa, pois está encoberta pelos arbustos de seu amplo jardim. Enquanto Hesse morou ali, uma placa na entrada se sobressaía: “Não visitas”. Isso mesmo: curto e grosso.

Teria ele sido sempre antissocial? “Não!”, diriam seus poucos amigos. Mas queria paz para poder pensar e trabalhar. E como trabalhava! Não por menos, na década que viveu em Basileia, mudou de casas 17 vezes. Uma porque o sino da igreja o incomodava de meia em meia hora, outra porque era perto da universidade e os alunos ruidosos o faziam perder a concentração. Essa foi uma das razões que fizeram Hesse se transferir para Montagnola, na época uma simples vila rural com paisagens marcantes.

Para Regina Bucher, estudiosa do escritor e diretora do Museu Hesse nessa cidade, ele era um tremendo de um strong work. “E muitos de seus personagens têm essa característica.” Ela reforça: “Observe uma das frases finais do seu livro O Último Verão de Klingsor, no qual se lê ‘… Estou trabalhando, não posso conversar. As pessoas sempre falam demais. Não se zangue comigo’. Ou ainda, quando amigos lhe indicaram a localidade de Monte Verità, perto de Montagnola, onde pessoas, que pensavam como ele, estavam criando uma comunidade. Hesse foi, voltou alguns dias depois e disse: ‘São pessoas legais, que querem viver em paz, são vegetarianos, mas não são trabalhadores’, e não quis se unir a eles, pois se declarava um grande trabalhador”.
Foi mais além. No interior de sua casa, o escritor reservou uma ala para seus aposentos e não permitia a entrada de ninguém. Só seu médico particular tinha uma chave. Nem a mulher tinha vez  e, com ela, suas conversas eram trocadas por bilhetinhos passados pela fresta da porta: “Se você descer à cidade e encontrar aqueles chocolatinhos de que eu gosto, compre”, diz um deles, em exibição no Museu Hesse.

Sagrado e profano
Continuo ainda estacado em frente ao portão. Eu e as estátuas dos deuses gregos Pólux e Castor que ladeiam a entrada e, sem dúvida, não foram escolhidos a esmo. Na mitologia, esses deuses gêmeos não queriam estar separados e assim passam metade do ano no inferno e a outra no Olimpo. Tal ambivalência se traduz nos livros de Hesse, que sempre entrelaçam o real e o sonho, o sagrado e o profano, o catolicismo e o paganismo, a lucidez e a loucura. A transigência e a transgressão.

Em seu universo literário, cujo discurso cristalizou o gênero “à procura do autoconhecimento”, e hoje floresce nos filmes de “estrada”, na minha época atraía os hippies sessentistas californianos, os mochileiros em busca da luz do Oriente, os motoqueiros rebeldes da contracultura. Os inquietos e inconformados.

Mas Hesse não era um loução. Seus livros não dão moleza para o leitor, exigem leitura atenta, releitura, reflexão e certa bagagem cultural. Hesse, Prêmio Nobel em 1946, deixou poucas entrevistas e, em uma delas, na década de 1950, comentou sobre seus livros: “Eu me sentiria contente se alguns de meus leitores pudessem perceber que as histórias que conto procuram conduzir à redenção”.  Assim definiu o escritor Otto Maria Carpeaux: “O caminho de Hesse foi de sucessivas autolibertações através de revoltas contra o jugo e os tabus da escola, da família, da religião, da sociedade burguesa e do Estado que querem se impor”.

Hermann Hesse nasceu em Calw, uma região de vales e desfiladeiros.  Segundo Armgard Sasse, guia cultural especializada no autor, na época tal natureza fazia eco na mentalidade estreita e rude dos moradores da região. Seu pai era missionário protestante, sua mãe severa demais. Daí, talvez, tenha nascido sua desobediência. “Arde em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida desregrada”, escreveu no prefácio de um de seus livros. Sua mãe rezava para que Deus a ajudasse a criar o filho e a colocá-lo na linha. É dessa época um registro fotográfico bem elucidativo, que vale mais do que mil palavras, no qual se vê a família do escritor. O austero pai, a mãe com um ar sinistro, uma irmã apática, um irmão (que mais tarde viria a se suicidar) em um cavalinho de pau, e Hesse, aos 10 anos, com ar arrogante e desafiador.

Ele era um homem complexo, emocionalmente problemático, cuja vida nem sempre foi feliz ou tranquila. Na verdade, desde a infância até o dia de sua morte conheceu poucos momentos de paz. Carregou a fria estampa da displicência para com as três mulheres com quem se casou, de ter relegado a criação de seus três filhos, cada um, nas mãos de amigos e de escassas amizades. Quase manda tudo pelos ares, luta contra as forças contrárias à vida. E enfim, ousa ser.

As aquarelas e a vida
Começo a descer as vielas de Montagnola em direção à primeira casa de Hesse, a Casa Camuzzi, onde no último andar ele alugou um apartamento. Gostava de “casas especiais”, e essa era uma delas. As janelas emolduravam uma paisagem ampla, que incluía as montanhas e o Lago de Lugano. Foi nessa residência que o escritor, naturalizado suíço, começou a desenhar suas primeiras aquarelas, a partir de uma sugestão de Carl Jung que, em 1921, lhe enviou um telegrama, dizendo: “Os sonhos que você me contou me fazem entender quão urgente é seu caso”. “A pintura o salvou quando tinha perdido sua confiança como escritor”, explica Bucher, e acrescenta: “Ele era uma pessoa muito depressiva, mas nas aquarelas dizia que mostrava seu lado ensolarado, feminino e a alegria de viver”.

Sobre elas, Hesse confessava: “Colocar muitas emoções em palavras, em uma folha de papel, é mais difícil. Com desenhos e cores pode-se exprimir muito mais sentimentos”. Portanto, as aquarelas descortinam uma nova maneira de entendê-lo.

Hesse poderia muito bem ser personagem de Hermann Hesse, e foi. Foi Harry Haller, em O Lobo da Estepe, seu mais conhecido romance e, sem dúvida, uma biografia. O personagem pertence àqueles que se comprimem entre dois mundos, os que vivem à margem como um outsider, àqueles cujo destino é sofrer a incerteza de um mundo preso a convenções inoportunas e na condição de um membro de manada. “Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e uma satânica, duas naturezas, uma do homem outra do lobo”, escreve em uma passagem do livro.

Junto-me agora à jornalista e crítica literária alemã Karin Grobmann – que também veio a Montagnola atrás de Hesse – para uma pausa no Grotto del Cavicc, um dos locais preferidos do escritor, no interior de um bosque. Chega-se lá depois de uma boa caminhada para, como ele, saborear queijo fresco de cabra, pancetta, salame, presunto, um prato de cogumelos recém-colhidos, acompanhado de polenta de farinha de grão-de-bico, típica da região de Ticino. Tudo ao sabor de um bom copo de vinho da Alsácia.

Como um homem tão difícil, amargo, descontente consigo mesmo, antissocial pôde escrever livros que fascinam milhões de leitores? Karin responde: “Você não gosta de ler os livros, dele? Então…”.


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