Nenhum brasileiro vive aqui. Apesar disso, milhares de residentes se dizem brasileiros. E com razão. Eles, afinal, nasceram no Brasil. Ou melhor, em Brazil. Isso mesmo: no Brasil com z, uma cidadezinha de Indiana, Estados Unidos, a 101 quilômetros de Indianápolis, e que está se esvaziando aos poucos.

Quem nasce em Brazil é Brazilian, definição idêntica – em inglês – para quem nasce no Brasil da América do Sul. “Nasci aqui, portanto, sou brasileiro. E com muito orgulho”, diz Kenneth Turner, 76 anos. Seus olhos, de um azul intenso, quase saltaram de órbita por trás das espessas lentes de seus óculos, quando ele soube que estava conversando com “um brasileiro original” – como ele próprio logo definiria o repórter.
[nggallery id=15718]

“Você não imagina a minha emoção neste momento. Aqui estou, cuidando da memória deste Brazil que insiste em existir, que luta para não morrer, e de repente me aparece alguém do Brasil que, pelo que sei, está renascendo. É o Brasil moderno visitando o Brazil decadente”, diz Turner, visivelmente emocionado.

Ele é o guardião do pequeno, mas bem conservado, museu da Historical Society de Brazil, onde estão objetos e documentos de seu passado de glória, quando a mineração de carvão e a indústria de argila e cerâmica eram suas grandes fontes de riqueza. Numa das paredes estão penduradas as bandeiras dos Estados Unidos e do Brasil. Entre elas, no piso, há um pequeno mostruário com velhas cédulas e moedas de cruzeiros e de cruzados, cartões-postais do Brasil, uma foto do ex-presidente Juscelino Kubitschek, e a primeira página de alguns jornais obtidos em consulados brasileiros nos Estados Unidos.

“Não podíamos deixar de ter algo do país que nos emprestou seu nome, não é?”, pergunta Turner. “Afinal, a maioria das pessoas que passam por aqui quer saber por que adotamos o nome de Brazil, quer saber se temos algo a ver com o país”, justifica.

O nome surgiu quase por acaso. Pode-se dizer que nasceu “de ouvido”. Owen Thorpe, um negociante que via no desbravamento do oeste uma fonte de riquezas, decidiu montar um grande armazém de secos e molhados, que também vendia ferramentas, além de um saloon para animar os trabalhadores que viviam em acampamentos naquela área pontilhada de minas de carvão.

Chegou a ferrovia. E com os negócios prosperando, Thorpe sentiu a necessidade de enviar e receber correspondência. Mas o governo só se dispunha a fornecer esse serviço, instalando um posto de correio, se ali houvesse pelo menos um assentamento. Depois de negociar com as mineradoras, o comerciante criou o povoado em 1844. E decidiu dar a ele um nome diferente. “Ele queria algo que soasse bem diferente. E os jornais da época traziam notícias relatando conflitos de fronteira do Brasil com alguns vizinhos. Thorpe achou que o nome tinha um som agradável, era diferente, e então decidiu batizar o povoado como Brazil”, conta Turner.

Brazil ganhou o status de município em 1866. A sua população, que chegou a atingir 40 mil pessoas, hoje é de meros 8.188 habitantes. Eles ocupam um território de 8,7 quilômetros quadrados. A cidadezinha tem apenas uma maternidade, mas possui três cemitérios. O gradual esvaziamento, no entanto, não se justifica pelo índice de óbitos, que é menor do que o de nascimentos. Ele se deve ao crescente desemprego e à falta de perspectivas para os jovens, que alimentam o êxodo.

Turner é um sobrevivente da época de ouro, quando as minas de carvão produziam como se fossem infinitas, e a indústria local da argila e da cerâmica – na qual ele trabalhava – tinha prestígio nacional, produzindo utensílios domésticos e tubulações para água e saneamento que eram vendidos em todo o país. O plástico a desbancou e a condenou à morte. O carvão se extinguiu. Sobrou a produção de leite. Uma fábrica de trailers de carga (a parte traseira das carretas), que empregava mil moradores de Brazil, mas, em dezembro passado, devido à atual crise financeira do país, demitiu 200, promoveu uma nova debandada de residentes.

A situação econômica contém uma agravante: apenas 4,2% da população tem curso superior ou profissional. Com mão-de-obra de baixa qualificação, as grandes empresas não se animam a instalar unidades aqui. E isso complica a vida também do comércio local. “Eu ainda estou conseguindo manter meu negócio, mas não sei até quando. Além do desemprego crescente, há o preço da gasolina, que sobe diariamente e torna tudo mais caro. Por enquanto, apesar do aumento dos custos, estou conseguindo segurar os meus próprios preços, para tentar manter a freguesia”, diz Jackie Wilson, dona do Brazil Coffee Company, o único café da cidade, onde ela também produz pães e bolos.

Treze por cento das famílias de Brazil estão abaixo da linha de pobreza. Treze por cento do total das residências são chefiadas por uma mulher sem marido ou companheiro. Além disso, 18,5% dos menores de 18 anos e 12,8% das pessoas acima de 65 anos vivem na miséria. A renda média de uma família é baixa para os padrões americanos: US$ 2.600 mensais. A nacional é de US$ 4.020.

Só se vê movimento na rua principal de Brazil, e basicamente de veículos. E isso graças ao fato de que ela é, na verdade, um trecho de uma rodovia – a U.S. Highway 40, aberta em 1835 para ligar o leste ao oeste americano. Como foi a primeira estrada federal a cruzar o país de ponta a ponta, ela era denominada National Road – e, por isso, em algumas partes da cidade a prefeitura fincou placas com os dizeres: “Bem-vindo à histórica Brazil”. Ela hoje é, na verdade, um corredor onde raramente alguém se detém.

O comércio anda às moscas. Várias lojas foram à falência. O cinema local, que nem nome tem, está quase sempre vazio. Diversão quase não há, tirando um boliche, a pesca em rios e lagos das redondezas, e a caça nas florestas da região. Os jovens se juntam nos fins de semana e vão de carro para Terre Haute, 26 quilômetros a oeste, em busca de bares e danceterias. Os mais idosos vão ao bingo semanal na lanchonete McDonald’s – artifício que seu gerente encontrou para tentar aumentar a clientela.

Isso porque aqui essa rede perde longe para a pequena lanchonete Eddie’s, criada em 1931, e que está sempre lotada graças aos hambúrgueres preparados na hora, com carne fresca da região, a preços bem melhores. O seu lema – “Small Place, Big Taste” (lugar pequeno, grande sabor) – diz tudo. “Nos fins de semana ficamos apinhados, e há filas de gente comprando pra comer lá fora”, diz Eddie Jr., que herdou o negócio do pai e ali trabalha desde adolescente. A grande atração aos sábados e domingos é a competição para ver quem é capaz de comer mais.

“Na falta do que fazer o pessoal vem pra cá”, conta ele. É preciso engolir a carne e o pão numa sentada só. A casa fornece água. Na parede atrás do balcão há dois quadros. Num deles, o Hall da Fama, estão fotos polaróides dos recordistas – que levam de prêmio US$ 50 e uma camiseta da Eddie’s. O mais recente conseguiu consumir 30. No outro está o Hall da Vergonha, com fotografias de quem se aventura e, no final, não consegue comer mais de 12.

As crianças se divertem com os pais jogando beisebol, fazendo piquenique e nadando na piscina pública do Forest Park, em cuja entrada está fincado um presente que o governo do Brasil enviou em 1954 como símbolo de amizade: o Chafariz dos Contos, uma réplica exata da fonte de mesmo nome erigida em Ouro Preto, em 1745. Os pedaços de granito, já devidamente moldados, chegaram do Brasil em caixas que ficaram empilhadas até 1956, quando a cidade finalmente montou o chafariz depois de fazer uma coleta de US$ 13 mil para pagar os pedreiros.

Uma vez por ano, no dia 1º de outubro, data de fundação de Brazil, todo mundo sai às ruas para participar do Festival da Pipoca, realizado nessa data em homenagem à cidade e, ao mesmo tempo, a um de seus cidadãos mais famosos: Orville Redenbacher, um próspero empresário do setor agrícola, nascido ali (e falecido em 1995, aos 88 anos), e que tornou realidade uma obsessão que tinha desde criança: desenvolveu o que é considerado o tipo de milho ideal para pipoca, que passou a levar seu nome. O rosto de Redenbacher aparece nos pacotes desse milho vendido em supermercados em todo o país.

A cidade tem outros dois “brasileiros” nacionalmente famosos. Um deles é Jimmy Hoffa, polêmico ativista sindical que presidiu a Irmandade Internacional dos Motoristas de Caminhão, Bombeiros e Pilotos de Aviação nos anos 1950 e 1960. Condenado por fraude a 13 anos de prisão, ele acabou tendo a pena perdoada pelo presidente Richard Nixon depois de cumprir sete anos. Filho de um mineiro de carvão de Brazil, Hoffa usava suas conexões com o crime organizado para, através de um esquema de venda de proteção, obrigar empresas a contratar apenas trabalhadores sindicalizados.

Até hoje não se sabe exatamente que fim levou Hoffa. Ele desapareceu em julho de 1975, aos 62 anos, quando estava a caminho de se encontrar num subúrbio de Detroit com dois chefões da Máfia daquela cidade e de Nova York. Hollywood produziu vários filmes sobre a história de Hoffa, o mais exitoso deles (de 1992) tinha o seu sobrenome como título, e ele foi representado por Jack Nicholson. O outro personagem famoso de Brazil é uma mulher, Brittany Brown – atriz de filmes pornôs conhecida pelo nome artístico de Jordan Star.

Esse Brazil é de maioria branca: 97,8% da população. Há apenas 49 negros na cidade, e uns poucos hispânicos e asiáticos. Apesar de pequena, a cidade mantém um detalhado e preciso banco de dados a respeito de si mesma. Ele contém registros inusitados, como o fato de que 0,2% das residências é formado por casais de lésbicas. O registro de homens gays é igual a zero: não existem ou ainda se mantêm dentro do armário. “Disso nunca se ouviu falar por aqui”, afirma Terry Harrison, o chefe de polícia.

A cidade conta com apenas 12 policiais, e parece não precisar de mais do que isso. O seu trabalho é tranqüilo: “Às vezes chega a ser monótono”, diz ele. Nos últimos seis anos não aconteceu um assassinato sequer. No entanto, apesar de ser um lugarejo pacato, de vez em quando há assaltos, arrombamentos de casas e roubos de carros. O mais recente caso de estupro aconteceu em 2004. Não tem havido mais, aparentemente, pela vigilância que Harrison e sua equipe mantêm sobre 25 indivíduos registrados como “predadores sexuais” que vivem em Brazil. O cuidado é tão grande que sua identidade não é segredo para ninguém: uma lista com seus nomes e respectivos endereços está num site da internet, com acesso livre.
Raramente aparece uma notícia policial nas páginas do jornal da cidade, The Brazil Times, cuja equipe é formada por dois editores e três repórteres. O diário, de 14 páginas (três repletas de anúncios classificados de todo o condado) se mantém há 115 anos e, além de sua versão impressa, tem um site próprio (www.thebraziltimes.com) e oferece ainda uma edição eletrônica para seus assinantes. “Sobrevivemos graças ao nutrido noticiário local”, disse o editor-executivo, Jason Moon, referindo-se a pequenas reportagens sobre a vida escolar local, noticiário das seis paróquias religiosas e de competições esportivas amadoras regionais.

A prefeita, Ann Bradshaw, conta com 86 funcionários – incluindo policiais, bombeiros, pessoal do serviço de água e esgoto e recolhimento de lixo -, que compõem uma folha de pagamento mensal de US$ 168 mil. Como o dinheiro anda curto, volta e meia a população é convocada para um mutirão, como o que aconteceu semanas atrás. Michele Altman, a administradora de planejamento da prefeitura, pediu – por meio de anúncio no jornal – que a população fosse para a rua principal de Brazil munida de pincéis, brochas, vassouras e sacos plásticos de lixo para ajudar a embelezar a cidade, varrendo-a e pintando a beira de calçadas e faixas de pedestres no asfalto. “Esperamos que, deixando a cidade bem limpinha, possamos incentivar o crescimento dos negócios e, assim, estancar o êxodo”, diz Michele.


Comentários

5 respostas para “Brazil, Indiana”

  1. Se o dólar fosse um pouco mais em conta seria um bom lugar para passar a aposentadoria…

  2. Nem os brasileiros de lá estão aguentando o Brazil

  3. Avatar de Renato Miranda
    Renato Miranda

    Reportagem muito legal e informativa! Moro nos EUA e descobri a existência dessa cidade hoje e resolvi pesquisar mais.

  4. Avatar de Mauro Luiz de Oliveira
    Mauro Luiz de Oliveira

    very nice Brazil

  5. Avatar de Patrícia Carvalho
    Patrícia Carvalho

    Eu morei aí “as an exchange student”..great place! 🙂

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.