Assistir a uma aula do programa de alfabetização que Silvana lidera na Biblioteca Pública do Queens é quase como dar a volta ao mundo. As histórias se multiplicam como os países: Equador, Afeganistão, México, Bangladesh, Peru, Paquistão, China, Índia, República Dominicana. Silvana trabalha na região mais internacional de Nova York. Uma região que os turistas que vêm para Manhattan não costumam visitar. O Queens abriga imigrantes de 190 países. Aqui se falam 160 línguas. É nesse universo de culturas tão diferentes que a brasileira comanda um time de 21 professores e assistentes que tem como objetivo alfabetizar famílias. Não é tarefa fácil, já que mais da metade dos mais de 2 milhões de moradores do Queens fala outra língua em casa.
Ao chegar à sala de aula encontro Silvana compenetrada, lendo as histórias que a mexicana Juliana escreveu. “Esta sobre minha avó foi toda inventada. Eu nunca a conheci, mas meus filhos me pediram que eu escrevesse algo e imaginamos uma história.” Quando Silvana passa para o texto seguinte, as lágrimas começam a jorrar dos olhos de Juliana. “Esta é verdadeira”, diz, ao reler junto com a professora brasileira a história de sua própria infância. “Eu gostava tanto de ir à escola, era boa aluna em matemática, adorava matemática, mas meus pais não tinham dinheiro para o uniforme e um dia fui barrada na porta. Sem uniforme não podia estudar. Comecei a trabalhar na feira.” Juliana continua visivelmente emocionada. Silvana segue escutando com a mesma atenção com que ouvia as histórias do pai.
[nggallery id=15716]
“Por ser imigrante, por meus pais terem sido pobres, por eu ter tido de sair de escolas devido às mudanças da minha família de cidade para cidade, eu entendo o que eles passam, não existe tanta diferença assim entre a minha história e a desses imigrantes. Claro, tive mais sorte e consegui estudar. O maior problema que pode acontecer numa sala de aula é a distância entre professores e alunos, e isso aqui não acontece”, garante Silvana.
No ano em que passou na Inglaterra, a brasileira fez o que muitos jovens fazem quando vão estudar inglês fora. Trabalhou como babá, foi camareira de hotel, vendia – e “comia” – sorvete, acrescenta, ao lembrar os tempos de dinheiro curto no início da vida de imigrante. Nessa época, passou pelos Estados Unidos e, apesar de não ter nenhuma intenção de parar “na terra de todos os gringos”, acabou se apaixonando por Nova York. Era a década de 1980 e de lá para cá foram muitos anos entre Brasil e Estados Unidos, com direito até a passagem pelo Amazonas, onde trabalhou com tribos indígenas.
Mas foi em Nova York que estudou lingüística aplicada e começou a dar aula em alfabetização de adultos. Em 2001, virou coordenadora do programa de alfabetização para famílias da Biblioteca do Queens. A idéia é que os adultos aprendam o inglês, se alfabetizem e sejam capazes de ajudar os filhos na escola. O programa começou no estado americano do Kentucky na década de 1980 e hoje existe em todo o país.
Silvana inovou, introduziu a câmera e o vídeo em classe e suas aulas são sempre filmadas. “Usamos a própria história do aluno para desenvolver o programa de ensino. A introspecção é importante no processo de aprendizagem: quem eu sou, de onde venho, o que quero como pai, mãe, trabalhador(a), imigrante? São perguntas que estimulamos o tempo todo. Eles têm histórias de vida muito difíceis e sofridas, infâncias tenebrosas. A câmera ajuda como ferramenta de reflexão para eles se mirarem, acreditarem que podem fazer algo, ganharem auto-estima.”
Em média, todos os anos 300 famílias participam do programa de alfabetização e pré-escola. Mães trazem os filhos menores para a sala de aula e as famílias aprendem juntas a ler e escrever. “Estamos sempre fazendo questionários, checando o desempenho não só dos pais, mas também dos filhos nas escolas. Observo que o bom desempenho das crianças está diretamente relacionado com o nível de escolaridade das mães.” Entre os alunos, não há estudantes brasileiros. “A impressão que tenho é que o brasileiro que vem para os Estados Unidos tem, em média, um nível de escolaridade maior do que os imigrantes que nos procuram”, explica.
Silvana me apresenta a equatoriana Maria Mizhquiri, mãe de quatro filhos e que há quatro anos, quando começou a estudar, não sabia uma palavra de inglês. “Eu nasci aqui no programa, antes estava morta. Estava desaprendendo até o espanhol, ficava trancada em casa vendo TV, não conseguia ajudar meus filhos na escola, não entendia o que os professores deles diziam. Não via nem futuro nem esperança para eles. Pouco a pouco fui juntando as palavras, aprendendo a ler e a escrever.”
Hoje tudo mudou. Maria é assistente de professor, assim como outras 12 mães que foram alunas do programa de alfabetização. O seu maior triunfo foi quando um dos filhos ganhou o primeiro lugar na feira de ciências da escola. Ela mal podia acreditar. O marido, que antigamente não queria se envolver com nenhuma atividade de casa, hoje participa junto com ela da educação das duas meninas e dos dois meninos. Na conversa, Maria diz que um dos seus sonhos era estar com um jornalista e contar sua história. E promete se encarregar de tirar uma foto de toda a família com o livro que escreveram juntos e enviar por e-mail. Os alunos aqui também aprendem a usar computadores e internet.
“Uma mãe de Bangladesh me disse outro dia que as aulas a ajudaram a descobrir quem ela é. Você pode imaginar o impacto na vida de um casal que vem de Bangladesh, onde os papéis do homem e da mulher são bem definidos, para Nova York, onde não há nada definido”, comenta Silvana. “Ser alfabetizado representa uma guinada na vida dessas mães e desses pais. Do modo como trabalhamos, o que eles têm a dizer é tão importante quanto o que nós temos a ensinar. Eles estão lutando pela sobrevivência e isso tem de ser levado em conta na aprendizagem.”
A recompensa do trabalho de Silvana Vasconcelos é diária. Está em cada nova história, em cada livro que as famílias escrevem juntas, em cada pequena vitória dos imigrantes do Queens. O melhor exemplo do que ela significa na vida desses anônimos estrangeiros está nas palavras da mexicana Vilma, de 11 anos, filha de uma das primeiras alunas do curso, Nube Guaman. Quando a mãe lhe pergunta o que a menina quer ser quando crescer, Vilma não demora nem um segundo para responder: “Quero ser como a Silvana”.
Deixe um comentário