Aceitam-se Sampaios

Thiago Vinicius Paula, analista de crédito da comunidade Jardim Maria Sampaio, na zona sul de São Paulo

Jardim Maria Sampaio, zona sul de São Paulo. O músico Fernando Rangel, Nando, preparava o almoço. O filho Davi esperava, quando a boca do fogão apagou. A época não era das melhores. O dinheiro estava contado para botar comida na mesa, e botijão de gás a R$ 35 não estava nos planos. Morador do bairro há alguns anos, Nando tinha feito amizade com um pessoal ligado a cultura e movimentos sociais. Thiago e Rafa, envolvidos com uma moeda social, insistiam para que Nando visitasse o banco comunitário, na sede da União Popular de Mulheres de Campo Limpo e Adjacências, a UPM, ou Casa da Mulher. Nando não queria saber de bancos. Mas, naquele dia, juntou RG, CPF e comprovante de residência e seguiu até lá. Foi até os fundos, em um puxadinho onde, desde 2009, funciona o escritório do Banco Comunitário União Sampaio. Falou da necessidade e nem tocou nos documentos que carregava. Pediu 35 sampaios, mas levou 50 em notas coloridas. Entregaram uma lista de lojas onde Nando poderia gastar a grana e deixaram a assinatura do contrato de empréstimo para quando pai e filho estivessem de barriga cheia.

O União Sampaio é um dos cinco bancos comunitários constituídos em São Paulo no ano de 2009, a partir da iniciativa do Banco Palmas e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego, para a formação da Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Há três anos, o Palmas, primeiro banco comunitário do País, conseguiu recurso para a criação de novos bancos com o objetivo de expandir para outras regiões do Brasil a ideia de manter a riqueza local circulando nas próprias comunidades. Na época, a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo (ITCP-USP), como representante regional do projeto, mapeou cinco comunidades em São Paulo para implantar o projeto e iniciar a capacitação de pessoal. Os encontros ensinaram não só tecnologia e processos para o funcionamento do banco – softwares de gestão, fichas de análise e contratos –, mas também o princípio da economia solidária.

Thiago Vinicius Paula, analista de crédito da comunidade, observa que o ITCP-USP chegou com a teoria e se deparou com a prática. “Usar roupa dos primos mais velhos, bater laje junto com o vizinho. Tudo isso é economia solidária. Minha mãe é banco comunitário”, diz, lembrando as vezes em que ela emprestou dinheiro para as amigas procurarem emprego. Aos 23 anos, ele é a cara do banco perante comerciantes e comunidade.

O banco surgiu de forma quase orgânica na UPM, considerando que fortalecer financeiramente as mulheres é um requisito para estruturar quem precisa superar uma situação de violência doméstica, por exemplo. Além delas, idosos constituem a maioria dos clientes do crédito de consumo. Também são oferecidos empréstimos sem juros para as emergências do dia a dia.

Inversão de valores
Mais do que meramente assistencialistas, os bancos comunitários mantêm a riqueza local dentro da comunidade. O crédito de consumo é a base, mas é preciso conquistar os comerciantes para que a moeda circule. Surge então, como isca, o crédito produtivo. O dono da loja interessado em melhorar o negócio, fazer uma reforma ou aumentar o capital de giro pode solicitar empréstimos até R$ 1 mil. Nesse caso, o crédito é liberado em reais e com juros de até 2,5% ao mês. “Não desconfiamos das pessoas da comunidade porque estamos 24 horas com elas. Existe um sentimento de pertencimento grande”, diz Thiago, que faz a análise socioeconômica – geralmente uma visita ao estabelecimento – antes de liberar o dinheiro.

Dia desses, ele foi até a Dina Bacana Modas, no Jardim Rosana, vizinho ao Maria Sampaio. Eliane Freitas Silva, de 24 anos, está no último ano de Administração e é irmã de Jailson, estilista  conhecido de Thiago. Os irmãos investiram em um ponto novo para a loja, em uma avenida movimentada, mas as economias foram levadas por aluguel adiantado, pintura e reformas. Era preciso refazer o capital de giro, e o crédito produtivo seria a saída perfeita.Munido das fichas de análise, Thiago explicou que a entrevista é parte do processo. “Como não consultamos Serasa e SPC, avaliamos a relação comunitária da pessoa.” Eliane respondeu a uma série de questões, até que chegou a pergunta: “Tem interesse em aceitar sampaio?”. Ela desconhecia a moeda e desconfiou ao saber que o dinheiro só circula no bairro. Thiago se esforçou: “Muita gente bate lá no banco para emprestar dinheiro. Indicamos: ‘Ó, a loja da Eliane aceita sampaio’. O sistema mantém o dinheiro na comunidade, perto da gente, entendeu?”.

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Trabalho de convencimento
A loja vende roupas com preço máximo de R$ 29,90 e ainda é um comércio informal. Tem pouco tempo no atual endereço e lucro médio mensal de R$ 2 mil. Jamais teria condições de acessar um serviço de crédito convencional. A ficha preenchida à mão, as informações prévias e as impressões colhidas no contato pessoal são levadas à reunião do Conselho de Análise de Crédito (CAC), realizada às quartas-feiras no escritório do banco. “Preciso saber quem é a pessoa. Você empresta para quem não conhece?”, pergunta Thiago.

O trabalho de convencimento também funcionou com o açougueiro Silvestre Rodrigues de Oliveira, um dos primeiros comerciantes a se filiar ao banco. “No início, era como se abrisse uma conta no banco mesmo antes da existência da moeda”, conta o dono, Silvestre, que recebe diariamente de 30 a 50 sampaios. “Quando o comerciante percebe que está girando mais, quando o cliente chega perguntando se aceita sampaio e deixa de fazer a compra por não aceitar, o comerciante vai, naturalmente, procurar o banco para aderir”, prevê Thiago.

No Center Vai-Lá, loja de construção de Marcos Menezes, 33 anos, o giro do sampaio chegou a 400 no mês. Para estimular o uso da moeda, ele oferece 5% de desconto à vista no sampaio, enquanto em real o desconto é de 3%. Para ele, o sampaio ajuda a montar uma freguesia fiel. Por isso,  quando o banco recorreu ao site de crowdfunding Catarse para arrecadar recursos e aumentar o poder de empréstimo do crédito produtivo, Marcos converteu parte do que havia vendido em sampaios em doação ao banco. “Os comerciantes sabem que, se acumular mais lá no banco, melhora a condição para eles”, diz Thiago. Ao fim da campanha, o banco arrecadou R$ 20 mil, destinados ao crédito produtivo e ao Fundo Popular de Fomento à Cultura.

Com o fim do prazo do edital que criou o banco em 2009, por meio do ITCP-USP, Thiago, Edmilson e Rafael, funcionários do banco, permaneceram trabalhando em caráter voluntário. Um ano depois, nova chamada pública do SENAES foi lançada e o Núcleo de Apoio às Atividades de Extensão em Economia Solidária (NESOL) ficou responsável pelos bancos da região Sudeste. Um repasse de quase R$ 2,2 milhões foi destinado aos bancos comunitários. A verba permitiu a manutenção dos cinco bancos criados em 2009, contratações e pagamentos de salários e a inauguração de mais uma dezena de bancos.

Na visão de Thiago, o fato de intermediários receberem dinheiro para repassar a uma ação da periferia é um problema. “Temos uma burocratização dos processos, onde uma universidade tem de me representar, um CNPJ tem que me representar.” Rafael Mesquita, envolvido na criação e manutenção do União Sampaio desde o início, acredita que o melhor caminho é a descentralização dos editais, que, hoje, passam pela representação regional. “O problema é que o fomento aos bancos comunitários pode virar um negócio para alguns.” Por isso, a sugestão da rede de bancos comunitários é transformar essa ideia em política pública.

Na Venezuela, por exemplo, que buscou intercâmbio de experiências com o Banco Palmas, a ideia virou lei. Enquanto a Rede Brasileira tem perto de cem bancos, a Venezuela passava dos cinco mil em 2011.

A deputada Luiza Erundina (PSB-SP) apresentou, em 2007, o Projeto de Lei Complementar 93 que cria o Segmento Nacional de Finanças Populares e Solidárias, mas até hoje a iniciativa não virou lei. A expectativa é de que uma nova chamada pública seja lançada no final deste mês de janeiro. As dificuldades técnicas atingem o próprio SENAES. Uma chamada pública aberta aos cem bancos resultaria em cem convênios, e a secretaria não teria estrutura de pessoal e financeira para esse volume. “O rito para criar o convênio é o mesmo para um projeto com recurso de R$ 1 ou de R$ 1 milhão”, afirma Antônio Haroldo Pinheiro Mendonça, coordenador-geral de Comércio e Finanças Solidárias do SENAES.

Não há um marco legal da economia solidária. Há o reconhecimento das moedas comunitárias pelo Banco Central, mas a ausência de regulamentação dificulta a captação de recursos. Após o primeiro ano de funcionamento, o União Sampaio passou por um período difícil. Não fossem os funcionários assumirem postura voluntária por  meses, o banco teria sumido. Segundo Rafael Mesquita, para o banco se fortalecer é preciso vislumbrar a rede de projetos que articula ao seu redor.

Riqueza cultural
É como se existisse uma holding, a comunidade, representada pela UPM , que tem sob seu guarda-chuva empresas que mantêm a sustentação financeira do grupo. Daí surgiu a Agência Popular Solano Trindade, braço cultural do banco. A percepção de ampla demanda pelo crédito voltado a produtos culturais foi o estopim para o surgimento de uma rede de projetos que se retroalimenta por meio de outra moeda, o solano. A agência nasceu como um investimento do União Sampaio. O crédito produtivo e o Fundo Popular da Cultura são a base do fomento e comercialização de produtos culturais de artistas independentes, que recebem entre 200 a 300 solanos ao se cadastrarem na agência.

Se o sampaio mantém a riqueza econômica da comunidade, o solano ajuda a expandir a riqueza cultural do local. “A criatividade sempre esteve aqui, a dificuldade era financeira. Quando criamos um dinheiro nosso, rompemos essa barreira”, afirma o músico Nando.

O Banco União Sampaio não é projeto assistencialista, mas um movimento que faz nascer visões críticas em um ambiente onde a criatividade é movida pela necessidade de encontrar meios de sobrevivência.


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