Um casal americano ligado no Brasil

Inspiração – Rose Lewis e Gary Neeleman em frente à primeira locomotiva da Amazônia, de 1878, no Museu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Porto Velho, Rondônia. A construção da ferrovia é tema do livro Trilhos na Selva

O americano Gary Neeleman conheceu o Brasil antes mesmo de se tornar correspondente internacional da United Press International, a UPI, em São Paulo. Nascido em uma família de mórmons, Gary esteve no País pela primeira vez quando tinha apenas 19 anos, justamente em missão religiosa. Mas apaixonou-se pela terra. Apaixonou-se também por Rose Lewis, com quem se casou e teve sete filhos – três brasileiros, entre eles David Neeleman, fundador e CEO da companhia aérea brasileira Azul. Essa estreita aproximação (e paixão) com o Brasil motivou Gary e Rose a pesquisarem relações históricas entre o Brasil e os Estados Unidos. O primeiro resultado desses estudos está no livro Trilhos na Selva (BEI Editorial, 2011), escrito pelos dois, que resgata a história da ferrovia Madeira-Mamoré, a primeira grande obra de engenharia americana feita fora dos Estados Unidos, na Amazônia, no início do século 20. O casal agora se prepara para lançar um segundo título (também pela BEI) sobre a saga dos confederados americanos, que migraram para o Brasil após perder a Guerra Civil Americana (também conhecida como Guerra de Secessão), em 1864. Mas as pesquisas não terminam aí e um terceiro livro já está em produção. Esse vai narrar, por meio de documentos históricos, alguns recém-descobertos, parte do acordo feito pelo então presidente Getulio Vargas de fornecer matéria-prima às forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial.

“Getulio era muito esperto”, diz Gary. “Pretendia habitar a Amazônia, pois estava preocupado com a vulnerabilidade geográfica da região, ressuscitando o comércio da borracha, que há tempos não rendia nada para o Brasil. Com a vantagem de ainda se colocar do lado certo da história, sem botar a mão no bolso.” Para tanto, Getulio recrutou, em 1942, 55 mil brasileiros para produzir, nos seringais da Amazônia, cem mil toneladas de borracha por ano para os aliados.

Fugindo de uma grave seca que atingiu o País naquela época, nordestinos se alistaram como voluntários na tarefa do presidente. Mas, no lugar de riqueza e progresso, encontraram fome, escravidão, doenças e miséria. Dos 55 mil homens, pelo menos 30 mil morreram e ficaram conhecidos como “soldados da borracha”.

Hoje

Gary e Rose vivem em Salt Lake City, capital do estado de Utah. No antigo centro comercial da cidade, aos 77 anos, Gary ocupa o cargo de cônsul honorário do Brasil. Foi convidado por Rubens Barbosa, ex-embaixador do País em Washington, para exercer a função. “Pelo conhecimento que tem do Brasil e pela disposição em ajudar nosso País, tive o prazer de sugerir Gary ao Itamaraty.” Porém, Barbosa garante ter sido claro ao informá-lo que a função não era remunerada e, portanto, voluntária. Além do título e do brasão, Gary foi advertido que receberia também muitas dores de cabeça.

Foi o que aconteceu dia desses, quando ele se sentiu sitiado pela burocracia. A caixa-postal do escritório transbordava de mensagens de brasileiros aflitos, que cobravam o paradeiro de seus documentos. Pouco mais de uma semana antes, um consulado itinerante atendeu cerca de 500 brasileiros residentes na região, que queriam colocar em ordem seus documentos. Mas, como houve falha e morosidade na transferência de dados a Brasília, o trabalho de Gary e equipe ficou comprometido – alguns funcionários tinham saído de Los Angeles, a embaixada brasileira mais próxima de Salt Lake, para ajudar no evento.

No escritório do consulado, objetos e fotos dão pistas sobre o casal. Em uma das prateleiras, uma estatueta do personagem de O Amigo da Onça, do cartunista Péricles de Andrade, repousa ao lado de uma réplica da aeronave Embraer 190 (uma miniatura da JetBlue Airways, a companhia aérea americana de David Neeleman, que antecedeu a Azul). Em frente às bandeiras americana e brasileira, dispostas cruzadas, há uma antiga máquina de teletipo da UPI – lembrança dos dias em que Gary foi correspondente.

Rose está compenetrada entre pilhas de papéis, usando um headset e trabalhando agilmente em seu computador. “Queria, na minha idade, ter a energia que eles têm”, diz Andrew Moura, aluno da Universidade de Utah e estagiário do escritório.

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A juventude

Por tradição, mórmons reservam recursos para financiar a missão religiosa que os filhos irão cumprir no final da adolescência. Quando foi convocado para servir em missão no Brasil, onde a religião é difundida pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Gary estava pronto – ele tinha passado a infância se preparando para esse ritual de passagem. Partiu para o Brasil, país até então desconhecido, em 1954, quando uma viagem desse tipo tinha algo de odisseia. Da nativa Salt Lake City, aos 19 anos, ele cruzou os Estados Unidos a bordo de um trem para Nova York. De lá, atravessou o Atlântico em um navio que o levou ao Porto de Santos. Depois de 20 dias de viagem por água, terra e finalmente ar, ele aterrissou em Ponta Grossa, no Paraná, em um saudoso Douglas DC-3.

A pacata cidade era uma entre tantas comunidades agrárias de imigrantes europeus que recomeçavam suas vidas no Brasil. Gary e outros jovens americanos passavam os dias a serviço da população local. “Levávamos bebês doentes a um distante hospital, arávamos terra de fazendas e fazíamos tudo o que nos era pedido.” Quatro meses depois, ele foi transferido para Ipomeia, município predominantemente alemão, em Santa Catarina. Lá, deu os primeiros passos para aproximar alguns moradores à doutrina de sua fé, o que continuou a fazer em São Paulo, onde terminou sua missão.

Foram três anos como missionário mórmon no Brasil, onde Gary batizou cerca de 30 novos fiéis e percebeu que um novo mundo se abria para ele. Estava transformado pela experiência e, como diz, pelo calor do povo brasileiro. Mas, aos 22 anos, no início de 1957, voltou para os Estados Unidos. Apenas 13 dias depois de sua chegada, casou-se com Rose, sua paixão desde os tempos de colégio.

A origem

A família Neeleman imigrou da Holanda para os Estados Unidos, no início do século 20, porque o avô de Gary tornou-se mórmon ao ser abordado por uma ação missionária. John, o primeiro dos Neeleman a nascer nos Estados Unidos, pai de Gary, era dono de uma loja de conveniência em Salt Lake City. Considerando a infância que passou, imersa no comércio da família, ele questionava sua vocação para o jornalismo: “Não tinha muito nexo eu me tornar repórter. Talvez tenha sido influência de minha mãe, que insistia em dizer: ‘Um dia você também escreverá em um jornal’”. Ela tinha razão. Gary formou-se em Comunicação na Universidade de Utah e iniciou sua carreira em uma rádio local.

Em menos de um ano, foi indicado para liderar a operação da UPI, em São Paulo. A indicação partiu do jornalista canadense John Alius, que também pertencia à igreja mórmon, conhecia o Brasil e sabia dos interesses de Gary pelo País.

Durante boa parte do século passado, a UPI se destacou entre as agências de notícias internacionais que atuavam na América Central e na América do Sul. Encarregado de ampliar as operações paulistanas, ele enfrentou um imprevisto determinante na escolha do lar na capital. “Como jornalista, não procurei uma casa em um bom bairro ou com uma bela vista e aparência. Procurei uma casa com telefone.” Linhas telefônicas custavam uma fortuna. A disputa era tamanha, que chegou a inspirar uma reportagem de Gary para o jornal Chicago Sunday Tribune.

Para acolher a família, encontrou, enfim, um apartamento no Edifício Pauliceia, na Avenida Paulista, que logo ficou apertado com a chegada do segundo filho, David. Primeiro, Gary registrou o menino em um cartório paulistano e depois na embaixada americana. Fez o mesmo para os outros dois filhos nascidos em São Paulo. Para David Neeleman, caso o pai não tomasse essa decisão em outubro de 1959, a companhia Azul não teria existido.

O lado jornalista

Na redação da UPI, a rotina era intensa. A agência também produzia O Repórter Esso, histórico noticiário transmitido pela rádio e, mais tarde, também pela TV Tupi – o programa tinha o patrocínio da americana Standard Oil Company of Brazil, a Esso. Foi na emissora de TV que Gary conheceu Assis Chateaubriand, o dono dos Diários Associados – um dos homens públicos mais influentes do Brasil entre as décadas de 1940 e 60. Precavido, enquanto se recuperava de um derrame, Chateaubriand contratou Gary para revisar suas correspondências em inglês. O ofício era intermediado pela enfermeira baiana do empresário, a única que compreendia a linguagem debilitada por causa de seu estado de saúde.

De Nova York, sede da UPI, as notícias eram telegrafadas com base no potencial de sua repercussão. Patenteado pela agência, o UPI Unifax permitia o envio de textos e também de dados de imagem, por meio de linhas telefônicas. Em 1960, foi em um desses aparelhos que Gary transmitiu a primeira imagem de Brasília ao exterior, retratando o abraço entre os presidentes Dwight Eisenhower, americano, e Juscelino Kubitschek, brasileiro.

No dia seguinte, um acidente envolvendo uma aeronave comercial brasileira e outra da Marinha americana sobre a Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, causou 61 vítimas. “Fui para lá, entrei na água até o peito para apurar o fato, enquanto a polícia procurava sobreviventes. Foi um dos dias tristes da minha carreira”, recorda-se Gary. Entre as vítimas, estavam membros da orquestra naval americana, que se apresentaria naquela noite na cidade, em um evento com o presidente americano.

Em janeiro de 1961, Gary conquistou a confiança dos seguranças do então presidente eleito Jânio Quadros, às vésperas de ele assumir o mandato, renunciado sete meses depois. “Preciso apenas de um minuto com ele”, insistia o jornalista aos homens do presidente. Quando, enfim, teve acesso a Jânio, conseguiu um furo internacional. Revelou, em primeira mão, que Jânio concederia asilo político à tripulação de militantes portugueses que havia sequestrado o transatlântico Santa Maria, na costa do Recife, em protesto ao regime de António Salazar, então primeiro-ministro de Portugal. “Não penso que foi um gesto político ou despeito ideológico de Jânio. Simplesmente, ele fazia jus ao histórico brasileiro de conceder asilo e deixar as pessoas ‘viverem e deixar viver’, que sempre foi um lema do País. Não por acaso, árabes e judeus vivem lado a lado no Brasil.”

Em 1964, Gary foi premiado pela Associação dos Profissionais de Imprensa de São Paulo (APISP-SP) por sua cobertura do Golpe Militar. Na redação da UPI, como em quase todas do País, ele convivia com oficiais do Exército que exerciam o papel de revisores. Nesse período, ele chegou a receber ameaças telefônicas de grupos de esquerda, que suspeitavam de suas atividades no Brasil. Dois anos depois, Gary estava de malas prontas para voltar aos Estados Unidos.

Adhemar de Barros, na época governador de São Paulo pela segunda vez, promoveu uma festa em sua casa para a imprensa paulistana se despedir do colega. “Ele me chamou para ir até o seu escritório e me deu duas xícaras com o emblema do Estado de São Paulo estampado em ouro maciço.” O presente veio acompanhado da explicação: “Uma para você e outra para sua amante”. Algo que Gary negou existir em sua vida.

Perspectiva histórica

O interesse em aprofundar as pesquisas sobre o Brasil surgiu em 1964, quando a UPI preparava uma reportagem sobre o centenário da Guerra Civil Americana e pediu uma contribuição de Gary, então chefe da operação da agência em São Paulo. Quando investigou a trajetória de seus compatriotas no País, ele conheceu os municípios de Americana e Santa Bárbara do Oeste, no interior paulista, fundados por americanos confederados.

Um século antes, o império brasileiro declarou-se oficialmente neutro à Guerra de Secessão americana, mas Dom Pedro II simpatizava com a confederação do Sul, agrária e escravagista, como o Brasil. A derrota dos estados confederados deixou o Sul arruinado e Dom Pedro II incentivou a imigração de americanos ao Brasil. Garantiu a eles terra barata, cidadania e subsidiou o custo de suas passagens. Heroína fictícia dessa saga histórica, a personagem Scarlett O’Hara, interpretada por Vivian Leigh, menciona a fuga para o Brasil no filme E o Vento Levou.

Inspirado em histórias das famílias descendentes desse êxodo, Gary publicou seu primeiro e único romance, Farewell my South (Bantam, 1985), que narra a história de um casal de sulistas recomeçando a vida no Brasil. Um novo livro, ainda sem título em português, deverá ser lançado no Brasil no primeiro semestre de 2013 e retoma o tema da saga dos confederados. Resultou de pesquisas em registros do censo do Departamento do Estado Americano, correspondências entre Dom Pedro II e coronéis sulistas, e depoimentos de descendentes dessas comunidades.

Abre-alas da série de livros sobre o Brasil, Trilhos na Selva foi impulsionado por um capricho do acaso. Em uma de suas visitas aos compatriotas do Brasil, Gary ganhou um estranho presente de Judith Jones, uma senhora descendente de sulistas, fervorosa sobre suas origens (tia de Rita Lee Jones). Era uma lata retangular enferrujada, guardada por ele em um canto de armário. Descobriu, anos depois, o valor da aparente sucata. Dentro dela, estavam dez exemplares, da década de 1910, do periódico The Porto Velho Marconigram, publicação destinada a engenheiros e operários da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

A lata trazia também dezenas de cenas da vida na Amazônia do começo de século 20, registradas pelo fotógrafo Dana Merrill. A descoberta instigou anos de pesquisa em Rondônia e em Nova York, e resultou em Trilhos na Selva, um retrato íntimo da vida por trás das imagens de Merrill e da construção da ferrovia (hoje, prestes a ser submersa pela usina de Santo Antônio).

Embora viva nos Estados Unidos, o casal Neeleman mantém a forte relação com o Brasil. Quando estava exilado em Nova York, depois de ter seus direitos políticos cassados, em 1966, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi a Salt Lake City onde, a pedido de Gary, deu uma palestra para universitários sobre os desdobramentos do Golpe de 1964. Nos anos 1980, Gary financiou intercâmbios esportivos entre o Brasil e os Estados Unidos, usando recursos privados de grandes companhias, fato que culminou na histórica vitória da seleção brasileira de basquete, liderada por Oscar Schmidt, nos Jogos Pan-Americanos de 1987, contra a equipe americana, em Indianápolis. No final da partida, o técnico Tex Winter teria abordado Gary: “Você bem sabe quem é o maior responsável por isso! Está satisfeito?!”.

A caminho do Brasil para uma série de novos compromissos, Gary e Rose dominam a estação de tomadas do aeroporto de Miami, com seus aparelhos eletrônicos. Pelo alto-falante chega o aviso de que o voo deles foi remanejado para o dia seguinte. “Conheço o quanto esse business é complicado. Nosso filho começou a JetBlue e hoje tem a Azul no Brasil”, comenta Gary para o gerente da companhia aérea que adminstra o problema. Atrás do balcão, o homem confere a passagem de classe econômica e sorri, sem tecer nenhum comentário. Mas o rosto não esconde sua incredulidade. Para Gary e Rose, que mal desconfiam do gesto de suspeição, tão somente um imprevisto irrelevante enquanto não chegam à segunda pátria.


Comentários

2 respostas para “Um casal americano ligado no Brasil”

  1. Avatar de Gustavo Cavalcante
    Gustavo Cavalcante

    caramba, um americano que tem mais amor pelo meu pais do que muitos de nós! passar 2 anos na missao mórmon ajudando gente brasileira, trabalhar no brasil por um periodo de tempo grande depois de casado e ainda servir voluntariamente pra melhorar a imagem do Brasil lá fora??? Cadê nossos políticos numa hora dessas? #ParabensNeeleman

  2. Avatar de IVONE MARIA NUNES
    IVONE MARIA NUNES

    admiro esses dois e fiquei encantada com tudo que li agora,amo seu filho mark neeleman pois com ele minha familia conheceu o evangelho de jesus cristo quando ele serviu como missionario na missao Brasil/Londrina
    obrigada por tudo!!!!!!!

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