A maioria dos brasileiros conhece os assírios apenas pela Bíblia e imagina que esse povo deixou de existir há milênios. Mas ele continua existindo e há no Brasil uma colônia assíria desde as primeiras décadas do século 20. Na verdade, o País guarda uma importância especial para os assírios do mundo. Pois foi aqui, pelas mãos de Ibrahim Gabriel Sowmy – um intelectual que morou em São Paulo de 1949 até 1996, quando morreu –, que surgiu a mais importante narração da história de seu povo desde tempos precedentes bíblicos até a atualidade. Antes, existiam apenas histórias parciais sobre períodos específicos.
Exemplares impressos em São Paulo, em inglês e assírio, de A Verdadeira História dos Assírios, escrita por Ibrahim Sowmy, estão distribuídos em toda a parte do mundo em que há assírios. Vale lembrar que Assíria e Síria são originalmente a mesma palavra, do mesmo modo que Alcorão e Corão. Hoje, é claro, referem-se a realidades diferentes: sírios designa os habitantes arabizados da Síria (originalmente assírios ou árabes), enquanto a palavra assírios designa os assírios que não se deixaram assimilar por outras culturas.
Os irmãos Peter Gabriel e Aniss Sowmy, filhos de Ibrahim, que moram na zona sul de São Paulo e são editores do jornal Suryoye (que divulga costumes da comunidade), contam que o pai, então residente na Palestina sob o mandato britânico, teve papel crucial na descoberta dos chamados Manuscritos do Mar Morto, guardados durante séculos por padres assírios. Ibrahim produziu numerosas obras sobre a cultura do seu povo e no Brasil sua família transcreveu em partitura centenas de hinos seculares e milenares dos assírios. Aliás, foi da família dele que partiu a ideia de fazer a partitura, começando da direita e rumando para a esquerda, tal como a escrita assíria – método depois adotado pelos judeus que, durante séculos, usaram partituras à maneira ocidental.
Dessas centenas de hinos assírios, muitos são anteriores a Jesus Cristo, tendo, porém, recebido letras cristãs em substituição às suas letras originais. Ibrahim ainda colaborou na peça Gilgamesh, encenada pelo diretor Antunes Filho, em 1999.
Tal como é contada no livro, a história dos assírios começa há sete mil anos, época em que teria vivido, após o Dilúvio Universal, Assur, ancestral de todos os assírios, filho de Sem (um dos filhos de Noé), que deu origem a todos os povos semitas. Outros filhos de Sem foram Arfakshar (que deu origem aos judeus e aos árabes), Elam (elamitas), Aram (arameus) e Lud (lídios e cananeus). Apenas os assírios, judeus e árabes, entre os povos semitas, sobrevivem até hoje. Se essa é a história narrada na Bíblia, os assírios chamam a atenção para o seguinte: vários textos do Antigo Testamento são comuns aos judeus e outros povos do Oriente Médio. Muito antes de Moisés, por exemplo, e mesmo muito antes de Abraão, Isaac e Jacó, isto é, muito antes de ser consagrado por este último o nome Israel, Noé já era monoteísta e os assírios, descendentes de Assur, neto de Noé, se tornaram monoteístas muito antes de se converterem ao cristianismo.
De qualquer modo, a documentação arqueológica indica que já havia habitantes em território assírio há 150 mil anos, na Pré-História, dos quais descendem os atuais assírios, povos autóctones de sua região na Mesopotâmia. E que, 50 mil anos atrás, começou a Idade da Pedra na Mesopotâmia, que se estendeu por 30 mil anos, e durante a qual, foram se concretizando não só a formação de famílias centradas no pai (antes eram centradas na mãe e formavam unidades maiores e mais difusas do que a família nuclear), como também o desenvolvimento das primeiras crenças religiosas – ou seja, do culto a forças invisíveis, que se manifestavam por meio de “inundações, terremotos, relâmpagos, incêndios florestais, erupções vulcânicas, etc.”
A escrita
A história dos assírios, desse modo, se confunde com a própria história da civilização. No último terço da Idade da Pedra, os ancestrais dos assírios controlaram o fogo para cozinhar e se aquecer durante o frio, além de servir de foco para reuniões, o que contribuiu para o aprofundamento da socialização. Surgiu a organização de famílias em tribos, que desenvolveram a agricultura e fundaram aldeias e cidades da Mesopotâmia no Norte (como Nínive, que seria a capital da Assíria) e no Sul (Shurubag, onde Noé era rei ou talvez chefe da tribo). Durante dois mil anos depois do Dilúvio (comprovado pela moderna geologia como tendo realmente ocorrido), ou seja, até cinco mil anos atrás, a região se manteve dividida entre cidades-Estado, que começaram a se reunir em um governo regional, no Norte da Mesopotâmia, já chamado Assíria. As cidades se uniram para combater tribos hostis recém-chegadas à região. Desde quatro mil anos antes de Cristo, estava em uso a escrita cuneiforme, baseada em ideogramas, a partir da qual, dois mil anos depois, segundo Sowmy, os assírios derivaram o primeiro alfabeto, que depois transmitiram aos fenícios e arameus.
Esses dois povos, hoje extintos, teriam transmitido o alfabeto aos gregos por volta do século 9 a.C. A escrita ideogramática era baseada em letras que, na verdade, eram desenhos estilizados de objetos ou conceitos, havendo, assim, uma letra para cada objeto e conceito – ou seja, havia centenas ou milhares de letras, como até hoje acontece nas escritas chinesa e japonesa. Ao longo de milênios, algumas dessas letras foram sendo aplicadas como semifonéticas – ao invés de criar um novo símbolo para outra palavra, juntavam-se as letras que simbolizavam palavras de som semelhante. Por exemplo, no Egito, o símbolo que indicava leo (leão) foi utilizado para expressar parte do nome de Cleópatra.
A partir daí, apareceram letras que simbolizavam cada som da língua, surgindo alfabetos fonéticos simples, sempre com menos de 30 letras, como os atuais. Até hoje, nos alfabetos fonéticos semíticos, o nome da letra equivalente à vogal “a” é aleph, palavra que significa boi, sendo o desenho da letra uma cabeça do animal estilizada (uma bola e dois chifres). Isso se repete nas demais letras, como bet (b), que significa casa, daleth (d), que significa porta, ghimel (g), que significa camelo – isso influenciou os nomes gregos das letras, alfa, beta, gama, delta, etc.
Em seu livro, Ibrahim insiste que essas letras fonéticas foram originalmente desenvolvidas pelos assírios, acrescentando que nem fenícios nem arameus legaram um corpo literário como os do seu povo, que mantém ativa uma tradição literária desde o terceiro milênio antes de Cristo.
Pão e vinho
O governo regional assírio, desenvolvido há cinco mil anos, evoluiu, segundo os filhos de Ibrahim, para o primeiro Império da história da humanidade, há 3.800 anos. Nessa época, o povo mal estava passando a primeira metade de sua história. Enquanto o calendário dos judeus alcança o ano 5.772, o dos assírios estaria em 6.761, a partir da fundação do primeiro templo de Assur. No entanto, hoje os assírios usam o calendário iniciado em Cristo.
O Estado assírio, sob grandes soberanos (Assurbanipal e Salmanazar, que venceram fortes batalhas e construíram edifícios majestosos), existiu até o ano 606 a.C., quando foi destruído pelos persas. A partir de então, há 2.618 anos, o povo assírio não teve mais um Estado próprio. Primeiro, pagaram tributos a suseranos sucessivos – persas, gregos e romanos –, enquanto seus assuntos internos eram decididos pelos sacerdotes do culto a Assur.
Os assírios foram os primeiros não judeus a se converterem ao cristianismo. A primeira igreja cristã surgiu em Jerusalém, mas não sobreviveu, sendo hoje a mais antiga a Igreja Siríaca Ortodoxa de Antioquia, fundada por São Pedro quando Jesus ainda vivia, segundo os Atos dos Apóstolos – trechos do Novo Testamento foram escritos em aramaico, depois de perdidas as declinações do antigo assírio (e o aramaico está para o assírio antigo assim como o português está para o latim). O rei assírio da cidade de Edessa, Abgar, aceitou Cristo. Mais: o ritual da eucaristia tem origem, séculos antes de Cristo, no rei assírio Melquisedeque, que teria oferecido pão e vinho a Abraão. Importante notar que os assírios imaginaram a separação entre religião e Estado.
Depois da cristianização, os assírios da Mesopotâmia continuaram pagando tributos aos suseranos. Primeiro aos romanos e bizantinos primeiro. Depois, os árabes, a partir da emergência do islamismo, e, em seguida, os otomanos, até o fim da Primeira Guerra Mundial. Tornaram-se um povo pacífico, administrado em seus assuntos internos por padres cristãos de cinco igrejas diferentes – Igreja Siríaca Ortodoxa (com dois templos em São Paulo, em Mirandópolis e na Vila Clementino, ambos bairros da zona sul) com o nome Igreja Sirian Ortodoxa – fruto de uma má tradução que acabou consagrada pela tradição –, Igreja Assíria Oriental (cujos membros são conhecidos no Ocidente como nestorianos), Igreja Maronita (cristãos assírios ligados à Igreja Católica, desde 1200), Igreja Siríaca Caldaica (cujos membros são assírios da região da antiga Caldeia e não caldeus, povo desaparecido há séculos), surgida em 1600, e finalmente Igreja Siríaca Católica, também ligada ao Vaticano, desde 1800. Além disso, desde os anos 1870 há assírios também protestantes.
Como os assírios são um povo pacífico, seus poucos guerreiros, de 606 a.C. até hoje, lutaram nos Exércitos dos Estados seus suseranos, e não em causa própria. No Oriente, vivem em sua região original, hoje dividida entre diferentes países – Síria, Iraque, Irã, Líbano, Israel, Palestina, Turquia, Jordânia e Egito. Principalmente a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, com o fim do Império Otomano, muitos emigraram, constituindo colônias importantes nos Estados Unidos, Suécia (onde até há um time de futebol profissional representativo da colônia assíria), Alemanha, Holanda e Austrália. Há uma movimentação dos assírios para a criação de um estado autônomo na região do Oriente Médio.
É preciso distinguir, de um lado, os cerca de dez milhões de assírios que mantêm a cultura em todo o mundo dos milhões de pessoas de origem assíria, que há séculos têm se arabizado, mesmo que tenham se mantido cristãs (como é o caso, por exemplo, da família Maluf). De outro, os 15 milhões de indianos que há séculos se converteram ao cristianismo a partir da pregação de missionários assírios.
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Em São Paulo
O primeiro imigrante assírio que chegou ao Brasil foi Pedro Salomão, em 1904. Seu filho, Antônio Pedro Salomão, fundou a Tecelagem Alanta, primeira empresa de tecidos brasileira a importar teares mecânicos da França e do Japão. Ainda existe no bairro paulistano do Tatuapé, na Zona Leste, o conjunto de sobrados construídos como moradias para os funcionários.
Alguns anos mais tarde, chegou Chaquer Miguel, fundador da Tecelagem Fluminense, especializada em tecidos de alta qualidade. Depois, foi a vez do comendador João Gabriel, que foi produtor de frutas no município paulistano de Poá. Ele importou os primeiros ônibus Scania do Brasil, com bancos forrados de veludo, para uma linha entre a Praça do Patriarca e a Barra Funda, centro paulistano, e construiu um dos primeiros prédios de apartamentos com elevador da cidade, na Praça da Árvore. Em 1952, João Gabriel doou o terreno onde foi construída a primeira Igreja Sirian Ortodoxa do Brasil, a de São João, no bairro paulistano de Mirandópolis, inaugurada em 1958 – ele virou nome da rua onde fica a igreja.
A partir dos anos 1940, chegaram Hanna (João) Jabra, que foi presidente da Philco do Brasil, e Sami Koudsi, fundador da empresa Pirâmides Brasília que se associou à Dow Química no fornecimento de derivados de petróleo como combustíveis industriais. “Ainda entre os imigrantes do final dos anos 1940, destaca-se o historiador e arquiteto Ibrahim Gabriel Sowmy, o primeiro com nível superior da comunidade Sirian Ortodoxa no Brasil, formado em Engenharia Civil e Arquitetura pelo British Institute of Technology de Londres, Inglaterra. Foi oficial britânico na Palestina, participou da identificação dos Manuscritos do Mar Morto e a primeira pessoa a perceber que esses rolos eram dos Essênios, seita pré-cristã. Projetou e construiu em São Paulo a Igreja de São João”, diz Aniss Sowmy.
Ele continua: “Diácono da Igreja, dotado de excelente voz, gravou mais de mil hinos religiosos e cantos populares assírios seculares e mesmo milenares que seu filho Bassim registrou em notação musical ocidental. Ibrahim redigiu 18 livros, sendo 15 em aramaico, dois em árabe e um em inglês sobre a literatura e cultura dos povos assírio-arameus. Seu trabalho é objeto de teses acadêmicas em outros países, sendo considerado o mais importante intelectual assírio do século 20. Incorporou e construiu prédios residenciais na zona sul de São Paulo, dando-lhes nomes de reis e divindades assírias, como Zenóbia, Semíramis e Kadmus, entre outros”.
Mas outros assírios escolheram o Brasil, como Tuma (Tomás) Mwusa, fundador da Paranoá Rubber, que financiou em parte a construção da segunda Igreja Sirian Ortodoxa de São Paulo, a Igreja de Santa Maria, na Vila Clementino. Nos anos 1950, chegaram Hanna Werdo, que foi presidente da Associação dos Lojistas da Penha, em São Paulo, e Musa Setrak, pioneiro da cultura do trigo no Rio Grande do Sul. Hoje, são mil famílias de origem assíria na cidade de São Paulo e mais de cinco mil em todo o Brasil – especialmente em Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.
Aniss e seu irmão Peter Gabriel explicam que as primeiras gerações de origem assíria no Brasil foram de empreendedores na indústria, na construção civil e na agricultura, mas as atuais gerações desistiram de ser empresárias devido ao “custo Brasil”. Tornaram-se profissionais liberais.
*Jornalista e escritor. Autor do romance O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil (Editora Casa Amarela)
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