1958: o ano em que o mundo descobriu o Brasil

“O Brasil se aproxima do seu maior sonho de toda a história futebolística. / Meus amigos, estamos na última volta do ponteiro. / Bola com Zagallo, Zagallo para Vavá. / Pelo meu cronômetro faltam dez segundos. / Desce Garrincha, prende a bola pela primeira vez. / É abordado por quatro adversários. / Recuou para Djalma, de Djalma para Didi. / Atenção! Esgotado o tempo regulamentar. / Fica na esquerda agora com Orlando, Orlando foi para a frente. Já estamos com 30 segundos de prorrogação. / Estamos caminhando para a conquista merecida do título máximo de 58. / Pelé domina no peito, de calcanhar para Zagallo. / É de calcanhar que Pelé toca para Zagallo. / Delírio dos brasileiros em Solna. / Zagallo prepara-se, tem Pelé. / Meus amigos, não há mais nervos para os brasileiros que não estão lá dentro do gramado. / Os torcedores brasileiros se erguem no estádio. / Gooooooool, Pelé! / Na cabeçada extraordinária marca o quinto gol do Brasil. / Meu Brasil querido, somos os campeões do mundo. / Gritem todos, comemorem todos! / Campeões do mundo, os brasileiros. / Meus amigos, é a vitória brasileira. / Um verdadeiro delírio. / Delírio dos brasileiros em Solna.”

As vozes emocionadas dos locutores de rádio Waldir Amaral, Jorge Cury, Edson Leite, Pedro Luiz, Geraldo José de Almeida e Orlando Moreira ainda ecoam nos corações daqueles que acompanharam a final do jogo Brasil x Suécia, há meio século. E são essas vozes entremeadas que abrem o documentário do jornalista e cineasta José Carlos Asbeg, que há cinco anos vem lutando para que chegue junho de 2008 e acertemos mais um gol no mito de que o brasileiro não tem memória. Assim como o escritor Nelson Rodrigues atestou que o triunfo de 1958 acabou com a nossa vergonha de ser feliz, Asbeg faz um documentário emocionante, mostrando que nossa memória está cada vez mais viva, pelo menos em se tratando de futebol.
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O filme traz imagens e depoimentos de craques que estiveram no Estádio Rasunda naquele 29 de junho, como Nilton Santos, Zagallo, Djalma Santos, Zito, Mazzola, Pepe, Dino Sani e Moacir. Integrantes de um time que não só nos fizeram acordar de um pesadelo de derrotas, como as de 1950 e 1954, como também sonharam e acordaram para dias mais felizes, como todos os brasileiros. “Eu só me convenci no dia seguinte. Pra mim eu tinha sonhado”, afirma um risonho Nilton Santos. Mas quem cochilou foram os adversários, como lembra o nosso já lendário lateral, a “Enciclopédia do Futebol”. “Quando eles perceberam que tinha Garrincha e Pelé, a gente já tava ganhando. Mas botar os dois do mesmo lado é uma sacanagem, uma covardia. Naquela época… que isso”. E Nilton Santos não está sozinho com todo esse embevecimento a respeito de Garrincha. O atacante José João Altafini, o Mazzola, também rende homenagem ao mágico das pernas tortas: “Eu vou dizer a verdade: o Brasil ganhou em 58 e 62 com o ‘seu’ Manoel dos Santos Garrincha. Foi ele quem fez tudo, fez tudo. Fez mais do que ele tinha que fazer. É como num bolo que você tem a cereja em cima. Ele era a cereja em cima do bolo”.

Não há dúvidas de que os craques se entendiam em campo. Só com o olhar já sabiam da jogada que o outro iria fazer. Mas fora, hoje, já há controvérsias entre quem foi melhor em 1958, Pelé ou Garrincha. O médio volante Zito não tem dúvida: “Olha, eu diria que o maior jogador da Copa foi o Pelé. O Pelé resolveu todos os nossos problemas”. Mas uma certeza é absoluta: “Esta equipe brasileira de 58 é a mais completa que o Brasil já teve”. Palavras de Just Fontaine, o atacante recordista de gols numa Copa do Mundo, 13. Por falar no número da sorte de Zagallo, ele, campeão em 1970 como treinador e em 1994 como auxiliar técnico de Carlos Alberto Parreira, afirma: “A nossa equipe jogava de cor e salteado. Era uma equipe equilibrada, defesa, meio-campo e ataque. Era um senhor time de futebol”.

Todos concordam também na emoção que sentiram com a conquista da Copa. Como se hoje fosse 29 de junho de 1958, uns falam no presente e outros misturam os tempos verbais. Mas vale tudo. De pé em pé a bola rola redonda, com Zito destacando: “Foi um orgulho pra todos nós, pra todos os atletas que conseguiram essa primeira Copa. Sabe o que foi emocionante? Foi nós ganhando o jogo e o estádio inteiro aplaudindo o Brasil. Esta foi a maior vitória nossa. São conquistas pra quem vem iluminado lá de cima”. Bola para Pepe: “O que nós conseguimos, o que a seleção brasileira fez para a alegria desse povo foi realmente marcante”. O “Canhão da Vila”, suplente de Zagallo, afirma, como se estivesse abraçando seus companheiros no gramado sueco: “Hoje nós somos os donos do mundo”.

Outro que viu o jogo de fora, como honrado reserva do cerebral Didi, foi Moacir. “Tudo que aconteceu depois tinha importância. Foi importante, mas não como essa (vitória). Foi o primeiro título do Brasil. Todo mundo chorava, todo mundo gritava ‘é campeão’. Somos campeões, somos campeões!”. Substituto de Zito, Dino Sani levitou: “Você fica assim no ar. Sou campeão do mundo”. Zagallo, que já se emocionou com tantas outras vitórias, fala com os olhos marejados: “Você bota tudo pra fora. Chorei feito criança”. O grande zagueiro Djalma Santos também joga para o emocional: “Você deu alguma coisa do seu futebol para o bem do Brasil”. E Moacir manda para as redes do imponderável: “É coisa que não se pode esquecer. Nem depois de morto”. “Deus do céu! Nós somos campeões do mundo!”, completa Nilton Santos.

1958 na visão dos campeões de 1970 e de um torcedor
Um estava com 9 anos, o outro com 18, o terceiro com 21 e o último com 39 anos quando Bellini levantou a Copa do Mundo naquele gesto que ficou materializado como o dia em que o Brasil foi o maior e o melhor país do mundo, pelo menos em felicidade. Estamos falando de Paulo César Caju, Gerson de Oliveira Nunes, Félix Miéli Venerando e Georgene Gouvêa. Três tricampeões na Copa do Mundo de 1970, no México, e um campeão na torcida.

Aos 9 anos, Paulo César vivia numa favela em Botafogo. Não tinha rádio em casa e apelava para os vizinhos do asfalto para ouvir os jogos da seleção brasileira. Na memória, dois jogos. Duas partidas em que o Brasil enfiou cinco gols e tomou dois. Contra a França e na final à frente dos suecos. Entre um jogo e outro, Paulo César compunha o time dos pobres contra os brancos. “Ali não tinha classe média. Descíamos da favela para jogar contra os filhos dos casarões, dos milionários. Dificilmente a gente perdia.” E na pelada, Paulo César era Dida, o craque do Flamengo que metia a bola no meio das pernas dos zagueiros e fazia sensacionais gols de letra. Poucos eram como Pelé e Garrincha, que só ganharam admiradores durante a Copa do Mundo.

Três anos depois, já no Flamengo, Paulo César foi adotado pelo técnico Marinho. Nessa época, no futebol de salão, aquele garotinho serelepe já era chamado de Pelezinho. “Via o Pelé jogando no Maracanã e falava pra mim mesmo que um dia iria jogar com ele. Mal sabia que na Copa de 70, nove anos depois, estaria ao seu lado.” Quem também jogou ao lado do “Rei” foi Gerson de Oliveira Nunes, o popular “Canhotinha de Ouro”. Ele afirma de forma tão precisa quanto os lançamentos que o celebrizaram que a seleção de 1958 foi o começo de tudo para a sua geração. Gerson estava com 18 anos e, chegando ao Flamengo, se lembra das faixas coloridas nas ruas, do alarido dos rádios e do comentário geral sobre a genialidade de nossos craques. Para ele, Didi foi o maestro daquele time, o cabeça. “Com a entrada do Pelé e do Garrincha, com o Nilton Santos e o Djalma em ótima forma e o Didi no comando, não tinha para ninguém.”

Gerson não consegue falar da época áurea do futebol brasileiro sem comparar com a de hoje. “Não sou saudosista, mas ficam me perguntando se conseguiria jogar tão bem hoje como jogava no passado. Respondo: hoje a gente só não jogaria de vergonha por ver tanto jogador ruim ao nosso lado.”

Já goleiro da Portuguesa de Desportos em 1958, e da Copa do Mundo de 1970, Félix acompanhava os jogos da seleção num rádio dentro de casa. “Era uma grande seleção. Tinha um Gilmar que era excelente. Meu grande exemplo de goleiro. Djalma Santos, que era do Palmeiras e depois foi jogar comigo na Portuguesa, também era estupendo. Sem falar em Garrincha e Pelé e no grande comandante Didi. Era de encher os olhos.”

As lágrimas eram comuns naqueles que até então pregavam o jargão “homem não chora”, mas, e ficar mudo? Olhos e ouvidos grudados no rádio, pois a narração, segundo o torcedor Georgene Gouvêa, o fazia ver o jogo. E ele não se conteve no apito final. Chorou feito a criança que a esposa trazia no colo. Chorou tanto que perdeu a voz durante intermináveis minutos. Felizmente, o torcedor-símbolo desta reportagem voltou a falar e, na seqüência, ainda teve tempo de comemorar com os amigos o maior feito de uma seleção brasileira. Não por mera coincidência, esse torcedor vivia na época em Vitória, Espírito Santo. Amém.

A Copa e a auto-estima são nossas
Para o cineasta do documentário 1958, O Ano em que o Mundo Descobriu o Brasil, José Carlos Asbeg, os craques da nossa primeira vitória no Mundial de Futebol contribuíram não só com o caneco, mas também com algo de que não tinham a menor idéia: trouxeram para o Brasil uma auto-estima que o País jamais havia experimentado. Asbeg lembra que em 2002 se deu conta, com a morte em um breve espaço de tempo de Vavá, Joel, Dida e Mauro, de que os primeiros campeões mundiais estavam partindo e a história daquela conquista precisava ser contada. Contada por eles, os protagonistas. “É para isso que vale o cinema. Ali decidi que faria o Copa 58: Memórias de Ouro, primeiro nome do trabalho.”

Depois o filme ganhou o nome definitivo de 1958, O Ano em que o Mundo Descobriu o Brasil porque Asbeg, aos poucos, foi percebendo que a importância e a repercussão daquela vitória para o nosso país eram bem maiores do que sentiu de início. “Em janeiro de 2003, parti para formalizar um projeto, pesquisar, orçar, enquadrar na lei de incentivo cultural e aprovar na Ancine. Em julho, o projeto foi aprovado.” Nessa época, o cineasta fez duas entrevistas que considerou fundamentais para o projeto: com Luiz Mendes e Mário de Moraes, dois jornalistas que viveram o futebol brasileiro intensamente em mais de meio século. Sabiam de 1950 e de 1954 e estiveram em 1958. “As informações, a alegria de falar sobre aquela seleção e a generosidade deles foram extraordinárias para impulsionar a pesquisa”, diz.

Mesmo sem patrocínio naquele momento, partiu para novas entrevistas. Zito, Pepe, Dino Sani, Djalma Santos, Nilton Santos, o preparador físico Paulo Amaral, o dentista Mário Trigo, o jornalista Paulo Planet Buarque, o comandante Georg Bungner, piloto que levou a seleção para a Suécia, e o ex-presidente da CBD João Havelange. “Foram entrevistas fantásticas, que me animaram muito. Percebi que, de fato, tinha uma excelente matéria-prima para trabalhar. Uma história linda com depoimentos fascinantes.” Em 2005 e 2006, vieram os apoios da Eletrobrás e da Petrobras e, mais recentemente, do BNDES, “sem os quais não existiria filme”, faz questão de ressaltar o documentarista.

E vieram outras entrevistas definidoras: Zagallo, os suecos, Mazzola e Moacir. O filme tomava forma, mas faltava levar os jogadores brasileiros à Suécia para o reencontro histórico com aqueles com quem se defrontaram em campo. No mesmo Estádio Rasunda, palco da final de 1958. Esse era o eixo central do filme. Não deu certo, pois a maioria dos nossos craques não estava em condições de encarar uma viagem para a Europa. Asbeg mudou o seu foco e fez da final o fio condutor do documentário, por isso, sentiu a necessidade de valorizar mais os outros cinco jogos. E daí surgiu a idéia de entrevistar jogadores de Rússia, Áustria, País de Gales, Inglaterra e França.

Ao partir para o exterior, Asbeg sabia o que fazer, o que perguntar, mas não contava em se emocionar nas entrevistas com os estrangeiros. “Além de encontrar homens verdadeiramente esportistas e cavalheiros, que reconheceram a superioridade daquele time brasileiro, eles se abriram com emoção ao lembrar seus confrontos há meio século. Desses homens recolhi a admiração e o respeito que um verdadeiro jogador tem por um outro que lhe é superior. Foi de arrepiar. Tinha de me conter o tempo todo para não chorar na frente daqueles senhores, que abriram suas casas e suas lembranças para um brasileiro, que lhes trazia, de certa forma, a memória de uma derrota.”

Todos mostraram reverência aos nossos craques. “A generosidade de cada revelação de admiração deles por Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos, Zagallo… Jamais se comportaram de forma deselegante ou ressentida. Perderam, e são só elogios aos que eles consideram os melhores. Ao contrário de agora, quando uma derrota é explicada de 20 maneiras, mas nunca se diz o óbvio: ‘Eles foram melhores, parabéns’. Que lição!” O documentário 1958, O Ano em que o Mundo Descobriu o Brasil é, portanto, a retribuição de um garoto que conta hoje com mais de 50 anos aos nossos primeiros campeões mundiais, que jamais serão esquecidos.


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