Arte: cozinhar e servir

Reparei que faz uns 28 anos que venho me aprofundando nessa arte. Isso tudo ao vivo. Sem paredes. Sem vidros. Medo de sentir ou olhar para essa direção sem fim. O que será que vou encontrar?  Segurança? Maturidade?…

Tóquio, base do meu aprendizado. Sem ela, com certeza minha arte não viraria dança. Localizado no B1 (subsolo) em um bairro de boêmios. Estação Shimbashi. Linha Yamanote. Bem no final de Ginza, perto do monumental prédio inteligente da Dentsu (publicidade).

Prédio próprio do mestre Takagi. Só se descia pelos degraus de pedra. Porta de correr suave de madeira leve. Tatami. Duas mesas e um balcão todo de hinoki. Tudo preparado. Sangue estancado de alguns peixes, mariscos variados na sua devida caminha com lençóis brancos, caso precisem babar um pouco para respirar a morte. Checklist. Começa a direcionar os primeiros fãs a seus assentos. Já sentem a intenção do servir desde lá de cima quando passa pelo primeiro Noren. A cada nível das pedras, a iluminação decifra sua história. Irashaimase! A condução da arte era coisa de mãe para filho. Amor incondicional?

No processo, sinto que não estou do lado deles. Sinto estar dentro deles. Sinto me comunicar com eles através da arte. Cada qual com suas diferenças. É puro prazer cozinhar e servir com vontade. Reconstruir um ser tirado da natureza. Passo a passo sendo observado bem de frente ou do fundo, cada detalhe com nitidez é a visão do balcão, da fresta do tatami o movimento do maestro Takagi com seus dançarinos é o ângulo a partir do fundo. Eles curtiam como voyeurismo! Despir a sereia, roçar o wasabi fresco, shoyu vintageStriptease sem paredes, sem vidros. Explícito!

Sentir coisas que nem eles sabem se querem degustar. Vejo mestre Takagi apresentando nossas variedades de mariscos da costa japonesa, brilhantes e fechados como virgens. Peixes dormindo de olhos abertos, algas marinhas diversas… Com naturalidade, o senhor Takagi (meu mestre com carinho) tirava a vida por um instante do aji (carapau) só na faca, lá se foram as microescamas, a proteção divina que tem no final da lateral do corpo até o rabo, que é eliminada com a lâmina em sentido oposto. Galera, se for limpar, tome muito cuidado. Cortes com qualquer espécie marinha dói pra caralho! Dependendo, inflama! Meu mestre dá um show! Em poucos minutos, o carapau volta a viver no prato. Respirar! Com aquela lâmina nem sentiu dor!

Expressão do casal era de encantamento. A vida do carapau e o pensamento do mestre, literalmente, continuarão pulsando dentro deles. Esse é um dos momentos que ficaram gravados no meu coração, que aplico como treinamento aqui no Kinoshita, transmitindo amor na arte de cozinhar e na arte de servir. Março estreia o novo cardápio Kappo-Kinoshita. Com todas as experiências conscientes, subconscientes e inconscientes.


 *Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita, em São Paulo. murakami@restaurantekinoshita.com.br


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