A poética de um espaço coletivo

A feia fumaça subiu e apagou as estrelas. Aqui jaz São Paulo. Mas aqui se faz São Paulo todos os dias, foi em que sempre acreditou a fantástica criadora Lina Bo Bardi, que achava ser a capital dos paulistas “uma cidade entulhada e ofendida”, mas nem por isso avessa ao belo, mesmo com sua eterna sanha de desmemória. Lina muito contribuiu para arejar a paisagem paulistana, seja no monumental MASP e seu vão livre, seja na estupenda recriação que fez de uma antiga fábrica de tambores (IBESA), eternizada por ela como SESC Fábrica Pompeia, espaço que já completou 30 anos desde a sua transformação.

A efeméride é lembrada no belo Cidadela da Liberdade – Lina Bo Bardi e o SESC Pompeia, que conta, em detalhes, a epopeia da construção desse instrumento de lazer e cultura da maior cidade do País. O livro foi organizado pelos arquitetos André Vainer e Marcelo Ferraz, discípulos e assistentes de Lina, na restauração da fábrica e em vários outros projetos.

O título da publicação é o mesmo de uma exposição de 1999, também organizada por Vainer e Ferraz, durante a IV Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo. Agora, eles revisitam essa criação emblemática de Lina. Bom lembrar que, na exposição de 1999, Vainer e Ferraz também queriam evidenciar conceitos que, para eles, são relevantes em arquitetura: promover e construir espaços de convivência. De preferência, democráticos e acessíveis a todos, como é a vocação do SESC Fábrica Pompeia.

Desde os primeiros tempos com uma programação cultural diversa e afinada com o que propunha a arquitetura de Lina, o SESC Pompeia “apontava para o futuro”, como lembra Pedro Vieira, veterano diretor de TV que dirigiu o Fábrica do Som, programa diretamente associado ao Pompeia, onde foram lançadas as principais bandas de música e performances do cenário nacional. Tanto o programa como outras ações culturais produzidas no Pompeia são lembrados no livro que, de certa forma, é uma ampliação do catálogo distribuído aos visitantes na exposição de 99. No entanto, foram acrescidos desenhos, imagens e textos ao material original, recuperando como foi a restauração (entre 1977 e 1982) daquela fábrica construída em 1938 pela empresa alemã Mauser e Cia. – em 1945, ela foi comprada pela Indústria Brasileira de Embalagens IBESA, fabricante de tambores que, mais tarde, instalou ali a Gelomatic, fábrica de geladeiras a querosene.

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Lina Bo Bardi também nunca se furtou em dar a cara a tapa, com seu modo peculiar e direto de dizer o que pensava. Avessa à arquitetura que visava agradar madames, ela adorava o conceito de Foucault, que considerava monumentos importantes quando viravam documentos.

O SESC Pompeia, esse monumento, não só é um documento pela arquitetura, mas pelo o que sua proposta provocou (e provoca) na cidade. Enumerar os eventos ocorridos nessas três décadas seria tedioso, mas vale lembrar a subversão que o espaço suscitou, já no início de 1982, no festival punk O Começo do Fim do Mundo, organizado pelo dramaturgo Antonio Bivar, que reuniu mais de três mil pessoas. O sociólogo e poeta Erivelto Busto Garcia escreve que o festival foi o “batismo de fogo” do Pompeia, que ficou na memória de ao menos uma geração, a moçada que beirava os benditos 20 anos.

E o que falar das exposições que iam de xilogravuras a arte concreta? E o início do grupo Ornitorrinco com Brecht e Kurt Weill? Ou o genial Hermeto Paschoal, que deixou o teatro e saiu tocando pela rua Clélia, para estranhamento dos vizinhos que enxergavam aquele bruxo albino seguido por uma multidão de inebriados?

A diversidade do Pompeia, apreendida no livro de Ferraz e Vainer, com prefácio de Danilo Santos de Miranda (diretor regional do SESC São Paulo), está bem definida em uma frase publicada na contracapa, em que o imortal Darcy Ribeiro diz: “Vivo minha vida aprendendo sem parar, às vezes dói, às vezes encanta. Nunca me lembro de, num pedaço de tarde, ter aprendido tanto. O Brasil precisa ver esse centro de lazer, que é uma árvore, para fazer dele semente”.

Lina Bo Bardi nasceu em Roma, em 1914 (no ano que vem, será comemorado o centenário de seu nascimento) e morreu, em 1992, em São Paulo, deixando inconcluso seu derradeiro projeto, que era a reforma do prédio do Palácio das Indústrias, então sede da Prefeitura. O cinema nacional poderia enxergar na trajetória de Lina um filme e tanto, desde os tempos em que começou a trabalhar como arquiteta e publicitária nos anos de fascismo e guerra na Itália, até chegar ao Brasil, em 1946, com o marido Pietro Maria Bardi, fundador e construtor do acervo do MASP. Lina naturalizou-se brasileira em 1951 e jamais voltou para a Europa. Se tudo isso e mais a sua ação e prática não renderem um épico, o que há de render? Nesse e em outros contextos, o livro Cidadela da Liberdade é fonte de consulta obrigatória.

Além do livro
Para comemorar as três décadas de atividades de convivência, entretenimento, cultura, esportes e lazer, foi organizada a mostra SESC Pompeia: 30 Anos, no hall do teatro da unidade que fica na zona oeste de São Paulo. A exposição exibe a experiência da construção da fábrica e como o Pompeia concretizou o ideal de Lina, tornando-se um reconhecido (e animado) equipamento da cidade de São Paulo. Também estão expostos vídeos com entrevistas de Lina, maquete eletrônica e registros de shows, eventos e outras exposições que vêm fazendo a história do Pompeia.

Outra boa notícia é que mais de seis mil documentos e 17 mil imagens da criadora do Pompeia estão catalogados no Arquivo Documental Lina Bo Bardi, que funciona na Casa de Vidro, no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, patrimônio tombado, local que Lina projetou e construiu para viver com o marido, Pietro Maria Bardi.


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