As civilizações do livro

Um naco de pão e uma carta, era essa a encomenda que um missionário confiara a seu fiel aprendiz. O caminho era longo e, a certa altura, o jovem indígena comeu todo o pão e guardou a carta, a qual foi entregue, intacta, ao destinatário. Este a leu e perguntou ao jovem incauto pelo pão. A carta mentia, respondeu o jovem, pois ele nada mais tinha. O fato se repetiu. Novamente, o missionário lhe perguntou o que havia acontecido, pois a missiva dava a notícia de que trazia um pedaço de pão. A carta novamente mentia, respondeu o jovem. Pois, de fato, o pão fora comido, mas ele tomou o cuidado de esconder a carta atrás de uma pedra.

A história se passa no século 16 e narra o primeiro contato de um jovem índio da Baixa Califórnia com a escrita. Mergulhado no mundo da oralidade, o jovem não poderia ver naquela carta, na escrita, senão um ser animado e misterioso. E que mentia!

A descoberta do Novo Mundo constitui um fato inédito na história das civilizações. E a grande novidade pôde ser difundida por todas as partes do velho continente graças à invenção de Gutenberg, como já o sabemos.

Mas o que sabemos sobre o contato dos povos americanos com os livros?

Códices – Os Antigos Livros do Novo Mundo, de Miguel Léon-Portilla (Editora UFSC, 2012), nos permite vislumbrar os principais livros mesoamericanos que antecederam a época das descobertas. É verdade que esses exemplares não reproduzem de maneira rigorosa a forma-livro tal como ela se consolidou, há séculos, no Ocidente europeu. Pouco importa. Afinal, também a Europa conviveu com os livros-sanfona e os antiquíssimos rolos cujo uso se demorava no Oriente.

Interessa observar que as civilizações mesoamericanas conheceram diferentes níveis de contato com a escrita. Uma longa história que vai do jovem ingênuo que via no livro um ser animado – e mentiroso – ao altivo imperador inca Atahualpa, que negou a autoridade da Bíblia diante de um mensageiro de Pizarro.

Uma última história. Conta-se que certo nahua-pipi notou nas mãos de um missionário um livro. Surpreso com a descoberta, perguntou-lhe se os livros eram comuns em seu mundo. O missionário não menos atônito respondeu que, sim, que as pessoas conheciam os livros. Sem muita cerimônia o indígena tomou-lhe o livro e se pôs a examiná-lo. Porém, se o objeto lhe era familiar, a escrita lhe pareceu estranha. Não menos altivo que o imperador inca, mas, certamente mais curioso do que aquele, ele se pôs numa longa e acurada palestra com o missionário. Naquele momento, civilizações tão diferentes, enfim, se encontraram. E não era menos certo de que o conhecimento do mundo pelos livros fixara um laço entre os convivas. Dois personagens, enfim, dolorosamente ligados pelos muitos desencontros que os livros registraram nesse importante capítulo da história das civilizações.

*Marisa Midori Deaecto, Professora da ECA-USP. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 p.). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012. Para ler mais, entre na página http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/


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