Vim para salvar o Brasil! Foi assim que encarei o meu “trabalho” no Peace Corps em 1965. Para os que não têm idade de lembrar do presidente americano John F. Kennedy, o Peace Corps – conhecido no Brasil como Voluntários da Paz – foi criado por Kennedy para abrigar jovens idealistas que queriam “fazer alguma coisa” para mudar o mundo e ajudar países pobres. Era uma forma de noblesse oblige da classe média americana. Eu entrei neste programa depois do assassinato do Kennedy como um gesto de solidariedade às idéias e propostas dele, e talvez até por um certo sentimento de culpa ou perda. Vim morar na favela do Jacarezinho onde deveria trabalhar em “desenvolvimento da comunidade”. Que tarefa, heim? Rapidamente aprendi que quem precisava ser salvo era eu. Rio de Janeiro em 1965, para um rapaz solteiro de 22 anos de idade, de New Jersey, foi o mais perto que algum mortal poderia chegar ao paraíso em vida. Para os que não sabem, New Jersey é famoso por estar perto de Nova York, e por Bruce Springsteen, Bruce Willis, e Tony Soprano, além de mosquitos do tamanho de um avião, e só.
Embora morasse no Jacarezinho, eu podia pegar o ônibus 474 – Jacaré-Jardim do Alá – que me deixava em Ipanema sempre que pôde ir. Ipanema era o verdadeiro centro dos “Anos Dourados”. Uau! Muito areia para o meu caminhão.
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Naquela época a favela não era um lugar perigoso. Cheguei a visitar e conhecer em torno de 200 delas nos anos seguintes. Tenho memórias fantásticas daquele período! O único constrangimento inicial foi o meu vocabulário que refletia a minha aprendizagem lingüística meio idiossincrático. Como americano, e objeto de curiosidade por morar numa favela, eu era freqüentemente convidado para ocasiões sociais bem acima da minha vizinhança habitual (tanto em New Jersey quanto no Jacarezinho). Nunca me esqueço do vernissage em que pedi a uma madame da sociedade para mostrar onde tinha um banheiro pois eu tinha que “mijar”. O olhar do espanto dela me mostrou que o meu pedido havia tocado em algum nervo. “Você quer dizer que quer ‘urinar’?”, ela perguntou. Recuperei rapidamente e concordei, “É, é isso, quero urinar (nova palavra para o meu pobre e chulo vocabulário). Fica melhor! Mas, aviso que seja qual for o verbo, o assunto é urgente!”
“Onde aprendeu falar português?” indagou a madame. “Jacarezinho” respondi, já mais ansioso para “urinar”. “Ah, entendo”, disse ela, apontando para o lugar que eu precisava com uma certa urgência.
Outra vez confundi a palavra “peruca” com uma outra parecida, mas que é uma expressão vulgar que significa a genitália masculina. Meu anfitrião naquele momento foi um estudante do Instituto Rio Branco, hoje um diplomata de renome, que não me deixa esquecer o gafe.
A singular característica do Brasil que ficou na minha memória daqueles tempos iniciais da minha “peregrinação” por este País foi a hospitalidade do povo brasileiro.
Ao chegar e ver a beleza do Rio de Janeiro peguei o ônibus Castelo-Leme e andei a praia de Copacabana de cabo a rabo (com aquele sapato de sola grossa e uma camisa branca de algodão e poliéster de manga curta). Foi aí que notei que eu havia nascido de novo. Decidi tentar “decifrar” este lugar tão lindo e amável.
Fiz de tudo. Vi Garrincha e Pelé jogarem no Maracanã. Assisti em pé no “popular” junto com a minha “turma” do Jacarezinho, saí em escola de samba, tomei chope na praia e no Bar da Lagoa (onde quem manda é o garçom e não o freguês). Comi moela de frango no Bar Bico no Posto 6 e li as crônicas de Sérgio Porto. Das mulheres, nem posso falar!
É claro que a minha journada não foi de tudo um mar de rosas. O Brasil tem o seu lado “escuro” como qualquer outra sociedade. Vi racismo, vi o lado feio do paternalismo e do patrimonialismo, vi e senti a pobreza/miséria. Nunca me esqueço da pergunta constante que as pessoas dirigiam a mim quando descobriam que era americano: “Tá gostando daqui?” Ora, pensava eu, você já foi a New Jersey? Mas a pergunta continha uma afirmação implícita: “Como pode gostar daqui, sendo dos Estados Unidos – país organizado e ordeiro!”
Acho que talvez eu tenha perdido um pouco do “organizado e ordeiro” da minha própria sociedade por ser de New Jersey. Não sei. Mas, o fato é que estes atributos não me diziam muita coisa quando comparados com um chope na praia de Ipanema num fim de tarde, vendo o sol se pôr atrás dos Dois Irmãos ou uma feijoada num sábado, regada de batida de limão. Das mulheres, nem posso falar!
Mas sempre achei aquela pergunta interessante: “Tá gostando daqui?”, com aquele tom de apreensão
de que eu respondesse “Não! Estou odiando! É que gosto de sofrer.” Mas pacientemente eu respondia, “Tô!” e só. Parece que bastava para mudar de assunto. Ninguém perguntava por quê.
Outra coisa interessante era o comentário que eu não “parecia americano”. Ora, como é parecer americano? Meu país é composto de várias etnias, de modo que não podia ser a aparência física. Tinha que ser outra coisa. Cheguei à conclusão que “parecer americano” era mais um estado de espírito e jeito de vestir e agir que uma aparência física propriamente dito. Não sabia o que dizer até eu peguei o “jeito” e dizia: “Não pareço americano porque não sou americano, nasci na Albânia de uma família cigana!”, que dava para confudir bem.
Uma das coisas tristes que marcou a minha memória e fundiu a minha cuca foi quando alguém me disse pela primeira vez: “O Brasil não presta!”. Ora, ora, como é que o Brasil não presta? Você quer me dizer que você também não presta? Como um país inteiro pode não prestar? Quem primeiro levantou esta questão publicamente, que eu saiba, foi o Contardo Calligaris no seu livro, Hello Brasil. Ora, brasileiro, enxergue-se! (ou como diria o carioca, “porra, cara, se enxerga!”). Sinto muito meu amigo, mas quando me fala uma coisa assim, eu pessoalmente fico perplexo. O país que me tratou tão bem, que me fez sofrer, que me trouxe coisas lindas e coisas feias, não presta?!! Digo de novo: você já foi a New Jersey? “Give me a break!” (dá um tempo, meu irmão!). A primeira vez que ouvi este comentário fiquei até um pouco constrangido. Hoje não ligo. Mas repara no absurdo que é uma constatação destas!
Outro comentário que ouvi, que vem dos anos 60 e atribuído (erroneamente) ao Charles de Gaulle é que o Brasil não é um país sério. Pergunto eu, é para ser? O que tem de errado em não ser um país sério? Pessoalmente acho que é uma vantagem. Uma vez econtrei um amigo brasileiro numa fila em New York. Perguntei se ele estava esperando para entrar no lugar onde esperava. Ele me disse que não, estava apenas com “saudades de uma fila”. (Carioca é claro!). Isto é sério? Quer coisa melhor que isto? País sério invade outros países. País sério é um saco! Formam comitês para tudo! Te enxerga Brasil, não é para ser sério! Não é nem necessário. Isto só vai te trazer problemas! Não peça desculpas. Anuncie em alto e bom som: “Não somos sérios!!!”. Tu achas que alguém vai escutar? Fala sério, irmão!
O que eu quero dizer é que vocês, Brasil e brasileiro, têm qualidades que aparentemente só um gringo parece reconhecer e que vocês parecem desprezar. Não será possível construir uma nação com as qualidades particulares do Brasil? Não há espaço para uma certa falta de seriedade neste mundo? Eu, pessoalmente, sou uma pessoa séria para certas coisas. Levo a sério a minha profissão. Levo a sério as coisas que quero na vida. Porém, não sou fanático! Acho que o Brasil é um país muito sério. Quem cria um programa de combustível alternativo – o único no mundo quando foi criado – é sério onde e quando deve ser sério.
O engraçado é que depois de passar mais de 40 anos ligado ao Brasil, os gringos agora também me perguntam: “Tá gostando?” A minha vontade é de dizer “Não, seu besta, eu quis passar quase meio século no sofrimento!” Mas apenas digo, “Até agora, tudo bem!”
Enquanto o brasileiro vê o seu país como alguma coisa que “não presta” e “não é sério”, o Brasil, ao meu ver, não vai para frente. Enquanto o Brasil e o brasileiro não reconhecerem o seu verdadeiro valor, o país não vai para frente. Não é preciso imitar ninguém. É preciso ser! É preciso consolidar e construir em cima das virtudes do país. Um país em que puta se apaixona, judeu freqüenta terreiro, e todos têm um pouco de medo de macumba, um país criativo, hospitaleiro, contraditório, e acima de tudo inteligente, tem como avançar sim!
Um outro comentário que acho fantástico e que só se ouve depois de estar no Brasil muito tempo é, “Ah, você já é brasileiro!” Embora pareça uma espécie de declaração de cidadania ou uma forma simpática de “adotar” um estrangeiro, não é. O que está por trás deste comentário, pelo menos em muitas circunstâncias que eu vivi, é um aviso: “Cuidado aí malandro, se eu te passar para trás você não vai poder dizer que não sabia!” Se você passar muitos anos no Brasil e não aprendeu nada de malandragem, você não prestou atenção. Esta figura do malandro é muito importante se quiser entender o Brasil. Como eu passei de alguém que queria “salvar o Brasil” para alguém que foi salvo pelo Brasil eu havia decidido fazer a minha carreira “explicando” e “traduzindo” o Brasil para os executivos de empresas multinacionais. E uma das coisas que é preciso explicar é a malandragem. Digo de passagem e com orgulho que deve ter ajudado trazer alguns bilhões de dólares de investimentos para cá, mas isto é para falar depois. Eu notei que metade do que eu fazia era explicar a “malandragem” e o “jeitinho” para os incautos. Quando me perguntavam o que deviam ler sobre o Brasil para entendê-lo melhor eu dizia “Aprenda bem o português e comece com Macunaíma. (Nunca vi uma tradução para inglês desta obra magnífica).
Não me entenda mal, caro leitor. Não estou dizendo que o brasileiro não tem caráter! A malandragem existe em todos nós. É que no Brasil ela existe até nos atos corriqueiros como enfiar o carro aos poucos num cruzamento até que o trânsito tem que parar e você pode passar, ou na sua forma mais interessante como a profissão de despachante – a única profissão que conheço que se baseia no princípio de que o sistema não funciona de acordo com as suas próprias regras.
Certa vez, havia um mendigo cego que fazia “ponto” em frente à Biblioteca Nacional no Rio. Eu gostava de fazer sempre um “fezinho” no jogo do bicho perto do ponto deste mendigo e, ao passar pelo ponto dele, sempre deixava algum trocado na tigela na sua frente. Um dia eu fui ler no poste os resultados do Para Todos que saía às 14 horas. Lá junto comigo estava o “meu” mendigo com os óculos escuros na testa, copiando o resultado do dia! Reconhecendo-me e percebendo a minha indignação à farsa, ele disse “Fala não, heim doutor? Profissão é profissão, certo?” Esqueci da minha indignação e topei a implícita conspiração que ele oferecia. Nunca (até agora) denunciei o farsante para ninguém. E continuei dando alguns trocados de vez em quando para o meu co-conspirador para sustentar o “teatro” que ele fazia.
Conheci o caso de um despachante que telefonava para empresas para dizer que em 24 horas ele desembaraçava a importação da empresa na alfândega. Ele não falhava. É que naquela época o Ministério da Fazenda colocava um aviso num quadro de todas as guias de importação aprovadas no dia para poder ser liberada no dia seguinte. Ele simplesmente lia a lista e em seguida telefonava para as empresas para fazer a sua promessa. No dia seguinte, armado com a documentação da empresa, ele desembaraçava a importação. Isto que é malandragem!
Mal sabia eu que, ao aprender o que é a malandragem, eu estava me preparando para uma parte do meu futuro profissional. Depois de alguns anos e empregos mais “caretas” e alguns anos como consultor independente, eu fui contratado para fundar e dirigir uma empresa de investigações corporativas. Fiz investigações de fraudes e falcatruas, de due diligence e outras coisas mais durante uns 10 anos e continuo fazendo. Uma vez durante uma aula de auditoria numa companhia em que eu trabalhei, ouvi o instrutor dizer que normalmente três assinaturas eram suficientes para evitar a fraude numa empresa – sumarizando: era uma assinatura para solicitar alguma coisa, outra para aprovar a solicitação, e uma terceira para liberar os recursos. Se cada etapa de um processo funcionasse assim, a fraude não ocorreria. Disse ele que era difícil manter uma conspiração com três pessoas. Hummm! Perguntei aos meus botões se esta “regra” seria válida no Brasil. Anos depois, ao fazer uma investigação de uma fraude numa grande companhia, descobri 16 participantes na falcatrua! Três, heim?
Eu vejo a minha trajetória pelo Brasil não como uma passagem “linear” mas como uma série de “quadros”. Momentos no tempo. É como se eu estivesse numa galeria de arte – aqui um Cézanne, ali um Monet, lá um Picasso. Cheguei a compor um samba com J. Piedade antes dele morrer. Freqüentei os bares da
boemia no Rio. Fui amigo de putas, malandros, executivos, diplomatas, journalistas, e outros mais. Certa vez um amigo me disse que o sujeito mais perigoso do mundo é um americano que aprendeu a malandragem brasileira. Talvez! Mas, como foi divertido e gostoso!
O mundo hoje precisa de um pouco desta irreverência do carioca, um pouco desta “anarquia criativa”, um pouco desta hospitalidade gentil do brasileiro e do Brasil. Este é o seu momento, Brasil! Bola para frente sem ufanismo nem pessimismo. A sua maior arma é a sua flexibilidade. A economia global é carente de flexibilidade neste momento e o Brasil tem energia limpa, comida, água em abundância e um setor privado lucrativo, enxuto e com liquidez.
Carpe diem, e divirta-se!
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