O filho maior da revolução

foto: Divulgação
Música Urbana – Thiago Mendonça toca ao vivo para dar realismo a renato russo, no filme Somos Tão Jovens

Há uma coerência nos mais de 15 anos de carreira do roqueiro brasiliense Renato Russo: o inconformismo que fez dele o nome mais importante e popular do rock nacional surgido nos anos de 1980. Desde as primeiras músicas da Aborto Elétrico, sua primeira banda, à consagração com os 13 álbuns do Legião Urbana – que já venderam mais de 20 milhões de cópias –, ele “fez a cabeça” das duas últimas gerações de brasileiros com músicas que viraram hinos de descobertas do mundo para adolescentes e jovens. Até morrer prematuramente em 1996, vítima de AIDS, com apenas 36 anos, Russo se despediu com aquela que pode ser considerada a sua obra-prima política, seu manifesto desprovido de ideologias ou conveniências partidárias. Cantou ele no clipe Perfeição, entre rosas de um jardim, com fina ironia: “Vamos comemorar como idiotas/A cada fevereiro e feriado/Todos os mortos nas estradas/Os mortos por falta de hospitais…/Vamos celebrar nossa Justiça/A ganância e a difamação/Vamos celebrar os preconceitos/O voto dos analfabetos/Comemorar a água podre/E todos os impostos/ Queimadas, mentiras/E sequestros…”.

É esse vigor que faz a diferença explodir na tela em dois filmes que estreiam neste mês: a cinebiografia Somos Tão Jovens, do diretor Antonio Carlos da Fontoura; e Faroeste Caboclo, de René Sampaio, adaptação da música homônima e hino juvenil dos anos de redemocratização do País, no governo José Sarney (1985-1990). Dos muitos filmes e séries de TV feitos nos últimos tempos com biografias de cantores – Cazuza, Maísa, Noel Rosa, Zezé de Camargo e Luciano, Luiz Gonzaga, etc. –, o longa de Fontoura é, de longe, o melhor. Apesar das muitas ressalvas de tons ficcionais – dois personagens foram inventados para amarrar o roteiro –, a essência da história de Renato Russo e do rock de Brasília surgido no começo dos anos de 1980 está lá e os fãs vão concordar com isso. E adorar.

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No começo, o filme de Fontoura ameaça derrapar, com o uso exagerado de algumas frases de letras de Russo que viraram chavões, problema maior do longa Cazuza – O Tempo Não Pára, de Sandra Werneck e Walter Carvalho. Como Tédio com um T e Que País é Este?. Mas o filme ganha fôlego por motivos diversos, como a feliz escolha de Thiago Mendonça para protagonista – impressionante, se não bastasse a semelhança física, a voz é muito parecida com a de Russo. E a opção do diretor em ensiná-lo a tocar e a cantar ao vivo – tudo era captado direto, para dar mais realismo à história. Em paralelo, a música do personagem principal conduz esse empolgante espetáculo visual que vai deixar os fãs extasiados. A coleção de hits, ainda pulsantes, deve deixar mesmo os não tão admiradores do Legião eletrizados entre bater o pé e encher os olhos de lágrimas. Sim, porque tem momentos que isso acontece, como na cena final, em que ele canta Ainda É Cedo para uma amiga.

A história do cantor começa no momento em que ele sofre uma queda de bicicleta e se descobre que ele tem uma doença grave – informação não tão conhecida de sua biografia –, e deixa o adolescente Renato Manfredini Jr. por muito tempo acamado. O repouso é bem aproveitado para aprofundar na leitura de poesia e prosa, duas de suas paixões. O momento coincide com a descoberta por ele do punk inglês, música proletária que chocou o mundo a partir de 1976, por insultar a Rainha da Inglaterra. Confuso entre a homossexualidade e o desejo de se fazer notar, ele montou a Aborto Elétrico, que se desfez antes de gravar o primeiro disco. Impossível não se deliciar com a história por trás das letras mais conhecidas, a reação careta à provocação de Índios no interior de Minas, e como nasceram bandas como Paralamas do Sucesso, Plebe Rude e Capital Inicial, nomes mais importantes do movimento musical brasiliense daquele período.

De Volta para o Futuro

Sucesso de público e de crítica em 2011, o divertido filme O Homem do Futuro, de Cláudio Torres, tem sua trama amarrada na música Tempo Perdido, do legião Urbana, cuja frase deu título a Somos Tão Jovens. O protagonista inclusive a canta no final.

Na trama, o físico João “Zero” (Wagner Moura), que vive em 2011, passa seus dias atormentado por um amor de 20 anos antes, que perdeu de modo traumático. Ele fora traído e humilhado em uma festa de faculdade pela sua namorada. Mesmo assim, decide alterar o futuro – o seu presente – e viaja no tempo por meio de uma máquina desenvolvida por ele.

 

 

Não menos ambicioso é Faroeste Caboclo, uma produção cuidadosa, que deve agradar a legião de seguidores de Renato Russo. Com bons roteiro e direção, também acerta na escolha do elenco. João de Santo Cristo é Fabrício Boliveira. Maria Lúcia, a sempre dramática Isis Valverde. Quem rouba o filme, porém, sem trocadilhos, é Felipe Abib, que faz o vilão Jeremias. Anunciado como uma história de amor e vingança, o filme de René Sampaio peca justamente pelo que sobra em Somos tão Jovens: a despolitização da obra do fundador da Legião Urbana. Sem dúvida que é fiel à saga imaginada por ele, mas sem cumprir todos os 168 versos dessa extensa canção, lançada em 1987, com seus nove minutos e três segundos de duração – um formato de trovador que já havia sido experimentado por Luiz Gonzaga no clássico A Triste Partida, e Gilberto Gil, em Domingo no Parque.

Russo criou um personagem inesquecível que não só queria sobreviver à vida miserável, comum a tantos brasileiros. Por mais que fosse arrastado para o crime, João de Santo Cristo foi se politizando à medida que perdia sua ingenuidade diante da dureza da vida. Esse inesquecível anti-herói não se conforma com seu destino, sai em busca de respostas e descobre, conscientemente, que os culpados por aquilo tudo eram os políticos. “E João não conseguiu o que queria/Quando veio pra Brasília, com o diabo ter/Ele queria era falar pro presidente/Pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer”. O resultado é apenas uma boa história de tráfico de drogas que soa comum, diante do cansaço que esse gênero passa no cinema nacional. Por outro lado, o roteiro é bem feito e preenche bem os trechos escolhidos para compor a história. Não faz feio.

Romances de Bangue-bangue

Pelo menos dois romances foram publicados nos últimos dez anos, inspirados na letra de Faroeste Caboclo, de Renato Russo. O volume Biografia de João de Santo Cristo – Projeto Faroeste, de Mario H. F. Buzzulini, saiu pela Brainstore Editora, em 2003. Embora com tiragem apenas de 1,5 mil exemplares, não ven- deu nem 10% disso, segundo o editor Eloyr Pacheco, por causa da distribuição limitada a lojas especializadas em quadri- nhos e por não ter recebido nenhuma atenção da imprensa.

Não é um livro ruim. Pelo contrário, uma grata surpresa. O autor sabe contar bem uma história, com simplicidade e eficiência, sem fugir dos versos originais. Ele começa a história pelo tiro traiçoeiro que Santo Cristo levou antes do duelo final, anun- ciado na última parte da letra. Já Faroeste Caboclo – O Livro, de Jorge leite de Siqueira, deve ser visto apenas como uma homenagem, pela simplicidade do texto.

O volume só tem ver- são digital para venda pela internet. O ponto de partida é a véspera do duelo entre o protagonista e Jeremias. “João estava deitado em sua cama. Se é que se pode chamar de cama aqueles caixotes de tomate que ele havia pegado na sobra da feira…”, começa ele.


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