Outros reinados do Rei da Valsa

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REI DO DISCO – Galhardo em foto, de 1953, registrada na noite em que ele foi eleito o Melhor Cantor do no e Campeão de Vendas

Em um País pouco afeito a valorizar o legado de seus grandes artistas, o historiador Ricardo Cravo Albin presta serviço indispensável à memória musical brasileira ao disponibilizar na internet – e também em versão impressa – seu Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Em constante atualização, a obra inclui mais de nove mil verbetes. Não por acaso, Albin advertiu em sua coluna do jornal O Dia, referindo-se a Carlos Galhardo: “O centenário do cantor deve passar olimpicamente ignorado por este País tão ausente em lustrar mortos ilustres, despejados no mais reles esquecimento”. O texto foi publicado quatro dias antes do centenário de nascimento do cantor que foi (ou deveria ter sido) celebrado em 24 de março. Ao adjetivar como data “olimpicamente ignorada”, Albin talvez tenha feito referência ao fato de, a despeito do esquecimento, Galhardo ter integrado verdadeiro olimpo da música popular produzida no País durante as décadas de 1930 e 40, a chamada  Época do Rádio. Ao lado dele, outros deuses de igual imponência: Silvio Caldas, Orlando Silva e o Rei da Voz, Francisco Alves.

Conhecido pela acunha de “cantor que dispensa adjetivos”, dada a ele pelo radialista Cesar Ladeira, Galhardo nasceu em Buenos Aires, na Argentina, mas, aos dois meses de vida, veio morar em São Paulo, partindo definitivamente para o Rio de Janeiro aos 8 anos. Sua estreia como cantor aconteceria 11 anos mais tarde. E foi na Cidade Maravilhosa que Galhardo estabeleceu-se como grande intérprete e também ganhou o epíteto  “Rei da Valsa”. Rótulo este que pode ter contribuído para um reducionismo de sua importância. Intérprete versátil, o crooner, de bigode meticulosamente aparado, cantou de tudo – samba-canção, marchinhas, frevos e foxes –, mas experimentou muito sucesso com o gênero melancólico. Sua imponente releitura de Fascinação fez da versão assinada por Armando Louzada, para a valsa escrita pelo italiano Fermo Dante Marchetti e o francês Maurice Dominique Marie de Féraudy, um dos maiores clássicos de nossa música popular, que atravessou gerações em dezenas de regravações, e ganhou versão definitiva na interpretação passional de Elis Regina, registrada no álbum Falso Brilhante, de 1975.

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Lançado em 1933, o primeiro registro profissional de Carlos Galhardo, um disco de 78 rotações (ou 78 rpm, formato extinto após a década de 1950) trouxe duas marchinhas de compositores pernambucanos, Você Não Gosta de Mim, dos Irmãos Valença, e Que é Que Há, de Nelson Ferreira. Uma semana depois, em fevereiro de 1933, o futuro Rei da Valsa ajudou a impulsionar a carreira do amigo Assis Valente, ao gravar duas composições do baiano, É Duro de Se Crer e Para Onde Irá o Brasil. Galhardo lançou 570 canções, em 293 discos registrados em 78 rpm. Depois de abandonar o antigo formato, lançou mais 30 LPs (o chamado long-play, mais extenso), 20 compactos simples (com duas canções) e quatro compactos duplos (com quatro músicas). Em 1976, em reverência a sua importante contribuição para a música popular do País, ele foi homenageado, ao lado das cantoras Aracy de Almeida e Linda Batista, pelo Rei Roberto Carlos em um especial para a TV, onde o argentino mais carioca do Brasil cantou com Roberto o clássico Fascinação. Apaixonado por seu ofício, Galhardo cantou até morrer, em 25 de julho de 1985, aos 72 anos, vitimado por uma miocardiopatia.

Como sugere o ditado, reis jamais deveriam perder a majestade. E é tentando fazer sua parte para zelar tal sentença, que uma fiel súdita do Rei da Valsa, com mais de 80 anos, realiza encontros anuais para celebrar o aniversário de Carlos Galhardo. Reverência que motivou a artista plástica Carla Guagliardi, filha do cantor, a articular um projeto musical em celebração ao centenário do pai. “Fiquei comovida quando Norma Hauer, fã incondicional, empenhava-se em organizar mais um evento comemorativo do aniversário dele. Isso demonstrava a resistência da memória cultural brasileira. A partir daí, com ajuda de amigos e entusiastas da trajetória de meu pai, buscamos dar voz e corpo a sua memória, especialmente em comemoração aos seus 100 anos de nascimento.”

E foi justamente no dia em que Albin escreveu sua amarga crônica, 20 de abril, que Carla deu início às celebrações do centenário do pai, com um concerto realizado no Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas, no Rio de Janeiro. A apresentação reuniu jovens nomes da música brasileira, como Domenico Lancellotti e o parceiro Moreno Veloso, Pedro Miranda, Siri, Cabelo, Jairo Aguiar, entre outros. O encontro também resultou em uma caixa Carlos Galhardo: o Cantor que Dispensa Adjetivos, com dois CDs, gravados em estúdio, com temas selecionados pelo historiador Jairo Severiano. A caixa será vendida, mas também distribuída em instituições culturais, como Museu da Imagem do Som, Instituto Moreira Salles, Rádio MEC, Biblioteca Nacional e universidades federais. Além dos CDs, um deles dedicado às valsas e outro reunindo canções de diversos gêneros, totalizando 19 músicas, a caixa ainda traz textos de Carla e Severiano, uma breve biografia, assinada por Sérgio Cabral, e fotografias, de diferentes períodos da carreira de Galhardo, disponibilizadas por Eulalia Salomon, viúva do cantor que, não bastasse a grandiosidade de intérprete, foi também um homem generoso com seus pares – ele presidiu por mais de 20 anos a Socinpro (Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais), entidade de defesa de direitos autorais de músicos, compositores e intérpretes.


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