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Para entender melhor as manifestações e conflitos que tomam conta das grandes cidades turcas, a Brasileiros entrevistou o historiador Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Os protestos começaram há mais de uma semana por causa do projeto de reurbanização da Praça Taksim, em Istambul, e acabaram se tornando um grande movimento contra o governo de Recep Tayyp Erdogan. Leia a entrevista:
Brasileiros- Questões aparentemente pequenas e pontuais desencadearam grandes manifestações, que se espalham por várias cidades da Turquia. Qual o quadro que está por trás, que possibilitou que isso acontecesse tão rápido?
Há uma tensão latente entre uma parte da população turca que é urbana (em Istambul, Ancara e outras cidades), bastante ocidentalizada e integrada a cultura contemporânea laica, e uma maioria da população, tanto rural quanto de classe mais baixa, que é mais tradicionalista, inclusive do ponto de vista religioso. Então esse é o pano de fundo desse conflito. O caso da praça, que desencadeou o conflito, é significativo de uma certa divergência de opinião entre essa elite mais ocidentalizada – preocupada, por exemplo, com questões ambientais – em oposição a uma visão mais pragmática de boa parte da população, que está mais preocupada com o desenvolvimento. Num certo sentido, essa população mais pobre tem um interesse no desenvolvimento econômico maior de que essa classe média.
E essa população mais pobre é o maior suporte do governo Erdogan?
Exatamente. É um governo majoritário, que tem maioria nas eleições livres. E um país em que há essa divergência: entre esses elementos mais populares, representados pelo governo islâmico, e uma elite mais interessada em uma inserção maior com a Europa laica.
Mas o governo Erdogan já foi em outros momentos elogiado por conciliar islamismo e um regime democrático secular. Não parece ser um governo tão radical, mas o que os manifestantes dizem que não é bem assim…
Uma coisa é essa visão bastante difundida fora da Turquia, no ocidente, que diz que há um governo bastante moderado, que não impõe o véu. Ou seja, um governo completamente diferente do Irã. Mas outra coisa é para essa população que está lá, com essa classe média que está revoltada. Eles consideram que é um governo que está restringindo as liberdades.
Tem questões relativas à limitação da venda de álcool, à proibição do aborto…
Sim. Do ponto de vista dessa elite mais ocidentalizada, essas são questões que deveriam ficar no âmbito da escolha individual: usar ou não o véu; comer carne de porco ou não; etc. É uma visão laica. Mas o governo e grande parte da população consideram que essas questões, como o aborto, são transgressões muito grandes. Então é isso. É uma situação em que, para nós, de fora, pode parecer um governo muito moderado, mas para quem vive lá essas decisões interferem muito.
Você enxerga algum tipo de relação com a Primavera Árabe?
Não, eu acho que não tem nada a ver. Inclusive o Erdogan disse isso ontem, e nesse aspecto ele tem razão. Primeiro, porque a Turquia tem eleições há muito tempo; não é um regime tão fechado; não dá para comparar com Síria ou Egito. Depois porque a Turquia não é um país Árabe.
Mas existe também o receio de que a Turquia se envolva no conflito da Síria?
Esse é um problema que não tem exatamente a ver com as manifestações, pelo que eu tenha visto, mas que também é um pano de fundo. Há uma implicação estratégica aí que afeta a região como um todo, por causa da questão do apoio turco aos rebeldes sírios. A Turquia não quer que os rebeldes fiquem apenas nas mãos dos países árabes mais conservadores. Mas não vejo uma relação direta entre isso e as manifestações.
Você imagina que esses conflitos possam se prolongar por muito tempo? E é possível imaginar que o movimento tenha força para derrubar um governo que teve relativo sucesso por mais de dez anos?
Bom, eu sou historiador, ou seja, sou melhor para falar sobre o passado do que sobre o futuro (risos). Mas não vejo muita perspectiva de revolução, já que não se trata de uma ditadura. Em outros lugares também têm tido manifestações, como na Alemanha, por exemplo. Manifestações não levam a quedas de governos necessariamente. E sobre a duração, já surpreendeu ter acontecido e ter durado até agora, então pode continuar por algum tempo. E o posicionamento do Erdogan será decisivo. Acho que ele pode ceder mais ou menos, dependendo da potência dessas manifestações.
Por enquanto a posição do governo foi mais de acusar a oposição do que de tentar pacificar, não?
O primeiro-ministro (Erdogam) fez declarações mais provocatórias, mas o presidente já veio falar coisas brandas, que a Turquia é uma democracia e tal. E os dois são do mesmo partido, então acho que há um certo jogo aí. Aquela política de bater e depois dar concessões. Erdogan não pode ceder de imediato sem perder autoridade, mas acho que o mais plausível é que haja alguma concessão para acalmar essas pessoas que não o apoiam.
Mas a violência policial foi grande. Isso não pareceu mostrar um caminho de diálogo…
Isso é sempre difícil de avaliar, essa questão de contenção de manifestações desse tamanho. Até na Espanha recentemente houve bastante conflito, apesar de não ter tido mortos. Porque quando você tem uma manifestação dessas você acaba tendo excessos também dos manifestantes, e aí a reação é mais forte. Então entra numa dinâmica de manifestação e repressão. Mas quando acontece uma morte há toda uma catalisação em torno do caso. Mas acho que não foi uma ação tão desproporcional como foi no caso do Egito, por exemplo.
Mudando um pouco o assunto. Parece que as informações sobre os conflitos começaram a chegar antes pelos blogs, sites e redes sociais do que pela grande mídia. Em Istambul picharam em uma parede: “A revolução não será televisionada, será tuitada”. Você acha que as coberturas de conflitos hoje em dia serão cada vez mais assim?
As pessoas mais urbanizadas se valem muito desses meios de comunicação para poder se organizar. Então acho que não é nem que a imprensa não esteja cobrindo, mas os manifestantes estão usando os recursos que têm acesso. E isso também mostra a divisão entre a população mais pobre e humilde, que tem menos acesso a isso e se organiza menos dessa maneira do que as classes médias, que estão fazendo isso de maneira mais intensa. Em todo lugar, não só na Turquia.
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