Não é qualquer salão que tem uma mesa de sinuca Brunswick oficial. No Bilhar do Gilmar, em Santana do Parnaíba, há uma única. Deixada lá por um chileno rico de Aldeia da Serra. O Gilmar entendia aquilo como uma doação, a mesa estava lá há cinco anos.
Eu e o Trajano, meu vizinho de sítio, jogávamos às quintas e sempre encontrávamos o chileno. Vez por outra fazíamos um torneio internacional com ele e seus companheiros.
O Trajano tem um taco John Parris, de freixo na haste e ébano na parte posterior. É seu taco de fé, do qual jamais se afasta. O meu também é bom, feito de goiabão por um artesão do Xaxim, em Curitiba. O Trajano encaçapa melhor do que eu. É atacante nato, ousado e agressivo. Já o meu jogo é defensivo, estratégico. Obstruo, induzo ao erro. Somos os tipos clássicos de jogador. Nos equilibramos.
Há alguns anos, tivemos uma tremenda surpresa. Descobrimos pelos jornais que nosso companheiro chileno era na verdade o colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia, imperador do tráfico colombiano, que vivia recluso em Aldeia da Serra. Foi um susto dos diabos. O Gilmar gelou, tinha a mesa do traficante ali no salão dele. Talvez fôssemos o único contato do Abadia com o mundo real. Os tais patrícios dele certamente eram seguranças.
O Gilmar entrou em pânico, queria ir à polícia. Logo o demovemos da ideia: apanharia, seria preso ou achacado. Na melhor das hipóteses, se enroscaria em sinistro processo judicial. Dar um sumiço na mesa parecia ser a melhor solução. O Trajano, que tem bala, fez uma oferta decente ao Gilmar, tratamos um carreto e, numa tarde de sábado, levamos a Brunswick para o sítio dele. Ficou uma beleza na varanda.
Acautelados, nos afastamos do salão do Gilmar. Passamos a jogar nosso Bola Oito às sextas no sítio dele. Sempre uma melhor de sete.
O Trajano prendia os cachorros para que tivéssemos paz. Ficava conosco apenas um filhote de vira-lata que não podia ser preso com os outros cachorros, machos também. O filhote ficava por ali mordiscando nossa perna, puxando o fio do sapato, pulando na perna, dando uns latidos, correndo pela grama, cavando a terra e sujando o piso, claro. Atrapalhava o jogo. Não parava o danado.
Há sempre felicidade naquele mundo chão. Nem passa pela cabeça dele o que se desenrola acima, no feltro verde. Não sabe das bolas, tacos, tabelas e regras. Não sabe das intenções de cada um de nós, das dúvidas, dos riscos, dos erros e dos enganos. Ele pensa que estamos voltados só para ele, imagino. Ele não vê o que acontece no plano superior. Mesmo que visse, não entenderia. Foi essa minha singela reflexão enquanto esperava a vez de jogar.
O Trajano ouviu tudo aquilo muito quieto. Depois disse que assim são os filhos. Não veem, não enxergam e não sabem das emoções e aspirações dos pais. Sequer suspeitam de seus desejos, amores, segredos e temores. Nem sequer aventam a possibilidade de drama.
Pensei bem naquilo, mas preferi me calar. Encaçapei a quatro no meio e matei a oito no fundo. Fechamos a jornada e fui para casa, com o peito apertado. Possivelmente, por dívida antiga que não mais posso pagar.
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