O verão gelado de Janaína e Cristina

Imagine passar um ano em um lugar onde, quando faz calor – e isso ocorre durante apenas de três a quatro meses -, a temperatura chega a no máximo dez graus positivos. E, no inverno, que normalmente dura do final de março até o começo de outubro, a temperatura fica meses abaixo de zero e a neve e o gelo tomam conta de tudo. Mais ainda, você não pode sair do local de trabalho e moradia, limitando seus contatos com o mundo exterior à internet e ao telefone. Esse lugar é a Antártica e, por mais estranho que possa parecer, todos os anos cerca de cem integrantes da Marinha – oficiais e praças – se candidatam para integrar um grupo de dez pessoas que passará exatos 365 dias na Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), a base brasileira no continente gelado.

Ano passado, a Marinha inovou e, entre os escolhidos para compor o chamado Grupo Base, que opera a estação e dá suporte a aproximadamente dez pesquisadores e cientistas por ano, estavam duas mulheres, a capitã-de-corveta Janaína Silvestre, psicóloga, 43 anos, nascida em Nova Iguaçu (RJ), e a também capitã-de-corveta Cristina Heuseler, médica, 39 anos, nascida em Madureira, na capital carioca. Selecionadas em 2006 por meio de baterias de testes psicotécnicos e físicos, seguidos por quase um mês de treinamentos de alpinismo, sobrevivência no mar e no frio, Janaína e Cristina tornaram-se as primeiras mulheres aprovadas para permanecer um ano na Antártica. A experiência, que termina no próximo dia 22 de março, com a passagem do comando da Estação para o Grupo Base de
2008/2009, já foi tão bem-sucedida que outra mulher, a primeiro-tenente médica Valeska Pereira Ramos de Araújo, seguirá os passos das pioneiras, integrando a próxima equipe que permanecerá um ano no gelo.

Durante duas semanas em novembro, em condições climáticas surpreendentes para a região – o inverno, além de ter sido o mais rigoroso dos últimos 40 anos, foi longo e insistiu em não ir embora – Brasileiros esteve na estação, acompanhando a rotina de militares, pesquisadores e operários em suas atividades na Antártica. E vivenciou uma situação muito diferente do que normalmente ocorre no verão.
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Em novembro, a área da Península Keller, onde a EACF está localizada, no litoral da Baía do Almirantado, normalmente já está com muito pouco gelo e neve. E a temperatura, para padrões antárticos, é amena, ficando, durante o dia (que vai de duas da manhã até 11 da noite) entre um a oito acima de zero. Mas não foi o que aconteceu em 2007. Uma camada de gelo e neve, com cerca de três metros de espessura, ainda cercava a estação. O gelo e a neve simplesmente iam da beira da água até o teto da estação, dando a volta e cobrindo de branco as montanhas locais. Pior: o frio se manteve nos níveis do inverno – em nenhum dia de novembro a temperatura ficou acima de zero e nevou quase todos os dias – e acabou mantendo congelados, até o fundo, os dois lagos que abastecem a estação polar. Com isso, desde setembro, as torneiras ficaram sem água e foi estabelecido um esquema especial de racionamento, até o final de dezembro, com gelo sendo derretido para oferecer uma quantidade mínima de água para serviços de limpeza.

Nessas condições, Janaína e Cristina foram postas à prova, sendo aprovadas com louvor. Segunda em comando, abaixo apenas do capitão-de-mar-e-guerra Carlos Benício Sá de Mello, o chefe da estação, Janaína, na verdade, dentro da tradição da Marinha em que “o comandante comanda, mas o imediato é que toca o barco”, foi quem garantiu que tudo estivesse funcionando sem problemas todo o tempo. Uma de suas responsabilidades era controlar o fluxo de suprimentos estocados em um novo paiol. “Afinal de contas, o supermercado mais próximo está bem longe”, brinca. Ela recorda que tudo foi atípico nessa temporada iniciada em março de 2007. “A estação, que em geral abriga menos de 20 pessoas no inverno, este ano chegou a quase 40. “Além das dez pessoas do Grupo Base e alguns pesquisadores, tivemos a presença de operários do Arsenal de Marinha, trabalhando na fase final das obras de modernização e ampliação da estação”, comenta a comandante e psicóloga, na voz tranqüila que parece nunca precisar subir de tom.

“Minha presença e da doutora Cristina aqui são importantes para desfazer mitos e estabelecer novos parâmetros. O primeiro é o de que duas mulheres podem conviver – e comandar – um grupo de homens sem qualquer problema. Isso aqui não vira uma orgia simplesmente porque existem mulheres a bordo e estamos isolados”, afirma, com veemência. Divorciada há pouco mais de dois anos, depois de 19 anos de casada, Janaína lembra que o ritmo de trabalho e as exigências naturais que a Antártica e seu clima inóspito impõem, fazem com que todos tenham que se preocupar em cumprir suas tarefas. Outro mito derrubado é o de que a Antártica não seria um lugar adequado para mulheres. “Isso é bobagem, já há uma tradição da presença de mulheres cientistas e pesquisadoras de muitas nacionalidades por aqui. O que faltava era a presença de mulheres militares brasileiras. E mostramos que somos pessoas sérias, profissionais, conscientes da missão a ser cumprida”, afirma. Na verdade, a seleção para o Grupo Base não permite a escolha de pessoas que não sejam extremamente bem-resolvidas. Afinal de contas, não pode haver chance para o erro e alguém surtar em pleno inverno, sem ter como sair da base.

A Marinha, depois de mais de 20 anos operando a estação polar, chegou a uma fórmula onde a experiência e a vivência são fatores-chave na escolha dos militares que ficarão tanto tempo isolados. “No grupo, os mais modernos são segundos-sargentos, com mais de 15 anos de serviço. Quatro dos praças já haviam passado, em anos diferentes, pela experiência de ficar um ano aqui. Isso foi muito útil para que tudo corresse bem”, comenta o comandante Sá de Mello, piloto de helicóptero, que foi promovido a capitão-de-mar-e-guerra, o último posto da carreira antes do almirantado, assim que chegou à Antártica. Brincalhão, ele compõe um adequado contraponto ao rigor suave de Janaína. “Ela é o imediato que todo comandante de navio gostaria de ter”, afirma o mineiro.

Embora favorita desde o começo da seleção para ser a subchefe, Janaína teve que mostrar, nos testes, que era a mais capaz para a função. Enfrentou a concorrência de mais 13 candidatos e, na fase final, no campo de provas da Marambaia, no Rio, ela disputou a vaga com o capitão-de-corveta Carlos Alberto Macedo Júnior e acabou escolhida. Para se ter uma idéia do nível do concorrente, Macedo Júnior, hoje capitão-de-fragata, foi o escolhido para chefiar o Grupo Base 2008/2009, exatamente o que substituirá o atual. Entre os subordinados, ter duas mulheres no segundo e terceiro postos de comando não foi problema. “Capitão-de-corveta não tem sexo. É um oficial superior e ponto. É para ser obedecido”, comenta o segundo-sargento e cozinheiro Alexandre Candido da Silva, que está em sua segunda temporada na Antártica. Esse sentimento é compartilhado pelos demais, gente com larga experiência na Marinha e reflete o profissionalismo e o respeito à hierarquia. “A verdade é que aqui embaixo não dá para não fazer tudo sempre certo”, explica o primeiro-sargento Ronaldo Ferreira de Melo, outro veterano da Antártica.

No entanto, os integrantes do grupo não imaginavam que as condições do clima seriam tão penosas. Em julho, a temperatura externa caiu para 25 graus negativos, quase superando a marca história, de menos 28,5°, de agosto de 1991. Pior, como parte da estação estava aberta, com os operários construindo a nova cozinha e ampliando a sala de estar e o restaurante, a calefação não foi suficiente. “Passamos frio, tendo de usar as roupas de uso externo aqui dentro mesmo”, recorda Cristina, a segunda pioneira que entrou para a história. Formada em medicina pela Faculdade Souza Marques, no Rio de Janeiro, Cristina, que é especializada em oftalmologia, foi testada para valer logo na primeira semana de serviço. “Uma viga de aço caiu sobre o pé de um operário do Arsenal de Marinha. Ele sofreu um corte muito profundo e extenso e só não perdeu o pé porque estava com as botas de segurança. Tive de lembrar de meus tempos de plantão em pronto-socorro e lhe dei 16 pontos. Ele foi levado de volta para o Brasil, mas se recuperou completamente”, recorda, aliviada.

Cristina foi escolhida já com o processo de seleção, o chamado TPA (Treinamento Pré-Antártico), adiantado, depois que os outros médicos candidatos foram reprovados. E a Marinha acertou de novo com sua escolha. Como terceira oficial, ela tem sido o complemento perfeito da dupla Sá de Mello e Janaína. Namorando um advogado carioca que foi seu maior incentivador a ir para a Antártica, ela admite que a internet e o telefone direto, instalado pela OI ano passado, ajudam a superar a ausência e a distância. “Antes era muito mais difícil o contato diário com as famílias. Mas o isolamento e a certeza de que só sairemos daqui depois de um ano continuam os mesmos”, comenta. Sobre o futuro, Cristina acha que já teve cumprida sua cota de Antártica. Janaína, por sua vez, tem metas bem-definidas. Ano que vem, vai cursar a Escola de Guerra Naval, no Rio, exigência para futuras promoções. E também vai, em 2009, se candidatar a mais um ano na Estação Antártica Comandante Ferraz. Mas, dessa vez, sua disputa será pelo posto de chefia. E, podem apostar, ela tem tudo para fazer história de novo.


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