No mundo do chicotinho e das algemas

No porão propositalmente mal-iluminado, os primeiros acordes da música de Loreena McKennitt avisam que algo está para acontecer. Dois casais, que até poucos minutos atrás conversavam e riam animadamente no bar do andar térreo, se dirigem ao fundo da sala, onde uma cruz em forma de X, sobre um fundo de veludo vermelho e um brasão de armas, exibe grossas algemas de couro penduradas de correntes e argolas em cada extremidade.

Um dos homens testa as correias e prende os braços erguidos de sua companheira ali, levantando seu vestido até a cintura e expondo-lhe as nádegas nuas. A outra mulher, tirando as calças e ficando apenas de calcinha fio dental, é inclinada sobre uma estrutura de madeira que lembra um genuflexório, mas no qual a cabeça fica mais baixa que o corpo. Aos poucos, mais pessoas descem ao lugar e vão se acomodando para assistir à cena, em silêncio.

Cada um dos homens se dirige a um cabide do qual pendem diversos tipos de chicotes, chibatas e outros instrumentos de castigo. Eles avaliam as alternativas, escolhem suas armas e se posicionam atrás das duas mulheres, que portam no pescoço coleiras como as usadas por cachorros, com iniciais que indicam serem elas propriedade de alguém – dos dois homens, provavelmente. No silêncio mal quebrado pela música, eles alisam a pele das duas como se lhes avaliassem a resistência, desferindo a seguir o primeiro golpe, que faz ambas gemerem quase simultaneamente. A dor de uma é o susto da outra.

Não há truques ali: a pele revela que cada chicotada foi para valer e nota-se que a platéia retém a respiração à espera de cada novo golpe. É possível identificar os novatos, que são os de olhos mais arregalados e ar assustado, encolhidos nas cadeiras. De quando em quando, os homens se aproximam das mulheres, acariciando-as, para saber se podem continuar, se está tudo bem, se querem mais. Elas querem, sorriem, agradecem. Eles batem e batem de novo.

A pele das duas já reluz de tão vermelha e os gemidos vão ficando mais agudos e se transformam em choro à medida que a sessão avança, o que leva, pelo menos, uma hora. Sentado na escada, um terceiro homem mantém os olhos fechados, acusando o prazer que lhe causa estar sendo pisoteado por um pé calçado em uma sandália de salto altíssimo.

Em poucos minutos, ele se deita no piso gelado, a um comando da dona das sandálias, que desce para caminhar sobre seu corpo. A impressão que dá é que a qualquer momento os saltos finos vão rasgá-lo ao meio, mas, não, a moça vai para frente e para trás e nada revela que esteja provocando sofrimento – ao contrário.

A excitação da platéia pode ser cortada com faca, mas ninguém intervém, o clima é ali de quase reverência. Afinal, estamos no Dominna, o único clube BDSM do Brasil. Localizado numa rua movimentada do outrora proletário e ainda hoje conservador bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, o Clube Dominna não é fácil de achar para quem vai pela primeira vez.

Sem placa nem indicação na rua, de resto cheia de barzinhos bem mais convencionais, a casa é discreta e mais lembra uma residência familiar que uma casa de BDSM – sigla que, para os iniciados, identifica práticas de Bondage (amarração), Dominação/submissão e Sadomasoquismo. Mas quem consegue localizar o lugar sabe o que espera encontrar ali, um parceiro que goste dos mesmos fetiches, que são muitos.

E, antes que alguém pergunte, não, não se trata de uma casa de prostituição. Mas é, com certeza, uma casa onde o sexo é o assunto principal e o ingrediente recorrente de todas as conversas, embora se avise aos incautos que chegam que relações sexuais completas não são permitidas ali.

Para quem vai esperando mulheres em couro e botas, portando chicotes à espera dos imprudentes freqüentadores na porta, a casa não impressiona tanto assim: não há nada disso ali, pelo menos não à vista. Só no estacionamento, em frente, quando se entrega o carro ao manobrista, a descontração assusta: ao pegar a chave do carro, o manobrista dispara com toda a naturalidade do mundo: “Ah, olha aí, mais um do pessoal do chicotinho!”

Do outro lado da rua, uma grade fechada, através da qual se ouvem rumores de conversa lá em cima, no sobrado discreto. No alto da escada, à porta, uma mulher discretamente vestida, com pouquíssima maquiagem, controla quem chega com um sorriso, perguntando o nome dos novatos, inscrito na ficha de consumo.

O nome, em geral, é apenas o apelido pelo qual o cidadão é conhecido nas listas de bate-papo, orkuts e outros canais de comunicação entre BDSMistas. São raros por aqui os que dão o nome verdadeiro, a maioria teme ser revelada “lá fora”, na vida “baunilha”, como adepta de práticas sexuais que carregam o estigma do bizarro e da perversidade. “Baunilhas” são chamados aqueles que praticam o sexo sem técnicas de BDSM. Mas o que tem a inocente baunilha a ver com isso?

A palavra vem do inglês vanilla, que designa também o sorvete de creme no mercado americano. Como é o mais comunzinho, foi adotado como sinônimo do sexo papai-e-mamãe, comportadinho. Se o cidadão acrescentar algumas versões leves do BDSM, como algemas de pelúcia ou tapinhas de faz-de-conta, pode ser considerado um “baunilha apimentado”. Então, tá.

Alguém já havia dito, nas primeiras conversas que me trouxeram até aqui, que “foi mais fácil o primeiro salto de pára-quedas que entrar pela primeira vez no Dominna”. A gente nem imagina o que vai acontecer lá dentro. Ou até imagina, o que também não ajuda. Mas se surpreende ao descobrir que, ultrapassado o vão da porta, o ambiente do local, à meia-luz, mais lembra uma festa de família, onde as pessoas trocam receitas de bolo com a mesma naturalidade que dão dicas sobre a melhor técnica para se realizar um fisting completo. Epa! Quem falou em fisting?

Olhando ao redor, vejo que a dona da técnica é uma senhorinha que não despertaria qualquer suspeita nas aulas de catecismo da igreja mais próxima. Fisting, para quem não sabe, é a técnica de introduzir a mão, ou o punho (em inglês, fist) na vagina ou no ânus do parceiro. Algo que, sem dúvida, exige muita expertise dos praticantes para não acabar em algum pronto-socorro.

Olhando ao redor, finalmente identifico a Bela, mulher que comanda o clube Dominna, uma loira grande e impressionante, daquelas pessoas que se a gente não soubesse do que gosta, poderia até imaginar, fácil, fácil. Toda de preto, cabelos esvoaçantes, saltos altíssimos, ela circula pelo espaço com uma majestade que lhe é absolutamente natural, distribui beijos para os conhecidos – quase todos os que ali estão – e se senta para conversar com a repórter, que foi ali apresentada por um dos iniciados cujo nome delicadamente vamos omitir, a pedido, como de resto teremos que fazer com a maioria dos que aqui falam.

Bastará dizer que se trata de um respeitado professor universitário que dedica suas horas vagas, “não tantas quanto gostaria, infelizmente”, a desenvolver engenhocas variadas para o exercício de seus fetiches. Por suas habilidades na arte de transformar inocentes bugigangas em objetos destinados a dar dor e prazer a quem se submete a seus caprichos, é conhecido entre os BDSMistas como Mestre Dexter, singela homenagem ao personagem do Cartoon Network. Sádicos também vêem desenhos animados?

“Sim, sádicos fazem as mesmas coisas que todo mundo faz, só que acrescentam alguns igredientes a mais em sua vida sexual”, explica, didático como convém a um professor que, desde a adolescência, diz, sempre se sentiu atraído pela submissão e imobilização de suas parceiras.

Bela e Mestre Dexter são velhos amigos e se oferecem para ajudar a repórter a entender melhor como funciona esse mundo que povoa a imaginação de tantos, mas ainda assusta a maioria. O Dominna, conta Bela, nasceu da experiência que teve quando conheceu o Valhala, primeira casa sadomasoquista de São Paulo.

Ela foi pela primeira vez, como curiosa, conta, e nunca mais saiu de lá, tendo inclusive entrado para a sociedade até o fechamento do bar. Mais tarde, abriria o primeiro Dominna, no Paraíso, com outros sócios, e desde então lá se vão cinco anos. “O problema é que isto não é um negócio, é uma paixão, um lugar onde recebemos os amigos e aonde as pessoas vêm saber mais de práticas que as atraem”, diz, lamentando apenas que o Brasil esteja tão atrasado na produção de produtos fetichistas adequados às fantasias vistas na internet e em outros países.

Bela, que estudou em escola de freiras, se formou em pedagogia, secretaria executiva, foi diretora de escola e hoje estuda direito, pretende fazer mestrado em alguma área relativa ao meio, que considera carente de proteção e legislação específica. Ela cobra, em média, R$ 10 de entrada dos visitantes, diz que a casa não consegue ser lucrativa, e que freqüentemente é obrigada a cobrir as despesas com dinheiro da família. Mas garante que não abre mão do que considera seu compromisso com a preservação da cultura BDSM. “Queremos divulgar a nossa cultura, para tentar acabar com o preconceito de que somos alvo”, defende.

A preocupação com passar uma imagem de seriedade às práticas BDSM é constante na conversa com Bela, que se confessa switcher – alguém que gosta tanto de dominar como de ser dominada, de bater e de apanhar, no jargão do meio. Periodicamente são realizados no clube workshops, onde os iniciantes podem aprender com quem sabe a melhor maneira de pendurar alguém do teto, ou atravessar agulhas na pele, bem como as regras básicas da conduta SSC – Sã, Segura e Consensual.

Esse é o bordão mais repetido entre os iniciados. Todas as práticas têm que ser sãs, ou seja, evitar danos à saúde, minimizando os riscos e de comum acordo entre as partes, que costumam negociar seus limites e desejos abertamente, antes de chegarem ao primeiro tapa. Uma das coisas que mais irritam os iniciados no meio são filmes como Oito Milímetros, onde o sadomasoquismo é mostrado como uma forma de violência sem regras, coisa das páginas policiais.

A uma determinada altura da conversa, alguém me sugere que veja de perto o dungeon, a masmorra, onde as cenas são realizadas e onde veremos os dois casais realizarem suas fantasias. Cenas são sessões públicas em que iniciados mostram suas práticas, sem compromisso, em geral pelo prazer do exibicionismo de uns e o voyeurismo de outros.

“Mas ninguém precisa se preocupar, aqui tudo é feito consensualmente, só participa das cenas quem quer e como quer, você pode ficar só olhando, desde que não faça barulho que desconcentre os praticantes”, explica Bela, me escoltando para o porão do sobrado, aonde se chega por uma íngreme escada sem corrimão.

Embaixo, o cenário é exatamente o que o nome sugere – uma masmorra de ares pretensamente medievais, cheia de equipamentos de torturas as mais variadas – chicotes em diversas versões, barras, algemas, cruzes e cavaletes para prender os submissos, escravos e masoquistas, até um improvável e assustador banquinho coberto de pregos, ao lado de um trono dourado, forrado de veludo.

É ali, no trono, que as Rainhas, mulheres dominadoras, se sentam para serem adoradas pelos seus escravos. Uma adoração que tanto pode incluir spanking e tortura dos órgãos genitais como podolatria, que é o fetiche por pés que podem pisar, chutar, ser lambidos, beijados ou simplesmente fotografados, ou mesmo servir o cafezinho ou segurar-lhe a bolsa, plantado ali do lado. Tem gosto para tudo.

Quem vai lá participar de uma cena não é pago para isso, como acontece nas boates onde se vêem cenas de sexo explícito. Pergunto a um dos casais o que os leva a se mostrar em algo tão íntimo publicamente. Me explicam que ambos têm o gosto pelo exibicionismo. Kleyton é o Dominador do casal, Lícia é sua escrava. Além disso, são namorados, o que nem sempre ocorre nesse tipo de relacionamento, ressalvam.

Tirando o fato de que a moça se senta meio de lado na cadeira dura, nada denuncia o que acabaram de fazer e retomam a conversa com toda a naturalidade. Pergunto a Kleyton o que o levou a esse meio e ele, nitidamente incomodado pela entrevista, acaba confessando que está aí “pelo prazer, pelas possibilidades de experiências novas e de realizar as fantasias”. E conta que também é switcher, uma hora, Dominador, outra hora, submisso, nem sempre com a mesma mulher, ou homem, posto que também é bissexual.

Ele, quarenta e poucos anos, é casado, funcionário público e, por causa de sua atividade e do preconceito da sociedade, explica que não pode revelar a opção sexual que mantém ativa há sete anos, por atuar em um meio ostensivamente conservador – e fardado. Ela, um pouco mais jovem, mas há oito anos no meio, é artista plástica, divorciada, e fala bem mais à vontade do que Kleyton, a quem chama de Dono e cujas iniciais chegou a ter gravadas a faca no corpo há alguns meses, no que define como uma sessão memorável.

“Começamos a freqüentar o meio ainda no Valhala, há sete anos, e o objetivo era fazer amizades, conhecer gente que não vê o SM como uma doença, nem nos vê como um bando de loucos, gente que nos aceita assim”, explica Lícia, alisando distraidamente os locais onde o chicote bateu mais forte, que certamente ficarão marcados por alguns dias. Arnica e Hirudoid® são tão presentes nas bolsas dos BDSMistas quanto os celulares no bolso dos executivos.

Exibir as marcas dos embates aos confrades é um orgulho para qualquer submisso, da mesma forma que ostentar as coleiras e outros sinais de posse (piercings, tatuagens) que usam quando estão sob compromisso com algum Dominador. É todo um mundo de ritos e regras que não convém desafiar.

Pergunto aos dois se já passaram por algum aperto provocado por sua opção sexual e a necessidade de anonimato e é Lícia quem cai na gargalhada e conta que um dia teve o carro roubado, junto com uma mala na qual guardava os objetos que seu Dono anterior deixava com ela para as sessões – chicotes, vibradores, plugues para dilatação anal e vaginal, cordas, enfim, toda uma parafernália de difícil explicação convencional.

“Uns dias depois, me ligaram de uma delegacia do outro lado da cidade, e um investigador disse que haviam achado o carro e que, como estava no nome do meu ex-marido, um tremendo careta, o haviam chamado, mas queriam saber se a mala era minha ou se podiam entregar a ele…”

Lícia não segura a risada fácil, lembrando da expressão maliciosa do delegado, ao lhe entregar a mala e ouvir dela que era uma mãe de família, divorciada, e muito séria, sim, “o que o senhor está pensando de mim?” “Menina, foi um sufoco… Saí de lá e joguei a mala na primeira caçamba de lixo que encontrei na rua”, diz.

Outra figurinha carimbada do mundo BDSM é o Amo, mas ele permite que use seu nome verdadeiro, Otávio Azevedo. Engenheiro de profissão, esse paulistano de 45 anos de idade e 17 de BDSM é referência quando o assunto é Bondage, que engloba diversas técnicas de imobilização dos parceiros. Sua especialidade é o Shibari, prática japonesa tradicionalmente usada para humilhar e prender prisioneiros de guerra, importada para o contexto sexual com um impressionante número de adeptos em todo o mundo. O Amo costuma dar workshops e cursos de Bondage e garante que não são apenas os BDSMistas que freqüentam as aulas e palestras.

“Muitas pessoas vêm atraídas pela possibilidade de potencializar as sensações eróticas e esquentar o casamento”, diz ele, que é casado com uma iniciada. Foi por meio de sua especialização que chegou ao teatro, onde atua como consultor sempre que há cordas em cena. Agora mesmo, está colaborando com uma montagem de Pirandello para a companhia Manufactura Suspeita.

Os cuidados com o anonimato o incomodam e diz que já pensou em mobilizar mais pessoas para tentar mostrar que BDSM não tem nada a ver com violência doméstica ou gratuita. “Devíamos seguir o modelo dos homossexuais, que se mobilizaram em todo o mundo para lutar contra o preconceito e conquistaram seus direitos”, aponta, lamentando que “a hipocrisia e a culpa” impeçam mais gente de assumir suas preferências.

Ele mesmo, quando mais jovem, passou pelas dificuldades impostas pelo sigilo – difícil de manter quando se precisa guardar metros e mais metros de cordas em casa, sem qualquer vocação pelo montanhismo. “Um dia estava testando uma nova amarração em mim mesmo e o pé escorregou, me deixando pendurado de cabeça para baixo até meu pai chegar e me encontrar naquela situação”, lembra divertido. “Duvido que ele tenha acreditado na versão estapafúrdia que inventei na hora, de que estava treinando para uma escalada com amigos…”, completa, rindo muito.

É o Amo que nos fala da Festa Luxúria, organizada por Heitor Werneck, criador da marca Escola de Divinos, uma das favoritas do mundinho BDSM. Com inspiração fetichista-gótica-punk-qualquer-coisa, a grife já manteve loja na Galeria Ouro Fino, ponto favorito dos descolados da noite paulistana, na Rua Augusta.

Mas um câncer, o vício em drogas e a amolação de ter que lidar com a administração do negócio levaram Werneck a largar tudo e se mudar para o interior de São Paulo, onde ficou durante o tempo que durou o tratamento e a desintoxicação. Agora ele mora com a mãe em um grande sobrado, em São Bernardo do Campo, e diz que só cria suas roupas para os amigos que insistem em encomendar.

Cansou de ser homem de negócios. Aos 40 anos, formado em agronomia, publicidade e teologia, ele se autodefine como “um punk-anárquico, cria dos anos 80 do Marquês de Sade e com fixação pela Idade Média e pela figura dos vampiros” e diz que não precisa de mais do que tem para viver como gosta. E uma das coisas de que mais gosta é viver os extremos do BDSM. Não é para qualquer um.

Insiste em que o vejamos numa apresentação na qual se deixará pendurar do teto de uma casa noturna da parte mais hard core da Rua Augusta, por meio de ganchos enfiados na pele. Explica que é uma questão de técnica, que é só furar no lugar certo e distribuir o peso. Nota-se que desfruta do desassossego que provoca em seus interlocutores. Werneck é um sadomasoquista de carteirinha, entre outras muitas coisas.

Falando muito, Werneck diz que não tem paciência para conviver com o meio BDSM formal, aquele do clube Dominna e das comunidades do Orkut na internet. Critica a mania dos iniciados mais tradicionalistas e litúrgicos, de adotar apelidos como Rainha isto, Lord daquilo, que considera uma forma de camuflar a realidade da maioria:

“A liturgia que existe na cena BDSM brasileira é diferente da que encontramos em outros lugares do mundo onde se pratica há mais tempo e tem mais embasamento cultural. Aqui ela tenta compensar com esses títulos pomposos a mediocridade do seu dia-a-dia”, alfineta. Com o olho do criador de moda, esculhamba o que chama de “falta de requinte na maldade”, a liturgia sem coreografia e de estética duvidosa que caracteriza, em sua visão, a turma dos seus desafetos.

Foto: Top Foto/Grupo Keystone
DEUSAS DO SADÔ: Valentina (à esquerda), a célebre criação que Guido Crepax imortalizou nos quadrinhos. À direita, a atriz norte-americana Angeline Jolie, em ação em “Sr. e Sra. Smith”: ela diz ter sido adepta da prática

As duas tribos, na verdade, não devem ser convidadas para repartir o mesmo chicote, mas ele convida a repórter a conhecer a Festa Luxúria, que organiza uma vez por mês em uma casa da Vila Madalena, a Áudio Delicatessen. Ali, explica, só entra quem tem o nome numa lista que chega a 200 convidados, para evitar curiosos mal-intencionados.

Cada edição de Luxúria tem um tema e o preço da entrada depende de quanto a pessoa seguiu o dress code temático ou fetichista, mas embora o mote desta vez seja Nossa Senhora e seus Milagres, e alguns estejam realmente vestidos para matar (ou morrer), a maioria esmagadora circula pelos dois andares da casa em roupas pretas. Chibatas e máscaras, também pretas, são oferecidas na porta a alguns.

Muitos jovens, algumas drag queens, até um improvável anjinho de asas roxas passeiam pela casa numa azaração ostensiva, como em qualquer outra balada. A pegação também rola solta, estimulada pela iconoclastia inspirada pelo tema, que levou algumas das mulheres a exibirem generosos seios nus, expondo-os a pingos de cera de velas pretas e vermelhas acesas pelos muitos e assumidíssimos sádicos de plantão.

Me explicam que a cera de velas coloridas queima mais a pele que a das brancas e que o segredo para suportar-lhes a dor é a distância de que se deixa cair os pingos: quanto mais de perto pingarem, mais arderão. As velas pretas são as piores, dizem, algo a ver com os corantes adicionados. Por isso mesmo é que elas são as preferidas por ali, ostensivamente visíveis nos bolsos de muitos. As mulheres exibem os seios pintados de cera com orgulho, competindo para ver quem agüenta mais por mais tempo.

Werneck, o anfitrião impossível da festa, em suas vestes de frade estilizado, não fica atrás e quase engole duas velas (pretas, naturalmente) acesas, deixando que lhe queimem a língua bem no centro do bar. Não se trata de uma artimanha de circo, a vela sai tão acesa quanto entrou de sua boca. Como para ir à forra, a seguir, toma um chicote de várias tiras da mão de um dos convidados e desfere com força vários golpes seguidos nas costas de um rapaz que chama de seu escravo, e que está sendo mantido ajoelhado e amarrado há mais de 30 minutos bem no centro da pista, à disposição de seu Dono.

Werneck nos havia alertado para que fôssemos vestidos “de acordo”, pois quem chega à porta de jeans azul e camisa xadrez, no tradicional modelo mauricinho, tem duas opções: pagar dez vezes o valor do ingresso cobrado aos “montados” ou tirar tudo e entrar de cueca ou calcinha. A idéia, conta, é exatamente desestimular a informalidade e fazer da festa uma performance coletiva, onde cada um exercite sua fantasia como melhor a entender.

A única cláusula pétrea da noite, faz questão de ressaltar, é a proibição de se exceder em drogas ou álcool. “Quem começa a se mostrar inconveniente é retirado na hora pela segurança”, garante, apontando para parrudos homens de preto e máscaras que observam os mais afoitos. O significado da palavra inconveniência, ali, entretanto, antes do amanhecer se revelará muito, mas muito elástico mesmo.

Quando nos preparamos para sair, o Amo avisa que faz questão de dar mais uma pequena amostra de seu talento. Ao longo da festa, ele já amarrou com longas e grossas cordas duplas de cânhamo suas favoritas, pelo menos meia dúzia de candidatos a modelos de Shibari, homens e mulheres. “Você é a próxima”, me avisa, divertido.

Em nome da notícia, fico lá parada, esperando que complete o cuidadoso e lento trabalho de amarração que prende meus braços atrás da cabeça e trança a corda pelo corpo, formando um desenho admirável que contrasta com minha roupa (preta, claro) e atrai seus admiradores para perto.

A sensação é estranha, de disponibilidade, bem no meio do bar da boate, rodeada por estranhos, mas não chega a ser incômoda – não demais. Entre as normas do SSC, se inclui cuidar para que a amarração não sufoque a respiração ou pressione articulações e veias, o que poderia gerar riscos desnecessários. Otávio, em seu papel de Amo, ignora o barulho ao redor e cuida de cada nozinho, de cada detalhe, com o ar mais compenetrado do mundo, como fez a noite inteira. Uma verdadeira arte, sem dúvida. Pena que não dá para levar para casa…


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