Os tempos passam, as coisas mudam – diria o conselheiro Acácio mais à mão. E é a mais pura verdade: só os acácios não mudam, permanecem solenes e cabotinamente sempre idênticos a si mesmos. Digo isso porque fiquei pensando no quanto tudo mudou em nosso País e em nossas cidades desde os dias em que recebemos a visita do papa João Paulo II, em 1980. O Brasil que o novo papa vai conhecer agora, quando desembarcar aqui, é praticamente outro. Em todos os campos. Na dimensão religiosa, inclusive.
Sim. Vejamos o seguinte. No campo da religião, a missa e a macumba perderam terreno. Muito terreno. Tanto a Igreja Católica quanto os terreiros de Candomblé e os centros umbandistas assistiram a uma significativa – espetacular, mesmo – sangria ou deserção de adeptos. Houve (e continua havendo) a formação de um tremendo fluxo migratório em direção ao neopentecostalismo brasileiro, aos chamados templos evangélicos, que não tinham tanto peso em nosso ambiente (social, político, cultural) nos dias da passagem de “João de Deus” pelo País, em 1980. O papa Francisco vai aterrissar num Brasil diferente, com outro desenho religioso, outra configuração do mercado de bens simbólicos, outro sistema de relações e forças entre as suas diversas correntes de crença e culto.
Vou me concentrar aqui no Candomblé. Na década de 1970, em especial, o Candomblé experimentou processos de fortalecimento e expansão, projetando-se como nunca antes no cenário brasileiro. Principalmente em uma de suas vertentes tradicionais, o Candomblé jeje-nagô da Bahia, o culto dos orixás ganhou então muita gente e se firmou, em escala até então inédita nas grandes cidades brasileiras. Umbandistas e mais umbandistas se converteram ao modelo baiano, por exemplo. Mas não só. O Candomblé avançou de modo também historicamente inédito no espaço de outras classes sociais, deixando de se restringir praticamente às camadas mais pobres e humildes da população. Avançou, ainda, culturalmente, no contexto de uma subversão das hierarquias culturais brasileiras. Para falar em termos paulistanos, foi quando os orixás passaram a ter seus adeptos nos Jardins – e Xangô, a “fera faiscante”, passou a ser conhecido (e mesmo reverenciado) em lugares como a USP. E o processo se aprofundou em décadas seguintes, com terreiros sendo tombados pelo governo federal como monumentos, bens preciosos do povo brasileiro, peças de nosso patrimônio.
Quando João Paulo II desfilou de papamóvel por ruas de cidades brasileiras, a situação era essa. Uma Igreja Católica fortíssima e o Candomblé celebrado em meios populares e no ambiente das elites. E não havia animosidade alguma entre os dois polos. Na Bahia, o então abade do Mosteiro de São Bento, Dom Timóteo, frequentava tranquilamente o Terreiro da Casa Branca, onde chegaria a ser membro de uma comissão de defesa do templo (da qual também fiz parte), ameaçado pela especulação imobiliária. De outra parte, em conversas no Terreiro do Gantois, a ialorixá Menininha falava de sua admiração por João de Deus, afirmando não ter nenhuma dúvida de que aquele papa era filho de Oxalá, o grande Obatarixá da gente nagô, “sincretizado” na Bahia com Senhor do Bonfim, para cuja igreja a venerável mãe de santo enviava suas iaôs. Esse clima, hoje, não existe. Com a entrada em cena dos evangélicos, tudo virou guerra, enfrentamento, conflito. Pastores agridem terreiros, tratam sacerdotes candomblezeiros como filhos ou enviados de Satanás, assim como um pastor escandalosamente desequilibrado desferiu pontapés na imagem da Senhora Aparecida. Vale dizer, os evangélicos introduziram a violência – verbal e física – em um grau até então desconhecido na história das relações entre as formas religiosas existentes no Brasil. Uma tristeza, sim. Mas com um sucesso rápido e estrondoso. Hipnotizando multidões. Sobretudo, no âmbito das classes populares.
Nunca o panorama religioso brasileiro tinha sido tumultuado de tal forma. Eu me lembro de que, naquele início de virada evangélica, escrevi um artigo observando que nunca a cena religiosa do País tinha sido tomada, e com tanta rudeza, por uma gente que não fazia a mínima ideia do que fossem coisas como tolerância e cordialidade. Por pastores que não tinham sido educados para a convivência social e cultural. Mas o fato foi que o proselitismo predatório e agressivo teve um êxito que ninguém previra. Um êxito realmente espantoso, na sua larga drenagem de devotos do catolicismo, da Umbanda e do Candomblé. Já no ano 2000, as estudiosas (e pesquisadoras) Patrícia Birman e Márcia Pereira Leite publicaram um texto que trazia, como título, a pergunta: O que aconteceu com o antigo maior país católico do mundo?. Depois de um exame da espantosa propagação do neopentecostalismo pelo País, elas hesitam. Declaram que não é possível responder à pergunta de forma conclusiva. Mas observam que já não existia, então, “uma marca única capaz de expressar um destino religioso comum para a totalidade deste País”. Como o papa Francisco vai ver, se a cúpula local da Igreja não tentar esconder o sol com a peneira.
No caso do Candomblé, a situação apresenta um desenho interessante. Como já observei em algumas ocasiões, o Candomblé, hoje, anda com a bola cheia no campo da elite – e a bola murcha na várzea popular. Mães de santo são condecoradas (por sinal, Stella de Oxóssi, a Odé Kayodé, ialorixá do Axé do Opô Afonjá, foi eleita para a Academia Baiana de Letras), o número de livros e produções audiovisuais sobre os terreiros aumentou de forma impressionante, terreiros são objeto de políticas públicas desde meados da década de 1980, etc. Claro que subsistem terreiros pobres, acanhados, sem recursos, casebres em meio a favelas baianas, batalhando para sobreviver. Mas a realidade dos grandes terreiros da Bahia, pelo menos em alguns aspectos, é outra. No Gantois ou no Opô Afonjá, em dia de festa, é preciso chegar cedo, caso contrário não haverá lugar onde estacionar o carro. A vasta área do Opô Afonjá fica coalhada de automóveis reluzentes, muitos deles importados. As pessoas vestem roupas caras. E, em boa parte, nada tem de pretas. Por outro lado, os mais pretos e mais pobres tiraram o time. Saíram dos terreiros para os templos neopentecostais, onde são submetidos a ritos de exorcismo, para afastar os demônios que pululam nos terreiros.
Mas há outras coisas que pedem para ser ditas. Estranhamente, os terreiros ganharam adeptos como Duda Mendonça e Nizan Guanaes… e, justamente neste momento, perderam a guerra da comunicação para os evangélicos. É uma contradição curiosa – e que deve ficar registrada na história da propaganda e do marketing no Brasil. Já que recebem tantos benefícios astrais, como Duda e Nizan não foram capazes de criar uma contraofensiva publicitária em favor dos terreiros onde procuram se abrigar? Além disso, como disse, terreiros passaram a acolher muita gente famosa, poderosa e rica. Políticos de peso, empresários, ídolos da cultura de massa, etc. Mas isso não parece ter significado nada (ou, pelo menos, quase nada). Se aquelas pessoas ganham lucros espirituais e de orientação na vida, os terreiros não têm ganhado grande coisa com elas. Pelo contrário: o carrão importado estaciona no terreiro, mas a casa dos orixás continua caindo aos pedaços – e quem segura mesmo a onda, no fim das contas, são os fiéis mais humildes.
Bem. Aí estão alguns aspectos da paisagem religiosa brasileira que o papa Francisco vai encontrar em seu caminho. Com uma Igreja Católica claramente enfraquecida. Com o Candomblé em crise, pensando estratégias de sobrevivência. E com os evangélicos deitando e rolando. Intimidando e acuando candidatos a postos executivos em todo o País. À Presidência da República, inclusive. I
Os tempos passam, as coisas mudam – diria o conselheiro Acácio mais à mão. E é a mais pura verdade: só os acácios não mudam, permanecem solenes e cabotinamente sempre idênticos a si mesmos. Digo isso porque fiquei pensando no quanto tudo mudou em nosso País e em nossas cidades desde os dias em que recebemos a visita do papa João Paulo II, em 1980. O Brasil que o novo papa vai conhecer agora, quando desembarcar aqui, é praticamente outro. Em todos os campos. Na dimensão religiosa, inclusive.
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