Deus, ao que consta, é cada vez mais brasileiro. Basta sintonizar o futebol na TV para ver jogadores de futebol evangélicos ou não, depois de marcarem um gol, ajoelharem-se e olharem em direção aos céus em agradecimento, como se lá houvesse algo além de nuvens. A leitura é clara: marca gol quem tem fé. E Deus retribui com glória. Na contramão, nunca foi tão difícil ser ateu como hoje, pela pressão midiática. Na TV, canal sim, canal não, aparece alguém falando em Deus ou em Jesus, lendo a Bíblia, com a intenção de provar que quem crê é do bem e tudo dará certo em sua vida, enquanto os que os negam vão para o inferno. Claro que, por trás disso, não muito sutilmente, o mesmo sujeito que prega fornece em poucos minutos o número da conta bancária para o depósito do dízimo.
No estudo Novo Mapa das Religiões, do IBGE, a partir do último censo, aqueles que admitem o ateísmo ganharam mais expressão, após décadas em uma escala bem reduzida dos que assumiam essa posição publicamente, de 0,2% a 1,8%. Foi assim até a década de 1980. Segundo o instituto, os sem religião, que inclui também os agnósticos, representam 6,7% da população brasileira, uma minoria em uma cultura de maioria cristã, porém não desprezíveis em representatividade. A maior concentração de ateus se dá em três capitais: Boa Vista (Roraima) registrou percentual de 21,1%, seguida de Recife e Rio de Janeiro, ambas com 13,3% da população.
Esse fenômeno tem sido notado na criação de grupos organizados em comunidades virtuais na internet, graças ao anonimato e à facilidade de se encontrar pessoas que pensam da mesma forma. Principalmente nas redes sociais. No Facebook e no Orkut existem centenas desses espaços que compartilham frases provocativas do tipo “a inspiração da Bíblia depende da ignorância da pessoa que a lê” ou “você ou pode aceitar a ciência e encarar a realidade ou pode acreditar em anjos e viver em um mundo infantil”. Em fevereiro do ano passado, foi realizado em Brasília e em outros 21 estados o Primeiro Encontro Nacional de Ateus. “Precisamos sair do armário, mostrar que somos bons filhos, pais, que a moralidade independe de uma crença”, disse na época à IstoÉ a estudante Stíphanie da Silva, de 22 anos, que se identificou como membro da Sociedade Racionalista, que organizou a ação. Participaram da iniciativa cerca de três mil pessoas, em debates, palestras, bate–papos e até shows de humor.
No livro Sobre o Céu e a Terra, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco, fala dos ateus: “Quando me encontro com pessoas ateias, compartilho com elas as questões humanas, mas não toco de cara no problema de Deus, exceto no caso de falarem comigo sobre o assunto. Quando isso acontece, eu lhes conto porque acredito. O humano é tão rico para compartilhar, para trabalhar, que tranquilamente podemos complementar mutuamente nossas riquezas. Como sou crente, sei que essas riquezas são um dom de Deus. Também sei que o outro, o ateu não sabe disso. Não encaro a relação para fazer proselitismo com um ateu, eu o respeito e me mostro como sou. Na medida em que haja conhecimento, aparecem o apreço, o afeto, a amizade. Não tenho nenhum tipo de reticência, não diria que a vida dele está condenada, porque tenho certeza de que não tenho direito de julgar a honestidade dessa pessoa. (…) E caso tenha baixezas, como eu também as tenho, podemos compartilhá-las para nos ajudar mutuamente a superá-las”.
“Concordo com o que o senhor disse”, respondeu o rabino Abraham Skorka, que dialoga com ele no livro. “O primeiro passo é respeitar o próximo. Mas eu acrescentaria um ponto de vista: quando alguém diz ser ateu, acredito que está assumindo uma postura arrogante. A posição mais rica é a daquele que duvida. O agnóstico pensa que ainda não encontrou a resposta, agora o ateu tem 100% de certeza de que Deus não existe. Tem a mesma arrogância de quem garante que Deus existe, tal como existe esta cadeira sobre a qual estou sentado. Nós, religiosos, somos crentes, não damos por certo sua existência. Podemos percebê-la em um encontro muito, muito, mas muito profundo, mas nunca O vemos. Recebemos respostas sutis. A única pessoa que, segundo a Torá, explicitamente falava com Deus, cara a cara, era Moisés. Aos outros, Jacó, Isaac, a presença de Deus chegava por sonhos ou rezas. Dizer que Deus existe, como se fosse mais uma certeza, também é uma arrogância, por mais que eu acredite que Deus existe.”
Na verdade, o ateísmo é um tabu. A história mostra que poucos tiveram coragem de se declarar descrentes. Nesse universo, claro, não há espaço para quem diz sem mais nem menos: eu sou ateu. É difícil assumir que não crê numa divindade em um país onde tudo que acontece de bom é “graças a Deus”. Onde, para evitar desgraças, a autoridade manda “rezar”, onde no futuro as coisas vão melhorar “se Deus quiser”. Onde tem cruz em tudo quanto é lugar – no quarto do hospital, na delegacia de polícia, no tribunal, na Assembleia Legislativa, na Câmara Municipal, no palácio do governador. Cruz e uma Bíblia. Mas o Estado brasileiro não é laico? É. E não é.
Embora seja oficialmente, como pode ser laico se as cidades, ruas, empresas, hospitais têm nome de santo? São Paulo, Santo André, São Bernardo, São Caetano, São Sebastião, São Manoel, São Luís, Santa Rita do Passa Quatro, Santa Catarina, Santa Rosa do Viterbo. Se as festas mais populares, como as juninas, têm nomes de santo: São João, São Pedro, Santo Antônio? Se o nascimento e a morte de Jesus Cristo são os maiores feriados do ano? Curioso notar que cresce o número de famosos que se assumem assim. Deus, que Deus? A busca aos ateus começou quando Gilberto de Nucci, dentista e militante do PMDB desde criancinha, saiu com essa: “Os ateus são os caras mais inofensivos do mundo. Você não vê um ateu fanático, você não vê um ateu jogar ninguém na fogueira, você não vê um ateu tentando convencer à força outro cara a ser ateu, você não vê nada disso.
Mesmo assim, os ateus são execrados. Ora, por que não deixam os ateus em paz?”. Quando soube que a Brasileiros estava fazendo uma reportagem sobre ateus, O pintor, desenhista e programador visual Claudio Tozzi logo se lembrou do mais famoso arquiteto brasileiro: “Ninguém foi mais ateu do que Oscar Niemeyer. E sempre foi generoso. Deu um apartamento para o Prestes. Fez um projeto de graça para a casa de seu motorista. Deu dinheiro para exilados políticos. Essa é uma característica forte dos ateus: são generosos. O outro traço é a honestidade. Eles não saem por aí contando mentiras para as crianças sobre a origem do mundo e das pessoas no mundo”.
Richard Dawkins, alcunhado “o ateu mais famoso do mundo” e autor do best-seller O Gene Egoísta, explicou ao jornalista Ronaldo Ribeiro, da Folha de S.Paulo, no começo de abril, que não se deve levar a sério a existência do deus nórdico Thor ou de Zeus ou de Dionísio ou de Shiva. “Até que tenhamos sérias evidências de que algum deles existiu ou existe, não perdemos tempo com isso. Por que deveria ser diferente com o Deus cristão ou com o judeu ou com o muçulmano?” Sobre se quem acredita em Deus é mais feliz, Dawkins respondeu que os países que apresentam melhores índices de desenvolvimento humano e, em tese uma melhor condição para a existência da felicidade, são aqueles com o maior número de ateus do mundo. “Seus cidadãos encontram bem-estar, alegria e consolo nas possibilidades sociais, culturais e sociais concretamente disponíveis em seus países, não em entes divinos.”
O editorialista da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman, frequentemente se assume como ateu nas páginas do jornal. Sobre o que pensa e o faz ateu, diz ele: “É difícil falar em ‘o ateu’. Isso é só uma abstração que cada um define como quer. Se você incluir nessa categoria Stálin e outros ditadores comunistas, vai encontrar uma boa dose de intolerância. Se só puser gente como eu, terá um resultado bem mais benigno. Assim, em primeiro lugar, eu evitaria o uso de estereótipos não mensuráveis. Não há dúvida, contudo, de que existe forte preconceito contra ateus. Há também algumas pesquisas americanas que mostram que a chance de um ateu ser eleito para a Presidência dos Estados Unidos é menor do que a de categorias bastante vilipendiadas. Não me lembro de ter lido nenhuma explicação convincente para esse preconceito. Há elementos meio óbvios, como alguns milênios de pregação antiateia, mas seria realmente interessante investigar mais a fundo por que os ateus são tão odiados”.
O que intriga a todos é a forma de tratar a quem não acredita em Deus como delinquente. O apresentador José Luiz Datena, da Rede Bandeirantes, não costuma usar panos quentes para difundir seu preconceito. Se não for agressivo, perde sua essência. Tem de estar sempre no ataque. Não pode fazer média. Só mídia. Em julho de 2010, ele não economizou impropérios a respeito dos ateus. Mostrou na tela um crime bárbaro e sapecou: “Um sujeito que é ateu não tem limites, e é por isso que a gente vê esses crimes aí. Esse é o garoto que foi fuzilado. Então, Márcio Campos, é inadmissível; você também, que é muito católico, não é possível, isso é ausência de Deus, porque nada justifica um crime como esse, não, Márcio? É por isso que o mundo está essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo mais, entendeu? São os caras do mal. Se bem que tem ateu que não é do mal, mas é… O sujeito que não respeita os limites de Deus é porque, não sei, não respeita limite nenhum”.
Foram 50 minutos dessa malhação dos ateus. O Ministério Público Federal reagiu. Três anos depois, a Bandeirantes foi condenada. Terá de preencher 50 minutos do programa de Datena com esclarecimentos a respeito da liberdade de acreditar ou não em Deus. Para o procurador que atuou no processo, Jefferson Aparecido Dias: “A emissora prestou um desserviço para a comunicação social, uma vez que se portou de forma a encorajar a atuação de grupos radicais de perseguição a minorias, podendo, inclusive, aumentar a intolerância e a violência contra os ateus”. Ainda não se sabe quando a pena será aplicada.
Em uma nota no seu blog de 1o de abril deste ano, acerca da morte de um festejado empresário carioca, Leonídio Ribeiro Filho, o colunista Ricardo Noblat escreveu: “Mas era na vida pessoal que sua personalidade era mais marcante. Filho de uma marchand com um médico, era culto e interessado. Homem de muitas amizades, passava uma energia radiante. A atriz Maria Ribeiro, sua filha, já prepara um documentário sobre a vida dele. Diz ela sobre o pai: ‘Tricolor doente e ateu convicto, aproveitou os últimos dias para dizer que não queria velório, enterro ou pessoas chorando a sua morte, que chegou às 23h50m de sábado, aos 79 anos’”. Pois é, um ateu de sucesso, reconhecido socialmente, aplaudido como um ser humano qualquer com méritos para tal. Finalmente. O governador da Bahia, Jacques Wagner fez uma declaração atípica ao se referir à seca no nordeste: “Como eu não acredito em Deus, acho que a culpa é das mudanças climáticas”. Um judeu ateu, sem dúvida.
Deixe um comentário