A felicidade nunca foi tanta para o paulistano Walter Franco. É ele quem diz. Ainda sob o impacto da apresentação no palco do Theatro Municipal de São Paulo durante a última Virada Cultural, em maio passado, ele afirmou à Brasileiros que acredita viver o melhor momento de sua carreira, mesmo sem lançar um disco há 13 anos. Aos 68 anos, foi pontual, começou o show – acompanhado da banda de seu filho Diogo Franco – às 6 horas da manhã e viu emocionado uma plateia lotada, com três gerações de fãs, alguns bem garotos, instigados pelos pais ou pelos avós. A proposta da organização da virada foi para que ele cantasse ao vivo todas as faixas do seu mais badalado disco, Revolver (1975). “Gostaria de ter ensaiado mais, porém no palco tudo funcionou bem e o horário foi uma experiência interessante. Franco nunca vendeu muitos discos e nem tem fã-clube. Carrega consigo, entretanto, uma leva de dedicados seguidores, que ouvem seus raros discos como celebração da ousadia de se fazer música sem obediência ao convencionalismo ou às regras de mercado.
Há quatro décadas, Franco permanece como um autor singular, de vanguarda, provocativo, divertido em fundir a cabeça de todos. Não esconde a surpresa – e certo orgulho – ao lembrar que o esquartejador Chico Picadinho disse em uma entrevista que ouvia, na prisão, um disco seu. Considerado por alguns críticos e pares respeitados – na linha de Caetano Veloso – como gênio, esse senhor surpreende pela humildade. Pede desculpa ao repórter o tempo todo, caso suas respostas não estejam agradando. “Sinto que estou sendo redescoberto, que há público para mim”, observa. O entusiasmo é tanto que prepara uma série de shows para comemorar os 40 anos de seu primeiro disco, Ou Não, a gravação de um DVD ao vivo e anuncia que tem um disco inédito, fechado, com 12 faixas. Ele também negocia com as gravadoras a liberação para que todos os seus álbuns – hoje esgotadíssimos – sejam lançados em CD ao mesmo tempo. Walter Franco acredita que tudo isso acontecerá ainda ainda neste ano. “Por mais que eu me esconda, creio que tem acontecido um fortalecimento da minha imagem, do meu trabalho.”
Franco deixa perceber que passou por apertos financeiros nas duas últimas décadas. Por um tempo, seus shows rarearam e ficaram vazios por falta de aposta dos promotores, sem qualquer divulgação. Há alguns anos, felizmente, sua vida começou a tomar outro rumo. Tem feito uma média anual de 12 shows. “Sempre vivi de música, desde que nasci, mas eu vinha muito fora da mídia e sem isso fica difícil”, afirma ele, que tem pouco da imagem que criou de um artista zen, inovador e polemista, daqueles que vivem trancados experimentando sons tirados dos instrumentos ou da sonoridade das palavras e dos versos. Não é bem assim.
No seu apartamento, no bairro da Bela Vista, centro de São Paulo, uma pilha de jornais ao lado do sofá denuncia que o dono é um dedicado leitor de notícias de política e cultura – que também consome pela internet – e um consciente cidadão que se exalta ao falar da corrupção política e do processo de desumanização das pessoas, cada vez menos sensíveis no respeito ao próximo, na gentileza, na boa educação – coisas que ele trouxe do berço.
Tudo isso, na sua opinião, tem a ver com a violência “sem limites” que tomou conta das grandes cidades brasileiras, principalmente sua querida São Paulo. “Eu nem sabia dos fatos lamentáveis que tinham ocorrido na madrugada da Virada Cultural e, entre uma música e outra, falava que vou passar toda a minha vida pregando a não violência.” O compositor fica indignado ao falar do assunto. Lamenta que o poder público parece ter perdido a luta contra a banalização das agressões e dos assassinatos. “A violência é a ausência de cultura, de um processo de autoconhecimento que deveria haver de cima para baixo. Não há mais senso do coletivo, ninguém se preocupa com a vida e daí surge a violência.” Ele acredita que, em parte, o que acontece hoje é uma herança da ditadura militar, que tirou dos ensinos básico e médio disciplinas humanistas, como Filosofia, Psicologia etc., e tinham aproximação com a Literatura e a Poesia. Ele tem outra teoria: “Os adultos não ligam mais para a língua. O que o ser humano tem de melhor é a palavra. A nossa língua em especial é rítmica, harmônica, cheia de pausas e silêncios, temos uma riqueza extraordinária de sotaques por todo o País. Não é uma coisa pretensiosa ligar tudo isso a uma maior comunicação para acabar com a violência”.
Em seguida, Walter Franco volta à música. Apenas um compacto e seis discos ao longo da carreira não é algo que o incomode. Pelo contrário. É uma obra compacta, bem fechada, completa e acabada. “Nunca fiz um disco por ano, acho interessante esse caminho, o acaso me conduziu nesse sentido. Com isso, se deu um mistério em torno desse Walter Franco que eu tanto conheço.” No fundo, tem segurança na carreira que construiu, na importância que adquiriu para a música popular brasileira, como um artista original e solitário, que não seguiu e nem criou escola. O que não interfere em nada no seu valor. E brinca com a frase que sua mãe, dona Alice, gostava de dizer: “Meu filho, você não é flor que se cheire. Mas também não é muito porcaria não”.
Antes de cair de cabeça na música, fez vestibular e entrou para a Escola de Arte Dramática, criada e dirigida por Alfredinho Mesquita. Lá, foi contemporâneo de Ney Latorraca, com quem fez figuração em uma peça, além de Carlos Alberto Riccelli e Helena Rocha. Mas a música o arrastou quando soube do Primeiro Festival de Música Universitária, da TV Tupi, em 1968. Inscreveu a música Não se Queimam Sonhos, influenciada por Geraldo Vandré – que, para seu espanto e alegria, escolheu-a para interpretar. “Eu estava ainda procurando minha identidade musical, era um canto que lembrava muito ele”, admite. Na mesma época, Vandré competia noutro festival, o Internacional da Canção, com Caminhando – Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, a música de protesto mais importante da história do Brasil. Em 1969, conseguiu classificar no mesmo evento Pátio dos Loucos, interpretada por Célia. O maestro Pocho, que fez o arranjo, rasgou a composição de elogios. Franco, que era intuitivo e autoditada, emocionou-se a ouvir o comentário: “Muito interessante, com quatro divisões dentro da mesma música, texto bastante denso, que permitiu um arranjo climático”.
Célia virou sua grande amiga. Alguns anos depois, ela o chamou para acompanhá-la em passeio pelo centro de São Paulo. Levou-o ao prédio da gravadora Continental, na rua 7 de Abril. Ela havia armado com o diretor Rodrigues Pozzo para lhe dar o maior presente sua vida: um contrato – que estava pronto – para lançar seu primeiro álbum (LP). Quando isso aconteceu, Franco era o nome mais polêmico e comentado da música brasileira, envolvido em um episódio obscuro. Sua sua música Cabeça foi classificada para o Festival Internacional da Canção da Rede Globo de 1972 – o mesmo que lançou Hermeto Pascoal, Alceu Valença e Raul Seixas, de quem se tornou grande amigo. Diz a lenda que Décio Pignatari, Rogério Duprat e Julio Medaglia, integrantes do júri, foram destituídos juntamente com os outros jurados pela direção do festival porque ousaram indicar seu nome como vencedor. “Não tinha precedente na música popular brasileira. Nem os protagonistas da Tropicália tinham ido tão longe”, escreveu depois seu amigo Augusto de Campos. “Era música concreta ‘in concreto’.”
Exemplos de casa |
Ao ser perguntado sobre influências em sua música, Walter Franco aponta um único nome para a carreira que seguiu: o de seu pai, o jornalista, escritor, poeta e político Cid Seixas (1904-1972). E nada mais. “O amor pela palavra foi o que herdei dele, apesar de eu ser mal comportado nesse hábito. Meu pai foi o meu caminho maior, um homem que amava a poesia e nos presenteava com versos em datas especiais.” Dele veio quase tudo: a paixão pela música, pela literatura e poesia e os valores morais e éticos que até hoje o acompanham. Da mãe, Alice, ele herdou a sabedoria que expressava na visão poética de sintetizar as coisas e ensiná-las aos filhos – Walter era o caçula, sete anos mais novo que Cícero. “Ela dizia a coisa certa, no momento certo.” Uma dessas mensagens ele nunca esqueceu: “Quando estiver sozinho, aja sempre com a mesma espontaneidade de quando estiver acompanhado”. Do pai ficaram também outros aprendizados. “Eu fico irritado quando dizem que não existem políticos honestos. Meu pai foi deputado (estadual) por várias legislaturas e deixou para a família apenas um apartamento financiado que nem terminou de pagar, porque morreu antes.” Quando isso aconteceu, Cid Franco havia sido cassado pelo golpe militar de 1964. Perdeu o mandato, foi preso e passou dificuldades por um bom tempo para suprir a família. A experiência ele relata no livro Anotações de um Cassado (Martins, 1965). “Sofremos muito por causa disso”, lembrou o filho. Mas nunca perdeu a dignidade em que pautou toda a sua vida. Criado na rua Pedro Ivo, bairro do Paraíso, Walter Franco cresceu em uma biblioteca de seis mil volumes. A mesma onde seu pai recebia amigos notáveis, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e seu maior amigo, Aristides Lobo, lenda do jornalismo paulistano, redator da antiga Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo – que mantém um busto seu no salão de entrada. Lobo adorava o menino. “Hoje não vim te visitar, Cid, vim conversar com ele”, dizia, e apontava para Walter. Sua estreia na política aconteceu como vereador do Partido Socialista Brasileiro (PSD), do qual nunca se afastou e que abrigava, segundo o filho, “intelectuais de primeira grandeza”, como João Mangabeira. “Naquela época, a política era feita de maneira um pouco mais nobre”, observa o compositor. A perseguição política a Cid Franco, na verdade, começou em 1937, quando foi instituída a ditadura do Estado Novo. “Meu pai veio da esquerda democrática e, por isso, acabou preso na cadeia do Parque Dom Pedro por um bom tempo.” Ao sair, para sobreviver, com ajuda de amigos, passou a escrever textos com o pseudônimo de Rodrigo Diaz de Bivar, em homenagem ao líder militar espanhol El Cid. Como radialista, foi precursor dos programas literários, de divulgação de livros, na Rádio Cultura. Trabalhou também na Folha da Manhã, O Estado de S. Paulo e Imprensa Oficial. Atuou como advogado e professor de Filosofia e Psicologia. No papel de tradutor, verteu para o português uma das obras mais importantes do século 20, Judeus Sem Dinheiro, de Michael Gold. Era, enfim, um intelectual completo, um homem extraordinário e, naturalmente, uma referência para os filhos. |
A “vítima” confirma a história. “Medaglia me disse que quando o júri ouviu Cabeça, no processo de seleção, todos aplaudiram o gravador.” O registro era precário, em dois canais, mas só saiu em um na hora da audição. Só pouco depois um técnico percebeu e a música foi repetida. “Essa polêmica do FIC perdura até hoje e é uma faca de dois legumes”, brinca ele. “Ao mesmo tempo, se tivesse vocação para Dom Quixote talvez me sentisse honrado e aplaudido pelos meus moinhos de vento”, sorri. “O júri, presidido por Nara Leão, era a inteligência que soube valorizar aquela safra nova que surgia.” Nesse contexto, Cabeça causou um impacto avassalador. “Da noite para o dia, eu não podia sair de casa, foi uma loucura.” Para o bem e para o mal. A reação da plateia no Maracanãzinho veio com uma vaia ensurdecedora, que abafou os aplausos, em menor número. “O júri, então, deu o primeiro lugar a Cabeça, e Roberto Freire tentou entrar no palco para anunciá-la, mas virou a maior confusão.”
Seria ousadia demais premiar um cabeludo desconhecido que aparece no palco com uma barba imensa e vestido de pijama, sem instrumento nenhum, só com a sua presença e cantando com um teipe gravado em casa com vários timbres de vozes, feitos por ele mesmo a partir da experiência de ator de teatro. E a letra não podia ser mais subversiva: “O que tem dentro dessa cabeça? Saiba que ela pode explodir. Ou não”. Ninguém entendeu nada. “A ideia era colocar várias emoções dentro daquela gravação.” Até que Solano Ribeiro, diretor do festival, teria chamado Franco nos bastidores e dito: “Está sabendo que vai ser uma vaia tremenda que pode te prejudicar para sempre?”. A mensagem era clara, ele não deveria ganhar. Os dois primeiros lugares ficaram, enfim, com Fio Maravilha (Jorge Ben), com Maria Alcina e Paulinho da Costa na percussão; e Diálogo (Baden Powell e Paulo César Pinheiro), com Tobias e Cláudia Regina. “Houve uma censura política, não estética. Disseram que a ordem veio de cima, dos militares, porque minha postura foi de desafio às instituições, além de eu ser filho de um político cassado pelo regime militar.”
Um momento que ele não esqueceria foi quando Dorival Caymmi, com a doçura que lhe era peculiar, disse nos bastidores: “Fique calmo, Walter, eu já passei por isso, vai dar tudo certo”. O que ele pretendia com Cabeça era fazer uma “revolução benigna, uma tentativa de se apurar os sentidos, influenciado pelas revoluções do mundo”. As influências, diz ele, vieram da convivência com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, amigos de seu pai, da leitura de seus livros, da Poesia Concreta e do Tropicalismo – “no trato com as palavras, nas tentativas de rompimento”. Ele lamenta que o mundo tenha mudado muito nessa busca inquieta por desafios. “Hoje, o pessoal da música está navegando, altos cachês num País entregue a um abandono cultural, que leva à promiscuidade, a esse apelo a uma natureza que degenera com muita facilidade. É preciso entender que temos vários Brasis, não só esse que vive à beira da praia, em uma divisão que há com poucas opções para o povo”, avalia. “Existe uma espécie de poder subliminar agindo e tomando conta de tudo. O alimento da alma não existe. As pessoas são conduzidas como crianças que atravessam a rua.” Para ele, o verbo da moda é amealhar. “As pessoas valem pelo que têm, não pelo que são, enquanto o povo está ficando com a cara triste.” Por isso, o discurso do “eu sou mais eu” o incomoda muito.
O resultado em uma competição foi melhor em 1975, no Festival da Abertura, da Rede Globo. Ficou em terceiro lugar com Muito Tudo, “apesar da minha provocação com o limite do silêncio”. Enquanto isso, lançava discos. O primeiro compacto veio em 1972, com as duas faixas da novela Hospital, da TV Tupi. Cabeça e Me Deixe Mudo foram descritas por Augusto de Campos como “a explosão da letra em estilhaços de poesia e a sua implosão nos ecos do silêncio, racharam a cabeça da música popular”. Ambas fazem parte do primeiro LP, o “disco branco” Ou Não, gravado em fins de 1972 e editado no ano seguinte – e emprestou a Caetano o título que virou expressão muito usada por ele. “Quando saiu o disco, tive contato com Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Tom Zé e Caetano, eles vieram com aconchego. Lembro do encontro na casa de Tom Zé, em Pinheiros, todos se mostaram surpresos como eu havia gravado. Queriam saber como cheguei àquelas ‘soluções’, se eu tinha ouvido Jonh Cage, e eu disse que não, era tudo intuitivo.”
Revolver (1975), para Campos, continuou a antitradição do álbum anterior, com as explosões/implosões de seus mantras, do primal “feito gente” ao quase mudo “e(ter)na(mente)”. Dois novos passos foram dados com Respire Fundo (1978) e Vela Aberta (1979), apesar de ignorados pela mídia. Voltou com Walter Franco (1982) e Tutano (2001), que considera sua obra-prima. “Sempre fui muito desapegado. Eu escolhi a estrada mais difícil, fazer música da forma mais complexa. Estou sendo redescoberto porque acho que as pessoas precisam de um Revolver em suas vidas”, finaliza ele, antes de explodir numa deliciosa gargalhada.
O hino das diretas e a vigolância do SNI |
Uma experiência inimaginável para Walter Franco foi cantar para uma plateia de 1,5 milhão de pessoas. Aconteceu no dia 16 de abril de 1984, no lendário comício das Diretas Já – movimento de oposição política e da sociedade civil para que o Congresso Nacional aprovasse a volta das eleições para presidente da República por meio do voto popular. Franco se jogou na luta e compôs seu hino. Eram apenas dois versos, convencionais: “Seja feita a vontade do povo: liberdade/nas urnas o voto popular/Pra começar tudo de novo liberdade/Pra poder dormir e acordar/Pra começar tudo de novo, liberdade/Pra poder dormir e acordar/Com eleições diretas de verdade/e nas urnas o voto popular”. Por estar emocionalmente envolvido, explica ele, foi fácil fazer a música. “E para apresentar aos organizadores, procurei um grande amigo, nosso querido e saudoso Rogê Ferreira. Lá fui eu a uma reunião na Câmara Municipal, violão embaixo do braço apresentar a minha música aos representantes de todos os partidos”, recorda. Sinfonia das Diretas, seu título, foi escolhida por uma comissão supra partidária. “Foi minha contribuição para a campanha. Digo com orgulho, sem cobrar um tostão sequer.” A faixa foi gravada na cidade de Tatuí com a Orquestra e Coral em um especial da TV Cultura. “Participei da maioria dos comícios no Estado de São Paulo, em algumas apresentações, só com voz e violão. Eu me envolvi nessa odisseia com muito orgulho e posso falar por muitos dos meus amigos, músicos, cantores, compositores, atores e artistas de todos os matizes. O que ele não sabia era que o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão que monitorava a vida de brasileiros que considerava inimigos da ditadura, estava de olho nele. Todos os seus passos durante a campanha das Diretas foram acompanhados e suas atividades identificadas, assim como de outros artistas envolvidos no movimento. |
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