No fim da vida, quando algum amigo decidia ir à Europa, a italiana radicada em São Paulo Lina Bo Bardi (1914-1992) logo resmungava: “Para quê?”. Para ela, o velho continente estava engessado com o peso do passado, e era em países como o Brasil que havia espaço para a criação de coisas originais. Sobrevivente do terror da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a arquiteta se mudou para a capital paulista em 1946, fez do Brasil sua pátria de escolha e logo se tornou uma apaixonada pela cultura popular do País. A partir de 1982, no recém-inaugurado SESC Pompeia – com projeto de sua autoria –, Lina pode materializar em uma série de exposições o seu fascínio pelo universo criativo brasileiro. É uma dessas mostras, a célebre Mil Brinquedos para a Criança Brasileira, que ganha agora releitura luxuosa no mesmo SESC Pompeia, para fechar o ciclo de comemorações dos 30 anos da unidade.
Com seis mil peças, escolhidas pelos curadores Gandhy Piorsky e Renata Meirelles, Mais de Mil Brinquedos para a Criança Brasileira se propõe a atualizar as reflexões levantadas por Lina, além de diversificar os temas do debate. Enquanto a arquiteta basicamente contrapunha objetos fabricados em série a peças criadas artesanalmente Brasil afora – para mostrar como a sabedoria popular não perdia em criatividade e originalidade para o design industrial –, a nova exposição acrescenta como pilar fundamental o poder de criação e interpretação das próprias crianças. Ganham espaço, portanto, brinquedos construídos por elas mesmas, além de instalações interativas e peças eletrônicas. “Na verdade, essa mostra fala muito mais da imaginação da criança do que do brinquedo em si”, explica Piorsky.
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Para os curadores, o ponto de partida é a concepção de que a criança não é passiva em relação ao mundo e à cultura. Ou seja, ela cria suas próprias narrativas, ressignifica objetos e atribui a eles seus próprios valores. Piorsky concorda, no entanto, que atualmente as crianças têm lidado em maior quantidade com brinquedos que modulam a imaginação e rapidamente se esgotam, dado o enorme apelo ao consumo a que são submetidas. “Claro que a cabeça das crianças transcende isso tudo, mas são produtos com os quais há menos espaço para criar em cima”, diz ele. “De qualquer jeito, a necessidade delas em brincar, de subverter o que o mundo está propondo, isso não morre nunca”.
O brasileiro
Apesar do nome da exposição, tanto Piorsky quanto a coordenadora de programação do SESC Pompeia, Ilona Hertel, acreditam que é impossível falar de “uma” criança brasileira, de modo genérico. “Até aqui em São Paulo a criança que mora nos arredores do SESC Pompeia tem um conjunto de relações sociais completamente diferente da criança que vive em São Miguel Paulista ou no Morumbi. Sobre agrupamentos humanos, dificilmente você pode fazer afirmações definitivas”, afirma Hertel. Por isso, a mostra reúne desde brinquedos dos índios do Xingu até criações de comunidades de imigrantes alemães do Rio Grande do Sul. Passa ainda por objetos das mais variadas regiões do País.
Dividida em espaços temáticos, que ocupam ao todo 2 mil m2, a mostra tem direção de arte e cenografia de Vera Hamburger e apresenta obras originais de artistas como Guto Lacaz e Radamés Ajna, e de artesãos como Mestre Molina e Mestre Saúba. Há também uma seção onde é possível acompanhar as etapas do processo produtivo de peças industriais. Plural, diversificada e capaz de propor debates de interesse de toda a sociedade, Mais de Mil Brinquedos para a Criança Brasileira não é apenas uma exposição infantil, mas com foco em públicos de todas as idades. Até porque, a exposição apresenta brinquedos das mais variadas épocas – há até uma boneca grega do século 5 a.C., que já estava na mostra de 1982 –, o que, segundo Piorsky, deve tocar os visitantes de todas as gerações.
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