Se a tragédia constrói o mito, o de Malcolm X (1925-1965) começou a nascer na tarde de inverno do domingo 21 de fevereiro de 1965, no Grand Ballroom, um secular espaço de festas no Harlem, em Nova York. Naquele dia, o lugar estava reservado para mais uma reunião da Organização para a Unidade Afro-Americana (Organization of Afro-American Unity, OAAU), grupo político do bairro liderado por ele. Até as 15 horas, Malcolm X, de 40 anos, estaria morto, vítima de um plano ousado, executado por cinco homens da organização Nação do Islã, com a qual tinha rompido fazia algum tempo. Levou 16 tiros calibres 38 e 45, na frente da mulher Betty, que estava grávida, e de suas quatro filhas.
Registrado em cartório apenas como Malcolm Little, o líder negro era filho de uma família pobre, nascido em uma pequena cidade do centro-oeste americano. Antes de se transformar em um dos personagens mais importantes e controversos da história americana, passou por uma vida intensa.
Na juventude na década de 1940, foi ladrão, agenciou prostitutas e se tornou viciado em drogas, o que acabou por levá-lo à prisão. O horror que viveu na cadeia – por não gostar de religião, era chamado de Satã – o fez abandonar o destino traçado de criminoso. No confinamento da cela e nas conversas com outros presos, descobriu-se orador brilhante, graças às leituras autodidatas e aos ensinamentos do Corão.
Ao sair, aderiu ao islamismo e começou a pregar contra o racismo e a injustiça social. Pelo seu estilo provocador, em que defendia o confronto armado contra os brancos, o então religioso muçulmano virou ativista político. Na prática, defendia o olho por olho contra organizações clandestinas de brancos que assassinavam negros. Malcolm X viveu nesse papel apenas dez anos, porém tempo suficiente para incendiar os Estados Unidos. Com uma confiança fora do comum no que dizia, morreu como ministro do Templo nº 7, sede de uma seita islâmica, a Mesquita Muçulmana (MMI).
Os membros da entidade, apelidada pela imprensa de “muçulmanos negros”, afirmavam de modo hostil serem os brancos demônios. Ao mesmo tempo, defendiam que os negros americanos descendiam de certa tribo asiática perdida de Shabazz, escravizada na “selva racial da América”. Daí a rejeição por parte de seus convertidos dos “sobrenomes de escravos” que carregavam. Assim, substituíram pela letra “X”, símbolo do desconhecido, para que alcançassem a salvação. Nascia a identidade de Malcolm “X” mais conhecida. Tanto ele quanto os demais, após anos de dedicação pessoal e crescimento espiritual, receberiam seus sobrenomes “originais” de volta, de acordo com a verdadeira identidade asiática.
Como porta-voz ativo dos muçulmanos convertidos da América no momento em que crescia no país o movimento contra o racismo e pelos direitos pregados para todos no coração da democracia do mundo, Malcolm X ficou conhecido pelas críticas desafiadoras aos líderes dos direitos civis e aos políticos brancos, postura que o fez admirado em todo o mundo por grupos radicais dos mais diversos gêneros e ideologias. Sua coragem e firmeza impressionavam. E não vacilava em tomar decisões, mesmo polêmicas. Em março de 1964, tinha anunciado sua independência da Nação do Islã Perdida e Reencontrada (NOI) e logo estabeleceu seu grupo espiritual para abrigar membros da NOI que tinham deixado a seita por solidariedade a ele.
Apesar das mudanças em seu discurso, Malcolm continuou a fazer declarações polêmicas. “Haverá mais violência do que nunca este ano”, disse a um repórter do jornal The New York Times. E acrescentou que era melhor que os brancos entendessem isso, enquanto havia tempo. O chefe da polícia de Nova York, por causa dessa declaração, rotulou Malcolm X de “outro que se diz ‘líder’ e defendeu o derramamento de sangue e a revolta armada”. Malcolm não recuou e falou que a maior homenagem que alguém poderia lhe fazer era chamá-lo de irresponsável, porque responsáveis, para eles, eram os negros subservientes às autoridades brancas – “negros Pai Tomás”.
Em abril de 1964, o pastor acreditou ter uma revelação espiritual ao viajar para o Oriente Médio e visitar a cidade sagrada de Meca. Ao retornar, anunciou que se convertera ao islã ortodoxo. Como consequência, rejeitou vínculos com a Nação do Islã e seu líder Elijah Muhammad. E destacou sua oposição a qualquer forma de fanatismo e intolerância. Nesse ponto da história, Malcolm X tomou outro rumo e esse aspecto se tornou um dos estímulos para que o historiador Manning Marable, especialista em assuntos afro-americanos, decidisse recontar a vida do líder.
Ao mesmo tempo, debruçou-se sobre a autobiografia do personagem, escrita com Alex Haley e, em sua opinião, marcada por confusões de datas, nomes e informações. Marable fez uma investigação minuciosa para construir esse retrato completo e revelador de episódios pouco conhecidos da vida de Malcolm antes da fama. E como mudou nos últimos anos. “Ele se dizia ansioso para cooperar com os grupos de direitos civis e trabalhar com qualquer branco que, genuinamente, apoiasse a causa dos negros americanos”, escreveu o historiador. “Apesar desse reconhecimento, continuou a fazer declarações polêmicas, como convocar os negros a formar grupos de tiros para proteger suas famílias de ataques racistas e condenar os candidatos à presidência de grandes partidos, Lyndon Johnson e Barry Goldwater, por não oferecerem escolha aos negros.”
Marable descreve com precisão o dia da morte de Malcolm X, quando uma série de acontecimentos ajudou no êxito dos executores. Estranhamente, naquele dia a polícia não repetiu o ritual de colocar dez policiais na entrada do local da reunião para garantir a segurança e a ordem pública. Apesar do recente ataque a bomba e das ameaças de violência, Malcolm tinha insistido para que ninguém da sua equipe de segurança, à exceção do chefe Reuben X Francis, portasse armas naquele domingo. Dois homens criaram um tumulto no meio da plateia, para desviar a atenção, enquanto três outros se levantaram da primeira fila e o alvejaram com eficiência.
Morria o homem, nascia a lenda. “Na turbulenta esteira de sua morte, os discípulos de Malcolm adotaram o slogan Black Power e o elevaram à condição de santidade laica. No fim dos anos 1960, ele encarnava o ideal de negritude para uma geração. A mesma imagem correu o mundo. Malcolm denunciou os custos psicológicos e sociais que o racismo impusera a sua gente. Também era admirado como homem de ação intransigente, o oposto dos líderes negros não violentos e de pensamento voltado para a classe média, que tinham dominado o movimento de direitos civis antes dele.” Marable queria esmiuçar esse perfil e fez um livro indispensável. “A metamorfose tardia de Malcolm, de raivoso militante negro para ícone multicultural americano, foi produto do êxito extraordinário de sua autobiografia, lançada nove meses depois de sua morte.”
Não que o livro tivesse difundido essa faceta. A transformação se deu no próprio pastor, à medida que recordou sua vida, ações e conceitos. O historiador, no entanto, desconfiava das memórias de Malcolm X, embora jamais questione sua relevância. “Uma leitura mais aprofundada do texto também revela numerosas inconsistência no tocante a nomes, datas e fatos. Como historiador e afro-americano, fiquei fascinado. Quanto do que está ali não é verdade e quanto não foi contado?” A conclusão a que chegou foi que numerosas personagens apareciam nas metamorfoses sofridas por ele. A mesma personalidade contestadora, porém, sempre esteve por trás das máscaras sociais usadas por Malcolm. Para ele, esses nomes de sonoridades e sentidos tão contrastantes indicavam os rumos contraditórios assumidos por ele até o encontro definitivo com a morte.
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