O coração e a mente de Peter Davis

É segunda-feira à noite, no Village, bairro boêmio em Nova York. Peter Davis entra apressado no prédio da New School, considerada uma das universidades mais liberais dos Estados Unidos. Com a bolsa a tiracolo, seguindo a moda estudantil, ele cumprimenta sorrindo os alunos que lotam a sala para ouvir o jornalista e documentarista que inspirou Michael Moore a fazer cinema. Aos 70 anos, com voz suave e palavras certeiras, Davis cativa uma audiência que, em sua maioria, até um mês antes, nunca tinha ouvido falar em Corações e Mentes (1974), o controverso documentário sobre o Vietnã que denuncia e questiona a campanha mentirosa de cinco presidentes norte-americanos para manter os Estados Unidos na guerra. E é a memória, ou melhor, o mal que a falta dela está fazendo ao seu país, um dos temas da palestra e das conversas que, desde esse dia, passei a ter com o ganhador do Oscar de melhor documentário em 1975.
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e aquele general alto como o John Wayne, que se vira para mim e diz: “Meu pessoal me disse que seu programa é incorreto”. E eu: “Não, senhor”. “Injusto.” “Não, senhor.” “Desonesto.” “Não, senhor.” “Então, você está me dizendo que o filme é correto?” “Sim, senhor.” “Justo?” “Sim, senhor.” “Honesto?” “Sim, senhor.” Respondi como se fosse um soldado. Ele virou para mim e disse: “Tudo bem, vou dar a entrevista”. Fizemos a entrevista. Eu já havia perguntado tudo o que queria. E quem provocou a tão famosa declaração foi o operador de som que queria saber o que o general, um homem tão viajado, pensava sobre as pessoas dos lugares mais diferentes do mundo. Bem, o que se espera como resposta é algo do tipo “apesar de tudo, todo mundo é igual”. Mas ele começou: “Os orientais não dão o mesmo valor à vida que os ocidentais” Aí parou e disse que queria repetir o tal trecho. Eu pensei: o general refletiu e vai mudar a frase. Não, ele ia repetindo a mesma declaração quando o rolo do filme acabou! Eu pensei: Bem até trocarmos o rolo Westmoreland vai pensar de novo e Ele repetiu pela terceira vez a mesma frase! O outro detalhe curioso é que para conseguir a entrevista eu tinha prometido algo que um jornalista nunca deve prometer, mas como eu não estava trabalhando para uma rede de TV, prometi que não usaria nada que o general Westmoreland se arrependesse de ter dito depois da entrevista. Semanas depois, o telefone tocou. O general começou: “Peter…” Eu gelei, pensando que ele ia me dizer para não usar a tal frase. Que nada! Ele queria que eu não usasse um trecho em que falava sobre treinamento de soldados. Eu imediatamente disse: “Sim, senhor”. Depois que o filme foi lançado, o general Westmoreland disse que a frase foi tirada de contexto. Agora me diz em que contexto seria OK alguém dizer que os orientais não dão valor à vida humana?

BrasileirosQual é o seu conselho para os jovens que, hoje, com a facilidade da câmera digital, aspiram à profissão de documentarista?
Davis – O papel de um documentarista é o mesmo de sempre: capturar fragmentos da realidade, organizá-los de acordo com a maneira que você vê o mundo e editá-los de um modo que o espectador sinta estes fragmentos e se sinta parte desta realidade. Eu não estou aqui dizendo que todos os documentários têm que ser antigoverno, não. Mas é importante pôr o poder em questão sob os holofotes da câmera de cinema, esta que é a luz mais intensa criada pelo homem. É o único modo de evitar que o poder se transforme em tirania. Eu sei É difícil ter acesso à turma do Bush. Mas Michael Moore teve o suficiente para mostrar o quão decadentes, corruptos e hipócritas são. Tão hipócritas que não mandam os seus próprios filhos para uma guerra que eles insistiram tanto em lutar.

ENCONTROS COM PETER DAVIS
A primeira vez que ouvi falar em Peter Davis e seu Corações e Mentes foi em 1986 quando era estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Anos depois, em 2004, meu documentário sobre Sergio Vieira de Mello era exibido no Festival do Rio, o mesmo em que Corações e Mentes foi relançado. Na época, o crítico da Time Out, de Londres, escreveu que o melhor momento de sua passagem pelo Rio tinha sido depois da sessão do filme de Davis, quando, ao saborear uma caipirinha, pensava em Corações e Mentes, no documentário sobre Vieira de Mello, no filme de Patrício Guzmán e em como o mundo pouco mudara. Guardei o recorte.
Este ano, convidei Peter Davis para participar do curso que leciono no programa de mestrado da New School, em Nova York, e finalmente o conheci. A integridade, simplicidade e simpatia de Davis são contagiantes. Tive a chance de pedir que ele autografasse um DVD para mim. Afinal, esperara 21 anos por este dia. Ao ler a dedicatória não consegui evitar o riso: “Para Simone, com admiração por seu coração e mente”. Vendo minha reação, ele jurou que nunca escrevera tal dedicatória a nenhum de seus “fãs”. Sorri e jurei que acreditava De coração e mente.
Simone Duarte

Trabalhos premiados
Simone Duarte é autora de vários documentários, dentre eles o trabalho A Caminho de Bagdá (En Route to Baghdad). Nele, Simone registra a atuação do embaixador brasileiro Sergio Vieira de Mello que morreu vítima de um brutal atentado cometido contra a sede da ONU, em Bagdá, em 2003. O filme foi premiado, no ano seguinte, pela Associação de Correspondentes da ONU e será lançado no Brasil, no ano que vem, pela Versátil Home Video
Outro trabalho premiado de Simone foi a série de reportagens que realizou no Timor Leste, em 1999, onde integrou a missão da ONU. Ela recebeu menção honrosa da mesma Associação de Correspondentes da ONU.
A autora, que trabalhou durante 15 anos na TV Globo, em Nova York, está produzindo e dirigindo um documentário sobre negociações de paz entre palestinos e israelenses (Track4).
Na Onu
Simone Duarte, com o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Kofi Annan: documentário premiado pela Associação de Correspondentes


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