Na noite de segunda-feira, 29 de julho, foi realizado, em São Paulo, um debate intitulado “Questões de Gênero”, com a participação do cartunista Laerte Coutinho, do artista Gabriel Brito Nunes, da atriz, bailarina e peformer Glamour Garcia, e das ativistas feministas Renata Corrêa e Haydée Svab, respectivamente, integrantes do coletivo Blogueiras Feministas e do Poligene, grupo que discute questões feministas em um ambiente majoritariamente masculino, a Escola Politécnica da USP.
O evento foi promovido pelo Epicentro Cultural (epicentrocultural.com), núcleo sediado no bairro da Vila Madalena, zona oeste da capital paulistana, que reúne jovens não só para fins artísticos, como a realização de projetos de artes visuais, experiências com cinema, e apresentações de novos artistas da seara musical, mas também para a organização regular de debates como este.
A realização do evento coincidiu com a divulgação da entrevista concedida pelo Papa Francisco no avião que o levou de volta a Roma, na Itália. Durante a entrevista, entre outros temas, o sumo pontífice manifestou seu ponto de vista sobre a questão da homossexualidade. “Em um lobby nem todos são bons, mas se uma pessoa é gay, procura ao Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la. O Catecismo da Igreja Católica explica e diz que não se deve marginalizar essas pessoas e que elas devem ser integradas à sociedade.”
A aspa do Papa Francisco repercutiu imediatamente, no debate (leia depoimento do cartunista Laerte, a seguir). Outro tema discutido entre os presentes foi a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), realizada durante a última semana no Rio de Janeiro.
Confira os principais depoimentos do debate.
A minha ideia do Papa Francisco era de alguém que abraçou o Videla, o Bignone (Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone, ex-militares que presidiram a Argentina), que abraçou a ditadura argentina e se qualificou dentro do novo establishment católico como alguém passível de ser Papa. De fato, sua história tem um convívio com a ditadura argentina que é difícil explicar. Ele não chegou a entregar jesuítas para a tortura, mas conviveu com a ditadura e, ao menos por omissão, pode ser responsabilizado. Mas o que significa hoje o movimento que elegeu esse Papa? O evento que a acabamos de assistir, a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), dá uma possível leitura de um novo panorama de ação política do catolicismo e da Igreja Católica dentro da realidade brasileira. E o que significa morar num País cuja presidente, e seu governo central, faz alianças com a extrema direita evangélica? O que significa receber esse Papa em nosso País? Eu temia pelo pior. Temia um crescimento da Igreja enquanto força para se somar aos ataques homofóbicos e os ataques aos direitos da população LGBT. Mas não foi isso que observei. A leitura que fiz disso veio num manual ético, para a juventude, e para as 3 milhões de pessoas que estiveram no Rio de Janeiro. Esse manual buscou municiar as pessoas sobre questões como casamento igualitário, aborto, transgeneridade. Temas que a população LGBT tem colocado como pontos de debate no processo de defesa dos direitos civis das pessoas. O que eu constatei nos termos deste manual, até pela linguagem que ele procurou desenvolver, com cartuns, com humor, é que ele não traz o velho discurso demonizador dos pastores fundamentalistas. É um discurso que procura municiar os jovens para debater o assunto com pessoas que estão ao seu lado e estão no seu arraial. Fazem parte do rebanho e são parte da comunidade. É uma posição reacionária, sim, e uma posição que a gente tem tudo para questionar, mas vejo com olhos até otimistas a ideia de que os caras estão se propondo a debater, e não soltando os cachorros em cima de nós. O Papa pouco importa, na verdade. É um sujeito com um passado reacionário e representa uma posição conservadora, mas acho que dentro do contexto da realidade brasileira foi interessante essa Jornada Mundial da Juventude. Mas, claro, não estou pulando de alegria.
Laerte Coutinho, cartunista
Eu já era feminista antes de ser mãe e, depois, rolou um turning point no meu feminismo, que foi ser mãe de uma menina e me questionar como criar essa menina, em um mundo cada vez mais careta e conservador, de uma maneira que ela se sentisse livre para estar no mundo da maneira que bem quisesse. Comecei comprando uma grande briga com a família, pois eu não queria furar a orelha dela. Furar a orelha dela seria um grande marcador de gênero e ela não precisava passar por isso. Depois de algum tempo eu e meu companheiro percebemos que ela só ganhava roupas e coisas rosas, com coraçõezinhos, bichinhos, e percebi que quando ela estava de lacinhos rosas, frufruzinhos, era tratada de forma fragilizante. As pessoas a tratavam como se ela fosse mais incapaz do que um menino. Colocava nela uma roupa neutra, e até chamavam ela de ‘garotão’. A identidade dela só poderia ser essa identidade de princesa. Tem algum menino vestido de bolinha ai?! Pois é, não sei se vocês sabiam, mas estampa de bolinha, o poa, é coisa de menina. Gostaria que minha filha tivesse o direito decidir por ela mesmo se vai fazer uma intervenção no corpo dela, como furar as orelhas, ou se vestir de menina ou de menino sem ser tratada como tal.
Renata Corrêa, integrante do coletivo Blogueiras Feministas (blogueirasfeministas.com)
Estudo na Escola Politécnica da USP, onde a maioria dos alunos são homens, um ambiente fortemente marcado pela normativa da masculinidade. Quando o grupo Poligene nasceu, começamos a discutir o papel da mulher no meio digital, dentro do mundo virtual, pois estudo Tecnologia da Informação, faço parte de um grupo de software livre e sou a única mulher em um universo de 20 pessoas. Será que a genética explica porque a mulher não ‘gosta’ de engenharia? São premissas que são adotadas e que as pessoas pressupõem. No ambiente acadêmico a gente vê a reprodução do que existe, da mesma forma, na sociedade. Meninas são treinadas e educadas, para que, afinal de contas? A principal coisa na vida da mulher é mesmo o casamento? Infelizmente, muitas pessoas ainda educam suas filhas dessa forma.
Haydée Svab, integrante do Grupo Poligene, que discute questões de gênero na Escola Politécnica da USP (blog.hsvab.eng.br/)
Antes mesmo de descobrir o que era ser transgênero, sabia que detestava qualquer tipo de denominação. Mas convivo com essa denominação por que precisamos fazer comunicações, informar, sociabilizar e confraternizar. As pessoas falam em linguagens e eu também não vou me imiscuir por completa. Se é sapatão, se é travesti, se é homem, se é mulher, todas essas coisas estão muito ligadas a questões de desejo, em primeira ordem, questões sexuais, que você sente, questões muito sentimentais, individuais e pessoais. E ninguém é tão transparente e consegue ser tão claro ao se olhar. Até mesmo o homem mais macho do mundo ao se olhar no espelho se diz ‘espelho, espelho meu, existe alguém mais inseguro do que eu’. Eu tive muitas inseguranças em minha vida. A Igreja Católica, a Igreja Evangélica, o quanto de informações eles não omitem, a todo momento… A gente deixa de receber uma série de informações durante toda a vida, que nos deixam desprotegidos. Eu tento lutar pessoalmente contra essas coisas. E fui atrás da arte para responder uma série de questões que tem a ver com transexualidade, que tem a ver com feminismo, com masculinidade, não exatamente machismo, pois não é porque eu não me sinta uma pessoa masculina que eu também não posso entender coisas que não fazem parte do meu mundo. A ferro e fogo, fui obrigada durante anos, a me comportar de uma maneira que nunca consegui. E é muito doloroso ver que algumas pessoas vão se anulando e conseguem caminhar com essas informações da sociedade. Eu não consegui. Olhando para minhas questões e a pessoa que eu era, descobri que ser quem a gente é, se dar essa oportunidade, é o maior presente que a gente pode ter. Fui descobrir essas questões de forma empírica, no meu dia a dia, tendo sido um menino que queria ser uma menina, tendo sido uma menina trancafiada dentro de um menino.
Glamour Garcia, atriz, bailarina e performer
Durante minha infância e minha adolescência, minha inocência me privou de entender o bullying que eu sofria na escola. Quando comecei a estudar questões de gênero, esse interesse veio a partir da minha prática artística, muito coreográfica, na época, e o desejo de definir meu território enquanto artista, dentro da performance, da dança e das artes visuais. Tive que passar por questões de identidade, para estabelecer e construir esse território. E gênero não é uma coisa tão importante quanto parece ser. É um bando de ‘caixinhas’ que o sistema dominante, através de suas instituições de poder, estabelece e você se encaixa nelas. Foi então que compreendi que havia três coisas diferentes postas no mesmo saco e tidas como iguais: gênero, prática sexual e genitália. Hoje considero gênero um parque de diversões. Com relação as práticas sexuais, me defino uma lésbica trancafiada no corpo de um homem gay
Gabriel Brito Nunes, artista e pesquisador formado pela School for New Dance Development, da Amsterdam School of the Arts, na Holanda, e mestre em artes visuais pela USP (gabrielbritonunes.wordpress.com)
Em junho de 2011, Brasileiros publicou uma série de reportagens sobre o tema diversidade sexual, que foi capa da edição 47. O especial traz também uma extensa entrevista com Laerte. Confira a integra
|
Em maio de 2008, Brasileiros também publicou reportagem de capa que revelou a trajetória de superação de nove transexuais. Leia a íntegra
Deixe um comentário