Água à parte, qual a bebida mais consumida pelos brasileiros? Quem apostou na cerveja gelada errou, redondo. O quente e revigorante café é o campeão. O consumo per capita anual do cafezinho bate o da loura gelada por um folgado escore: 73 litros a 52 litros por brasileiro. E a demanda pelo café jamais foi tão elevada: nos últimos 15 anos, o consumo brasileiro simplesmente dobrou, movimentando mais de 17 milhões de sacas – o equivalente a mais da metade da produção nacional.
O avanço do café pode ser constatado pelo crescimento do número de cafeterias, de casas que vendem café gourmet e da venda de máquinas de produção de café especial – que pipocam como cogumelos por todo o País. E um dos principais responsáveis por esse formidável avanço é uma nova geração de cafeicultores, que está sabendo transformar quantidade em qualidade.
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Bom exemplo é o do produtor Raymond Rebetez, que cultiva cafés de alta qualidade em três fazendas: a Rancho Grande, no município paulista de Espírito Santo do Pinhal; a Lambari, em Poços de Caldas, sul de Minas Gerais; e a Irarema, em São Sebastião da Grama (SP).
Nas três propriedades, cuja área cultivada soma 860 hectares, Raymond colhe 30 mil sacas de 60 quilos de café por ano – uma média de 33 sacas por hectare, o dobro da média de produtividade brasileira.
Essa produção é embarcada para países como Noruega e Estados Unidos e vendida, no Brasil, com a marca Astro, em restaurantes e supermercados finos, empórios de produtos gourmets e cafeterias que processam e vendem cafés especiais. O negócio movimenta R$ 10 milhões por ano, emprega 280 pessoas e cresce ao ritmo de 20% ao ano.
“Nenhum país reúne tantas e tão favoráveis condições para produzir cafés de qualidade como o Brasil”, diz Raymond, que em nada lembra os seculares barões do café de São Paulo. Baiano de Salvador e apaixonado por cinema, Raymond entrou no mundo do café em 1994, explorando sua principal habilidade: realizar orçamentos, fluxos de caixa e sistemas de gestão, técnicas que esse administrador de empresas, formado pela Fundação Getúlio Vargas, domina como poucos no universo cafeeiro.
Se sabia fazer contas, Raymond pouco entendia da arte de produzir cafés. Buscou, assim, o apoio profissional de dois especialistas: o consultor José Peres Romero, autor de vários livros sobre o assunto, e o engenheiro agrônomo Eduardo Sampaio. “Fizemos um trabalho de planejamento focado na qualidade que está dando excelentes resultados. Como em qualquer atividade, começar bem é decisivo.”
A qualidade da produção de Raymond inicia-se pela escolha das mudas de café. Em suas propriedades, três variedades são produzidas: Catuaí, Icatu e Bourbon – todas da espécie arábica (Coffea arabica), de qualidade superior em relação à outra espécie, a robusta (Coffea canephora).
Os frutos da variedade arábica caracterizam-se pelo aroma intenso e pelos diversos sabores, que resultam em bebida fina e requintada. Já os da robusta contêm o dobro do teor de cafeína, mas seu sabor não é acentuado, motivo pelo qual são mais utilizados na produção de café solúvel ou em blends (combinações de grãos).
Um dos principais diferenciais da produção de Raymond é garantido pela altitude de suas propriedades. A Fazenda Rancho Grande está situada a 800 metros, enquanto as outras duas estão a mais de mil metros de altura.
“Altitude é determinante para a produção de um café de qualidade, não só por permitir o cultivo das variedades arábicas, mas principalmente por garantir que o processo de maturação dos frutos seja longo e uniforme”, explica. As regiões baixas estão sujeitas à ocorrência de veranicos e oscilações de temperatura, que comprometem a qualidade final da bebida.
O clima também conta importantes pontos. Como as estações climáticas no Brasil são mais bem definidas, o período da colheita é concentrado em poucos dias. Já os países concorrentes do Brasil estão mais próximos da linha do Equador, o que acarreta desuniformidade na produção. Essa condição cria relativa vantagem para países como a Colômbia, pois seus produtores são forçados a fazer a colheita manualmente. É o “café catado”, escolhido no pé. Mas esse sistema encarece o custo da produção.
“O regime climático brasileiro é único: nosso inverno, período em que é feita a colheita do café, é seco, e a ausência de umidade é uma garantia para a qualidade do produto”, esclarece Raymond. Mais ainda: a ausência de chuvas no inverno permite que o café seque em terreiros, o que não ocorre em outros países, cujos produtores são forçados a recorrer a equipamentos de secagem, prejudicando a qualidade e elevando ainda mais as despesas com a produção. São Pedro, sim, é brasileiro.
Casca, polpa e semente
O café é um fruto. Ter isso em mente é essencial para a compreensão de como se obtém qualidade dessa bebida de propriedades energéticas e de grande complexidade -contém mais de 200 substâncias. Diferentemente da maioria dos frutos, entretanto, a porção mais utilizada do café não é a polpa, também conhecida por mucilagem, mas a semente, que, depois de seca, é torrada e moída.
Para aprimorar a qualidade do produto final, os frutos precisam ser separados conforme o estágio de maturação: “verde”, que ainda não atingiu o ponto de maturação; “cereja”, vermelho e no ponto de colheita; e “bóia”, escuro, que passou do ponto. O café “cereja” é o de melhor qualidade; o “bóia” é como se fosse uma uva passa: rico em açúcares, é utilizado em blends. E o “verde”, de mais baixa qualidade, é comercializado principalmente no mercado interno, processado por marcas menos nobres. “A colheita é um dos pontos cruciais para a produção de qualidade. Daí a importância da mão-de-obra qualificada e bem treinada”, diz Raymond.
O capital humano, a propósito, é um capítulo à parte. Suas fazendas mais parecem laboratórios sociais: todos os trabalhadores de suas três propriedades têm carteira assinada; uma cozinha foi especialmente projetada para aquecer as refeições dos empregados que trabalham no campo; e a prática de ações de responsabilidade social, envolvendo os próprios funcionários, é corrente em suas propriedades. A reciclagem de resíduos é incentivada e projetos culturais são organizados para funcionários e seus filhos (veja quadro ao lado).
Se já não bastasse, a produção de Raymond é quatro vezes certificada: pela Associação Brasileira de Cafés Especiais (selo de qualidade), UTZ Certified (responsabilidade social e boas práticas ambientais), IBD (atestado de produção biodinâmica) e Rain Forest Café (manejo ecológico). Outro pulo-do-gato foi verticalizar a produção, com investimentos em uma torrefadora na Fazenda Lambari e no desenvolvimento de embalagens para vender e exportar o produto acabado, de maior valor agregado. “Perto de 10% da produção já é de produto embalado”, calcula.
Isso não é tudo. Como na pecuária, é o olho do dono que engorda a safra. Assim, Raymond passa pelo menos três dias por semana percorrendo suas propriedades. “Preciso ver e ‘sentir’ a lavoura. Acompanho todas as operações e faço questão de conduzir pessoalmente as provas de café”, afirma ele.
Como resultado de todo esse esforço, seu café é tecnicamente classificado como um produto tipo 2: com até 12 defeitos, de origem demarcada e de bebida estritamente mole. Em bom português, um café especial.
MUITO ALÉM DO CAFÉ
Os 800 hectares da Fazenda Rancho Grande, em Espírito Santo do Pinhal (SP), produzem, além de café da mais alta qualidade e laranja e leite, um produto intangível: bem-estar. A propriedade de Raymond Rebetez, de fato, mais parece um laboratório social a céu aberto. Os 40 empregados fixos recebem salário de R$ 400 – 33% acima da média regional -, cesta básica, uniformes, leite, café, moradia, água e energia elétrica. “Os filhos dos funcionários ganham material escolar, curso de Inglês e aqueles que entram na faculdade têm metade do curso custeada”, explica o administrador da fazenda, Jurandir Pandolfo.
Em 1995, a Rancho Grande deu início a um trabalho pioneiro: o Projeto Baobá, de produção de tecidos artesanais de alta qualidade, a partir tanto de seda rústica e algodão orgânico certificado, quanto de fios reciclados oriundos de lixo plástico (garrafas PET). O projeto reforça a receita das mulheres e familiares de empregados da fazenda, como a tecelã Paula dos Santos, filha do funcionário José Pereira.
A produção de café tem enorme impacto social. A atividade, conduzida por 300 mil produtores, ocupa 8,5 milhões de trabalhadores ao longo de toda a cadeia.
O apelo social acaba por reforçar relações comerciais, como demonstra a experiência de Raymond, que, em 2001, criou o programa de leitura Guia de Histórias, na Fazenda Lambari, para 360 alunos de 15 fazendas da região de Poços de Caldas (MG).
“A idéia era abrir um espaço no recreio para que as crianças lessem, simplesmente”, diz ele, que não só organizou a doação de livros (arrecadou mais de 2 mil obras), como também contratou mediadores de leitura para orientar as crianças.
“O projeto foi um sucesso. Não imaginava que as crianças tivessem tanto interesse pela leitura”, afirma. No primeiro ano de atividade, o projeto foi visitado por executivos da torrefadora norueguesa Friele, um dos importadores do café Astro. “Eles se apaixonaram pelo trabalho e perguntaram como poderiam contribuir. Praticamente exigiram participar do projeto”, lembra Raymond.
Nascia, assim, o Centro Educacional e Cultural Kaffehuset Friele, inaugurado em 2003. Equipado com biblioteca e 15 computadores conectados por satélite à internet, o centro oferece oficinas de desenho, leitura e escrita, informática, música (incluindo canto coral) e capoeira.
Dois anos depois, sempre com o apoio dos noruegueses, o centro ganhou um anfiteatro, com equipamentos profissionais para projeção de cinema ao ar livre. Finalmente, no ano passado, o centro foi contemplado com um anexo para abrigar diversas outras oficinas e teares para a prática de tecelagem manual, e as atividades estão conectadas com o Projeto Baobá, da Fazenda Rancho Grande.
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