Hector Babenco se diz um brasileiro que nasceu na Argentina e não um argentino que mora no Brasil. Às voltas com o lançamento de O Passado, recebeu Brasileiros em sua casa, perto do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, espaçosa o suficiente para abrigar obras de arte contemporâneas. Instalado confortavelmente em uma poltrona, com um charuto apagado nas mãos, ao ver o gravador ligado disparou: “Faz uma pergunta aí, me provoca um pouquinho”.

Deve ter sido assim quando conheceu Alan Pauls, escritor argentino, autor do livro homônimo que inspirou o filme. O Passado, nono filme de Hector Babenco, estréia este mês no Brasil, depois de exibido na seção Masters do Festival de Toronto e programado para abrir o Festival de Cinema de Roma. Estrelado pelo mexicano Gael García Bernal, de Diários de Motocicleta (2004, de Walter Salles), e com a participação especialíssima de Paulo Autran, O Passado conta a história do tradutor Rímini (Bernal), que encerra um casamento de 12 anos, mas não consegue se livrar da ex-mulher, Sofia (Analía Couceyro). Aqui Babenco fala da gênese da produção do filme “y otras cositas más”.
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O diretor rodava Coração Iluminado (1998) em Buenos Aires quando Ricardo Piglia, roteirista do filme, lhe falou de um escritor promissor, seu aluno em oficinas de redação, que viria entrevistá-lo para o caderno de domingo do jornal portenho Página 12. O papo foi ótimo; o resultado, melhor ainda, segundo Babenco. A entrevista durou dois dias, cinco ou seis horas por dia. Ao ler a matéria publicada, ficou abismado por não haver nenhuma frase sua, mas conter tudo o que havia dito. “Aí apaguei”, diz à sua maneira, ou seja, esqueceu. Seis ou sete anos depois, quando visitava a mãe doente em Buenos Aires, Babenco comprou um livro no aeroporto com um título enigmático. Assim que viu o nome do autor, lembrou: “Alan Pauls, o cara que me entrevistou”. Segundo ele, em um momento portenhófilo, “só na Argentina se encontra um livro desse perfil em aeroportos”. Comprado às cegas para ser lido no avião, O Passado é um calhamaço de quase 500 páginas. Babenco, assíduo leitor, entusiasmou-se e meses depois ligou para Pauls. Este se assustou. Sendo também roteirista, achava seu livro “infilmável”, a menos que tivesse oito horas. Babenco explicou que a história que o interessou estava encravada no livro como “uma pedra que você parte ao meio e vê um pequeno fóssil que vai tentar escavar para poder extirpá-lo da forma mais genuína possível e jogar o resto fora”. O “fóssil” era Rímini com suas mulheres, e o diretor comprou a opção sem saber muito bem o que fazer com ela.

Escavando a história
Para ajudar a encontrar o fóssil, tratou de chamar Marta Góes, jornalista e dramaturga, cujo trabalho acompanhava e a quem considerava uma “amanuense”, capaz de entender o que havia de mais importante ali dentro. Foram semanas de leituras do livro, duas delas em voz alta para poder fazer as marcações. Marta produziu páginas e páginas nas semanas seguintes, e os dois mergulharam no trabalho “uns bons seis, sete meses” para chegar ao primeiro, segundo, terceiro tratamentos ainda longos, mais de 200 páginas – o roteiro final tem 105. Babenco percebeu logo que não poderia fazer o filme em São Paulo e que não encontraria um ator de porte jovem, amadurecido, com um aspecto de jovem velho para o papel do Rímini, já que Rodrigo Santoro, com quem trabalhou em Carandiru (2003), estava fazendo a série Lost, “com a cabeça muito naquela coisa de Hollywood”, ri o diretor.

Pelos jornais, ficou sabendo que Gael García Bernal no momento atuava em Bodas de Sangue, de García Lorca, em um teatro londrino. Foi a luz. “Gael, por que não?” O jovem de 29 anos, filho de atores mexicanos totalmente off, de teatro popular, periferia, cidades pequenas, que nunca entraram no grande circuito, tinha um trabalho considerado sério por Babenco. Depois de Amores Brutos (Amores Perros, 2000), de Gonzáles Iñárritu, o mexicano estudou teatro durante cinco anos em Londres, onde mantém um apartamento. Babenco embarcou para a Inglaterra, assistiu à peça, apresentou-se, os dois saíram para beber. Nessa noite o diretor lhe disse que queria que lesse algo, que não estava muito pronto, mas logo lhe enviaria. Em outubro de 2005, findo o trabalho com Marta, mandou um e-mail para Bernal dizendo que queria sentar com o ator e ler junto, lição que aprendeu com Stanley Kubrick. Atores e produtores vivem soterrados por roteiros enviados do mundo todo – então, “têm de ser pegos à unha”. Gael estaria em Buenos Aires em duas semanas.

Instalados no Hotel Alvear, os dois chamaram algumas atrizes, fizeram leituras e nada mais se falou, já que o roteiro ainda estava sendo trabalhado. Duas semanas depois, Gael respondeu que estaria disponível do final de junho ao final de outubro. Diante de tal disposição, Babenco achou que ele havia amado a história. Só saberia a verdadeira razão bem mais tarde. O ator fez poucas exigências. Uma do tipo “Sei que é uma produção pequena; me paguem pouco, mas não abusem de mim”, lembra o diretor. De fato Bernal, da ótica de Babenco, revelou-se um homem de poucas palavras. “Uma pessoa muito intuitiva, culta, embasada politicamente, cujo verbal é muito consistente, do tipo que não fica filosofando, dando interpretações.” O ator exigiu também participar do processo de seleção das atrizes. Penélope Cruz, por exemplo, foi vetada por ele. Babenco diz que a atriz “ficou louca”, pois até havia ligado diretamente do Festival de Cannes pedindo o papel. Gael justificou-se dizendo que o destaque obtido pela atriz em Volver (2006), de Pedro Almodóvar, só prejudicaria o perfil de O Passado. Babenco concordou, e lembra que os produtores, que esperavam criar uma dupla latina no estilo Tom Cruise-Nicole Kidman, também ficaram “loucos”.

Paulo Autran e Jacques Tati
Excetuando Gael, Autran e duas artistas espanholas, o elenco é argentino, assim como a infra-estrutura, carpinteiros e eletricistas entre outros. Os técnicos importantes – roteirista, diretor, fotógrafo, montador e engenheiro de som – são brasileiros e o filme foi editado, mixado e finalizado em São Paulo. O livro, por sinal, tem uma passagem pelo Brasil centrada em uma feira de livros, no filme transformada em exposição, visitada por Rímini e por sua mulher e parceira de tradução, Carmen (Ana Celentano) – a segunda pós-Sofia, sucessora de Vera (Moro Anghileri), uma modelo. O capítulo tem um personagem que fala francês fluentemente. A princípio, Babenco pensou em chamar Jean-Claude Carrière, o roteirista de Buñuel (Belle de Jour, 1967; O Discreto Charme da Burguesia, 1972), que é seu amigo, com quem escreveu Brincando nos Campos do Senhor (1991). Mas a conselho de Christiana, então mulher de Babenco e enteada de Paulo Autran, decidiu-se pelo veterano ator, dono de um francês impecável. Para o diretor, era a chance de trabalhar com uma lenda viva, como Klaus Kinski e Grande Otelo, que participou de Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), todos atores muito emblemáticos, fortes. Babenco convenceu Autran explicando-lhe que seria um papel pequeno, mas que tinha certeza de que o ator daria uma “chispa”, um toque a esse misto de filólogo, filósofo e professor de Letras. Autran de cara disse “Que tal Jacques Tati?”, e esse é o registro. O ator tirou tudo de sua cabeça – a roupa, os maneirismos e até uma jarra d’água que o professor carrega para todo lado. Autran explicou que se tratava de um “objeto de estimação” do personagem.

A cronologia do livro, obviamente, não foi seguida, com as cenas imensas dos protagonistas, personagens paralelos, cinco capítulos da história dedicados a um quadro roubado. A Babenco interessava apenas a história da relação, de como é que um casal jovem que mora junto sem se casar, algo totalmente atípico para a sociedade argentina principalmente há 20 anos, decide de comum acordo se separar de uma forma muito moderna e civilizada. Como a mulher repentinamente se transforma em uma espécie de zumbi, uma morta viva que a todo o momento aparece na vida de Rímini, causando pequenas tragédias domésticas. A mulher que não esquece o homem e diz “O que vai ser de ti quando eu estiver morta, quem vai te olhar? Quem vai vigiar você? Eu sou a luz que te ilumina, se eu paro de te olhar você está morto”. É a loucura da cabeça dela. Babenco adorou essa história, com a qual homens e mulheres se identificam, quando se tornam vítimas da separação e de seus “ex”. É o que ele chama de permanência do amor.

As escolhas
O porquê da escolha segundo Babenco “é um mistério da minha profissão, para isso eu sou pago, não tenho a receita de bolo”. Quando leu O Beijo da Mulher Aranha (Manuel Puig) e Ironweed (William Kennedy), por exemplo, falou “Vou fazer um filme”. Com Carandiru, de Drauzio Varella, a mesma coisa. Histórias que tinham muito a ver com seu momento de vida – no caso, estava chocado com a morte das 111 pessoas que, nas palavras do diretor, “apesar de facínoras, a escória da humanidade, tinham mãe, mulher, filhos e uma razão para mentir, inclusive para si próprios”. Fez um filme mostrando essa paleta de seres que existem no planeta, como tinha feito 20 anos antes o Pixote (1981), dando individualidade aos meninos rotulados genericamente como carentes. Um filme altamente premonitório. Esses meninos estão fazendo o tráfico.

O Passado para ele é “uma polaróide do Hector de hoje”. Um homem de 60 anos que teve várias mulheres, a quem agradece imensamente todo o muito amor que lhe deram, mas que sempre considerou “insuficiente, pouco”. Como Rímini, teve relações, mulheres do passado que estão presentes em sua vida hoje. Como Rímini, acabou por se separar de Christiana, com quem havia se casado na época de Carandiru. Segundo Babenco, que até o momento está solteiro, seus filmes se misturam muito com sua vida pessoal. Para ele existem certos homens, frágeis, com um viés dramático, que vivem de uma forma muito especial. Não estava interessado com O Passado em fazer um filme que contasse o óbvio das separações, mas queria falar um pouco da deformação do comportamento humano, pois uma história nunca é igual a outra. Para Babenco, o que massifica sempre é a televisão, o cinema fácil de ser feito com histórias simples. Segundo ele, se soubesse por que queria fazer não faria. Normalmente ele só vai entender por que fez um filme um ano depois de pronto.

Coração Iluminado (1998), por exemplo, aconteceu em um momento de reencontro com a Argentina. Em que buscou o primeiro amor, cansado de fazer filmes do universo masculino, querendo algo que fosse voltado para si mesmo. Depois da estréia com O Fabuloso Fittipaldi (1973), Hector mergulhou na cultura brasileira, realizando em seguida O Rei da Noite (1975), Lúcio Flávio (1977) e Pixote (1981). Considera O Beijo da Mulher Aranha (1985) uma parábola, uma paródia. E depois que ficou doente – câncer linfático -, fez dois filmes estrangeiros, ainda sobre excluídos: Ironweed (1987), tratando de mendigos, e Brincando nos Campos do Senhor (1991), de índios. Um período em que estava sob tratamento de quimioterapia leve. Mas o câncer se espalhou, estava morrendo. Aconselhado por Drauzio Varella, realizou um transplante de medula óssea em Seattle, no Instituto John Aitchison, onde pôde ficar seis meses internado graças a um seguro de saúde norte-americano que ganhou quando fez Brincando. As chances de dar certo eram de 35% apenas. Levou dois anos para se recuperar. Pensando que não faria mais cinema, resolveu realizar o último filme, Coração Iluminado, ao qual se entregou de alma, mas que não teve a repercussão esperada. De qualquer forma, Babenco começou a filmar em uma cadeira de rodas e acabou correndo pelo set, orgulha-se. Realizou Carandiru, readquiriu a auto-estima e declarou entusiasmado: “Chega de excluídos, terceiro mundo… Acabou. Agora vou cuidar de algo que para mim é crucial na minha vida, que é a relação amorosa”. Daí O Passado.

Projetos futuros
O que vem pela frente? Outro livro. Babenco prepara a adaptação de O Mar, de John Banville, vencedor do Booker Prize de 2005. Está trabalhando no roteiro do filme que, se sair, vai lhe garantir “um aninho fora”. Os direitos pertencem aos produtores ingleses com quem está negociando a direção.

Babenco nunca foi contratado para dirigir filmes fora do Brasil. Ironweed e Brincando foram projetos seus com produção norte-americana independente. O Mar é a história de um homem que volta ao lugarzinho de praia onde cresceu e de onde saiu adolescente e se lembra de um verão quando tinha 9 anos, em que teve uma descoberta amorosa muito interessante. O mar mantém um diálogo constante nesse filme só de flashbacks.

Se há muitas reminiscências em sua carreira, Babenco atribui ser o que é a isso. Segundo ele, “não saberia fazer um filme como um grande diretor sabe fazer, como Guel Arraes ou Fernando Meirelles”. Está em um momento de reflexão. Diz que “as pessoas são hoje o acúmulo silencioso do que foram um dia”. Afirma que gosta de bom cinema, embora não saiba de que cinema gosta. Para ele, cinema ainda é uma arte, não um business, não um produto. Não faz cinema televisivo.

Sobre o cinema brasileiro, recorre à metáfora do futebol, pela qual “todo mundo gosta de ser técnico. No cinema, todo mundo sabe quem é o inimigo: o distribuidor, o cinema norte-americano, o governo federal que não dá verbas corretas”. Prefere seguir um ditado japonês que diz “Sábio é aquele que descobre o problema, não quem tem a solução”. Preferiria que os cineastas tomassem consciência e soubessem quais filmes gostariam de fazer diante da realidade brasileira, do potencial do mercado. Segundo ele, em 2003 tivemos 27% de ocupação de tela. Este ano nem sabe se chegaremos a 10% de venda de ingressos – uma queda vertical. Como, se estão produzindo mais filmes do que antes? “Aqui há um problema, certo? Vamos discutir, me chamem em uma mesa de trabalho, um painel de revista”, diz ele, para quem o inimigo não é o dono do cinema, porque quer filme que dê certo. “É um negócio. Não vivemos sob Stalin, ainda temos economia privada”, pondera. Seria o distribuidor? “Mas ele ajuda o cinema brasileiro com o dinheiro fornecido pelo cinema norte-americano oriundo de economia de impostos, do erário brasileiro, cumpre sua função”, elucida. “Será que o inimigo não somos nós, fazedores de filmes?”, pergunta-se, já que há mais cinemas, mais filmes e menos público. “Ou seria o brasileiro que não tem renda para ir ao cinema?”, uma alternativa que lhe parece mais exata. “O casal brasileiro não tem R$ 50 para assistir a um filme”, avalia, salientando que se refere a gente sem carro que, embora não gaste com estacionamento, passa horas dentro de uma condução. “Assim só deve ir ao cinema uma vez por ano”, conclui, lembrando-se do que disse ao presidente Lula, com quem teve oportunidade de jantar: “Presidente, o público que vai ao cinema no Brasil é de 5 ou 6 milhões de espectadores, não passa disso. É gente que escolhe o que vê, seja filme nacional ou estrangeiro. Temos que conquistar os outros milhões. Tem de subir a renda média do povo brasileiro. Só isso”. Babenco aponta como exemplo Cidade dos Homens (2007), de Paulo Morelli, que considera um belo filme. “Apesar de estrear com uma enorme promoção, fez 300 espectadores em média por sala quando o esperado era 800, 1.000.” Precisamos discutir.

Em tempo: só quando Hector Babenco levava Gael García Bernal para o aeroporto, encerradas as filmagens em São Paulo, é que resolveu perguntar por que o ator havia decidido fazer o filme. Bernal, em seu estilo habitual, apenas respondeu: “Quando eu tinha 14 anos, meu pai me levou para ver um filme que se chamava Pixote“. Babenco jura que ficou sem palavras. Coisa rara. É o passado.


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