O maior espetáculo da terra

Daniele Duarte

Há 31 anos, Joinville, em Santa Catarina, é a casa do maior evento de dança de todo o mundo, segundo o Guinness. Neste ano, o Festival de Dança da cidade, que historicamente acontece no mês de julho, reuniu mais de 6.500 bailarinos de 22 estados do Brasil. Foram 11 dias de espetáculos, workshops, oficinas, além de exposição de produtos e acessórios de balé.  “O nosso objetivo é contribuir para a formação de estudantes”, diz Ely Diniz, presidente do Instituto Festival de Dança de Joinville e responsável pela organização do evento desde 1998.

Um dos pontos altos desta edição foi a remontagem de Les Sylphides pelo corpo de baile da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, que escolheu, há 13 anos, Joinville como uma “filial” da tradicional escola russa. É a única da companhia fora Rússia. Com música de Chopin, a peça foi coreografada originalmente por Michel Fokine para ser dançada em um único ato – trata dos devaneios de um jovem em meio às sílfides de um bosque. Elena Andrienko, primeira bailarina do Teatro Bolshoi de Moscou que foi a Joinville para ensaiar os alunos, disse que conhecer a história do espetáculo é o primeiro passo para o sucesso do bailarino no palco. “O intérprete tem de saber o que o coreógrafo queria passar para o público quando a peça foi criada. Conhecer o contexto histórico da obra é fundamental para fazer um bom trabalho.”

Outro destaque da mostra foi a releitura contemporânea de A Sagração da Primavera, com coreografia da bailarina portuguesa Olga Roriz para o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba. A apresentação homenageou o centenário da peça, cuja versão original foi mostrada em Paris e marcou a história da dança para sempre. Com música de Stravinsky e coreografia do lendário bailarino Nijinsky, Sagração causou indignação no público mais conservador do Théâtre Champs Elysées, em 1913, por se tratar de um ritual sacro pagão: velhos sábios sentados em círculo observam a dança mortal de uma adolescente sendo sacrificada ao deus da primavera em troca de boas colheitas.

D Diego Redel
Centenário – Balé Teatro Guaíra em releitura de A Sagração da Primavera, pela coreógrafa Olga Roriz. A peça original foi apresentada em 1913

Na mostra competitiva, 128 grupos amadores brasileiros concorreram em cinco categorias: Melhor Bailarino, Melhor Bailarina, Prêmio Revelação, Melhor Grupo e Melhor Coreógrafo. Nomes fortes, como o de Cecilia Kerche, embaixatriz da dança pela UNESCO, e Iracity Cardoso, diretora artística do Balé da Cidade de São Paulo, compuseram a bancada de jurados. No final, foram premiados Diego José de Lima, da Escola de Dança Petite Danse (Rio de Janeiro), como Melhor Bailarino, e Natália Colombo, do Ballet Margô Brusa (Rio Grande do Sul), como Melhor Bailarina. Eles ganharam R$ 6 mil cada. O prêmio de Melhor Grupo foi para o Grupo Especial, de São Paulo, que recebeu R$ 18 mil – Binho Pacheco, da mesma companhia, foi premiado como Coreógrafo Revelação.

Mas o festival não é feito apenas de espetáculos. Há sete anos, a organização convida pesquisadores da dança para compor seminários. Na última edição, os debates foram em torno do tema A Dança Clássica: Dobras e Extensões. O festival também agrupa diversos workshops. Desde 1998, acontece a Feira da Sapatilha, onde é possível comprar roupas, calçados e acessórios para dança, entre outros itens.

Bailarinos que não participaram da mostra competitiva se apresentaram, como de costume, nos palcos abertos montados em shopping centers, hospitais e praças de Joinville e de cidades vizinhas, como Blumenau, Jaraguá do Sul e Pomerode. Neste ano, 361 grupos mostraram 914 coreografias.

Aconteceu assim com Rafaela Morel, 19 anos. Natural de Presidente Prudente, no interior paulista, ela participou do Festival de Dança de Joinville em 2007, quando dançou em um dos palcos abertos com a Escola de Dança Beth Libório. Naquele ano, também prestou audições para a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, onde se formou em 2012. Em junho último, Rafaela se apresentou na Moscou International Ballet Competition e acabou sendo contratada por uma companhia de Vladivostok, na Rússia.

Quando Rafaela se mudou para Joinville, recebeu uma bolsa de estudos do Teatro Bolshoi no Brasil. Ela, que na época tinha 14 anos, dividiu um quarto com uma colega da escola. Rafaela diz que, desde os 3 anos, sabia que seria bailarina. Por isso, não teve receio de se separar da família e está otimista em relação a sua ida à Rússia. “Minha mãe fala que está com a mesma sensação de cinco anos atrás, mas sabe que essa é uma grande conquista para mim. A companhia é jovem, vou poder crescer junto com o teatro de Vladivostok.”

Nilson Bastian
Vencedores – Natália Colombo foi escolhida a Melhor Bailarina do festival, enquanto Diego José de Lima, em cena de pas de deux, foi selecionado pelo júri como Melhor Bailarino

Apesar de o evento ter dimensões extraordinárias, sua realização não é trabalhosa, segundo Ely Diniz.  “Assim que terminamos uma edição, começamos a planejar a seguinte, como uma escola de samba.” Em setembro, o conselho artístico fará sua primeira reunião para discutir o que deu errado e o que pode ser feito de inovador no ano seguinte. Até o mês de março do ano que vem, já estará decidido quais professores e acadêmicos participarão dos seminários e cursos, assim como quais companhias serão convidadas. “Por ser um evento continuado e termos muita experiência, é tudo tranquilo”, diz Diniz.

O evento deu a Joinville o título de Capital Internacional da Dança, mas a cidade não se caracteriza apenas por essa arte. Todo ano, em novembro, acontece o Festival das Flores, que já ficou famoso por apresentar algumas das orquídeas mais belas do País. A umidade relativa do ar no município catarinense pode chegar a 90%, o que cria um ambiente propício para o cultivo dessas espécies. Joinville abriga o maior parque fabril de Santa Catarina, com cerca de 1.600 indústrias – é líder do Estado no número de empresas exportadoras. Por conta disso, ganhou o apelido de Manchester Catarinense, em homenagem ao polo industrial inglês. Também é a maior cidade do Estado em número de habitantes: mais de 515 mil.

O Bolshoi no Brasil

Na manhã do dia 22 de junho, horas antes da participação da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil durante o Festival de Dança de Joinville, Pavel Kazarian, diretor geral da escola, estava na arena do Centreventos Cau Hansen, o palco do evento, revisando os detalhes do espetáculo Les Sylphides. O professor Maikon Golini, a ensaísta Elena Andrienko e as bailarinas do corpo de baile repassavam os movimentos, enquanto o diretor fazia observações ao microfone, corrigia a luz, o gelo seco, a música e até a posição dos braços das meninas. “Essa exigência e disciplina fazem do balé russo o melhor do mundo”, disse Maikon.

Kasarian contou que, quando o Teatro Bolshoi da Rússia foi fundado, há 237 anos, ele funcionava como uma pequena escola de dança e música para crianças órfãs de Moscou. “Partimos da mesma intenção. Temos alunos de 20 estados brasileiros. Alguns não têm recursos e recebem formação e apoios, como alimentação, transporte, uniformes, assistência médica e atendimento nutricional, entre outros.” Para permanecer na escola Bolshoi de Joinville e receber os benefícios, os alunos devem apresentar bom rendimento durante as aulas de dança e nos estudos – eles ainda frequentam o Ensino Médio ou Fundamental. De 2000 até hoje, o Bolshoi no Brasil formou 184 alunos – 70% trabalham com dança.

Nilson Bastian
Bolshoi no Brasil – Grupo apresentou a clássica peça Les Sylphides, seguindo os passos da coreografia original

A missão do Bolshoi, a escola diz, é formar artistas e exportar seu método. Maikon Golini é de Joinville e entrou nessa escola com 7 anos. Assim que se formou, há quatro anos, ele foi convidado pela direção da escola a dar aulas. “Desloquei meu sonho para os alunos.” Como professor, Maikon participa da preparação dos espetáculos, ensaia os alunos e dá aulas de balé clássico para as turmas masculinas. O bailarino conta que a cidade se acostumou com a presença do Bolshoi. “Hoje, um homem que coloca uma sapatilha não enfrenta tantos problemas.”

Para entrar na Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, os jovens bailarinos passam por um processo de audição que acontece duas vezes ao ano. Em julho, durante o festival, são avaliados os alunos com experiência prévia em dança e idades entre 12 e 17 anos. No mês de outubro, acontecem as audições para crianças de 9 anos que nunca tiveram contato com a dança. Nesse caso, a primeira etapa de seleção é uma avaliação fisioterápica e médica. Mas são aplicados testes musicais e cognitivos. Todos os anos, a escola abre 40 vagas para as duas primeiras séries. 

Há cinco anos, a escola fundou a Companhia Jovem com a ideia de empregar bailarinos formados na instituição e atender aos convites para espetáculos que a escola recebe – são mais de 80 apresentações anuais. A companhia funciona como um estágio: os alunos se formam no 8o ano e passam a trabalhar, mas nesse período continuam fazendo audições para companhias maiores e buscando outros caminhos. Eles nunca perdem o contato com a escola, todas as solistas do balé Les Sylphides, por exemplo, são da Companhia Jovem.

A escola reúne 350 alunos de todo o Brasil e é a única que representa o Teatro Bolshoi fora da Rússia. O projeto foi fundado depois de o Teatro Bolshoi ter se apresentado no Festival de Dança de Joinville. Um dos principais solistas russos, Alexander Bogatyrev, já tinha planos de expandir o modelo da escola. Quando se reuniu com o governo municipal, entendeu que a cidade seria ideal para a instalação. A bailarina Galina Kravchenko, antiga solista do Teatro Bolshoi de Moscou e mulher de Bogatyrev, mora em Joinville há 13 anos e ajudou a importar a metodologia russa para a escola. Hoje, o Bolshoi no Brasil conta com cinco professores vindos da Rússia, um da Ucrânia e dez brasileiros.


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