Natal em Pasadena

Em um cruzeiro em viagem de férias por Acapulco, ilhas do Caribe e Bahamas, eu e José Renato ficamos conhecendo Dr. Nilson, baiano diretor de uma clínica de quiropraxia no bairro de Glendall, em Los Angeles. Ficamos entusiasmados com o resultado que ele conseguia com seus pacientes de coluna. Junto com ele trabalhava Hank, um americano meio oriental que havia feito sua especialização médica no Japão e exercia uma medicina alternativa, com massagens e acupuntura sob pressão.

Voltamos ao Brasil, eu e JR, com a intenção de organizarmos nossas vidas para irmos morar uma temporada nos Estados Unidos. Tentaríamos um tratamento alternativo para melhorar algum aspecto daquela dependência física que o mantinha preso a uma cadeira de rodas. E assim fizemos. Administrei a agenda dos meus shows no Brasil para que se realizassem de dois em dois meses. Assim eu poderia estar sempre aqui, cumprindo os contratos e, ao mesmo tempo, acompanhando o tratamento dele em Los Angeles. Alugamos uma casa na Milan Avenue, em Pasadena, perto de Glendall, onde ficava a clínica do Dr. Nilson.
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Em uma semana estávamos instalados em uma pequena mansão rodeada de jardins e árvores antigas, bosques nos fundos com esquilos, lareiras espalhadas por toda a parte, piscina térmica e uma sala ampla de música com um enorme piano Steinway meia-cauda. Tudo isso por preço equivalente a um apartamento de três quartos em Copacabana. Nos quartos de cima, tínhamos varandas com árvores enormes de grapefruits, uma já dando frutos, de tal modo que podíamos colhê-los com as mãos.

Resolvemos que José Renato iria dormir na parte de cima, depois de adaptarmos um elevador que o levava até lá através de um controle remoto, que ele próprio dirigia com o pulso deslizando pelos trilhos, que foram adaptados ao lado da majestosa escada que subia para os quartos. Percebemos de imediato a eficiência americana.

Com a ajuda do Dr. Nilson e de Carlos Moreira, outro grande amigo também radicado lá, montamos a casa e a adaptamos a todas as nossas necessidades em dois dias. Os telefones foram instalados de um dia para o outro, com extensões por toda a parte. Por um preço equivalente ao de um Fusca no Brasil, compramos dois carros em ótimo estado, um Mustang e um Buick 68 verde quase novo, conversível e com capota bege. Levamos daqui do Brasil nosso chofer Severino, que até hoje trabalha com José Renato; sua enfermeira, Creuza; minha secretária, Heloísa; e meu irmão Bill, que morava e trabalhava comigo.

Os brasileiros moradores lá ficavam assustados com nosso staff. Acontecia que, com tudo isso, na época gastávamos bem menos do que no Brasil. José Renato começou o tratamento e eu iniciei uma vida que não tinha aqui, onde não podia andar na rua. Aqui vivia escoltada por todos os cantos. Laurão, meu segurança, virou meu grande amigo. Ele foi designado pela Polícia Militar para ser meu bodyguard dia e noite, depois que tive problemas sérios de assédio de fãs que se tornaram casos policiais, cerco que se agravou com a declaração amorosa do Bandido da Luz Vermelha, uma espécie de Robin Hood que roubava dos ricos para dar aos pobres utilizando uma lanterna vermelha, confessando que havia tentado me seqüestrar. Se já não dava para sair à rua normalmente, a situação piorou com essa novidade, e Laurão virou definitivamente o anjo da guarda da Wandéca. Mas com o acidente de José Renato tudo começava a mudar. Namorávamos havia um ano e meio, não desgrudávamos um do outro, José Renato era maravilhoso, estava sempre presente e tentava me fazer sorrir, inventando situações divertidas, para me libertar um pouco da clausura a que meu trabalho me submetia. Ele já tinha um pouco de know-how quanto a conviver com o sucesso popular. Seu pai, Chacrinha, o mais famoso comunicador do Brasil, já andava no calçadão de Copacabana e ia a pé sozinho até o barbeiro da esquina.

Combinávamos de quando em vez umas fugas estratégicas em alguma praia deserta ou a entrada súbita em um cinema quando a sessão já tivesse começado. Eu adorava essas escapadas, pois aquela clausura já perdurava por alguns anos, e eu já não vivia um sucesso passageiro. Já havia consolidado uma carreira nacional. E como seria? Eu viveria solidificando essa redoma, sendo manipulada pelas múmias oportunistas, que, sem que a gente perceba, nos capturam a pretexto de interesses pessoais, fechando o cerco ao nosso redor, manobrando as informações e afugentando verdadeiros amigos? Não! Isso acontece muito quando você vira a galinha dos ovos de ouro. Eu já vivia essa experiência e já me tornara muito desconfiada com as aproximações; percebia que isso era comum acontecer também com meus amigos, principalmente quando não nos sobrava tempo e necessitávamos delegar muito de nossa vidas. Eu queria poder andar no meio dos outros, me molhar, sentir o cheiro da terra, ser mais livre. Cá pra nós, até hoje acho o anonimato uma grande aventura.

A oportunidade de morar um pouco lá fora foi uma abertura para minha saúde psíquica. Eu imaginava que conquistara um tratamento especial aqui somente devido ao enorme sucesso que representava.

Instalada em Pasadena, lugar lindo e calmo, antigo bairro tradicional anterior a Beverly Hills, eu me sentia feliz. Administrava a casa, os empregados, o tratamento de José Renato, fazia compras e ia ao supermercado. Logo comecei a perceber que, da maneira como conduzia meu relacionamento com os outros, conseguia também um tratamento especial mesmo sendo uma cidadã comum e desconhecida em terra estranha. Se bem que por lá, mesmo sendo de procedência latina, minha pele clara facilitava bastante. Mas gostava da cordialidade dos vizinhos próximos que me cumprimentavam sorrindo. No mercado me ajudavam a levar as compras até o carro, coisa não comum por lá.

Logo na primeira semana recebemos a visita de duas crianças americanas que moravam em uma casa junto à nossa. Da piscina de nosso jardim, dava para ver as janelas de suas varandas ao lado. Eu adorava as visitas daquelas crianças; elas estavam interessadas em continuar freqüentando aquela casa, porque, no período em que ficou fechada para ser arrendada, elas haviam construído no bosque uma trilha para brincar de caça ao tesouro. Começávamos então a nos familiarizar com a visita delas, que chegavam pelas manhãs, na hora do nosso café, e podíamos treinar um pouco nosso inglês capenga, até que no primeiro dia de sol, quando estreávamos a piscina, sentimos as janelas dos vizinhos cerrarem-se com uma certa rispidez.

Nunca mais fomos visitados pelas crianças e concluímos que a tanga estilo Gabeira de meu irmão Bill e meu minúsculo biquíni fio-dental haviam escandalizado a falsa moral americana. Daí para a frente nós nos espionávamos. Eles nos espreitavam para saber que gente era aquela, e eu morria de curiosidade e, às escondidas, inspecionava suas festas.

Nos aniversários, todos aqueles americanos com seus sapatos enormes ficavam feito palermas, de chapeuzinho na cabeça, soprando aquelas horríveis línguas-de-sogra, ao redor das mesas cheias de ponches coloridos, trocando frases automáticas. Happy birthday! Happy New Year! Se fosse durante o dia, seria um barbecue, que é um hamburger tostado na churrasqueira, tudo muito prático, asséptico e plastificado, não tendo nada a ver com as fartas e sanguinárias churrascadas nossas.
Aquela garotada tocando qualquer nota na garagem dos fundos com aquelas maravilhosas guitarras e pianos elétricos Fender, baterias Ludwig, sax Selmer, toda a aparelhagem com que nós aqui sonhávamos, rodando pelo Brasil simples equipamentos de som – até a amplificação de palco que usávamos (quando tinha) ainda não era essa maravilha que se consegue hoje; eram as antigas Giannini e os pesados amplificadores Tremendão de válvula, e olhe lá…

Eu ficava na ponte aérea Rio-Los Angeles, vinha correndo ao Brasil, fazia alguns shows e voltava. Numa ocasião, recebemos a visita de Tarcísio Meira e Glória Menezes, que foram passear na Califórnia com Tarcisinho e sua irmã. Na ocasião hospedávamos Cynirinha Arruda e seus filhotes Biba e Flávio. A casa era grande e adorávamos vê-la cheia. Passamos para pegar Tarcísio e Glória próximo a Hollywood, onde estavam hospedados, e em plena Sunset Boulevard acabou a gasolina de nosso carro. Tarcísio, com todo o seu cavalheirismo, imediatamente se prontificou a ir até a bomba de gasolina mais próxima, já que o carro era hidramático e não dava para ser empurrado. Ficamos ali, eu, Glória e José Renato, batendo papo, esperando por algum tempo, e lá de longe avistamos a chegada daquele monumento.

Tarcísio Meira, em plena Hollywood, com um galão de gasolina dependurado em cada braço, mas com elegância, diga-se de passagem, para Paul Newman nenhum botar defeito.

Com os amigos nos dando força, o tempo passava mais leve e José Renato continuava o tratamento e sentindo-se muito bem. Numa dessas ocasiões, recebemos outras visitas ilustres – Elis Regina, seu filho João Marcelo e César Camargo Mariano. Era 1974, Elis havia ido gravar nos Estados Unidos seu disco Águas de Março, junto com Tom Jobim e César Camargo Mariano. Com muita alegria já havíamos recebido, antes da chegada de Elis e César, a visita do nosso amado e ilustre maestro Tom. César, Elis e seu filho João Marcelo foram jantar conosco algumas vezes. João era uma criança encantadora; eu ficava boquiaberta com suas sacadas espirituosas e com o relacionamento intenso dele com a mãe. João enfeitava minha cama e meus cabelos com flores, e Elis se divertia dizendo que eu havia sido a primeira paixão de João. Ele costumava ficar conosco e com nossa amiga Haideé enquanto Elis gravava. Numa dessas vezes, ele com uns quatro anos de idade, sentado à mesa de jantar com José Renato, que estava sendo trazido por Creuza, sua enfermeira, observou: “Agora que estou sacando qual é a sua, seu puto, nessa cadeirinha de rodas, com a mulherada te empurrando pra lá e pra cá!”. Foi uma risada só. E, como se não bastasse, percebendo que demorávamos a nos servir, acrescentou, arrematando um pedaço de coxa de frango para o seu prato: “Com licença, que gente fina é outra coisa”.

Elis passou seu aniversário em nossa casa. Fizemos um bolo, e era para mim uma verdadeira lição de vida aquela mulher. Ela entrava na cozinha e preparava rapidamente saladas e molhos deliciosos ao mesmo tempo em que trabalhava no disco e discutia com João Marcelo seus preceitos de mãe. Aprendi muito, aquilo me marcou e quis muito ser como ela, encarando o trabalho como um ofício, sem nenhuma frescura, integrando arte e vida com a mesma intensidade.

O Natal de 1974 foi realmente especial. Chacrinha e dona Florinda confirmaram presença, iriam do Brasil para cear conosco em Pasadena. Começamos os preparativos algumas semanas antes. Mia, irmã de Haideé, nos emprestou sua caminhonete de cabine aberta para que fôssemos comprar a árvore de Natal. Bill, meu irmão, comandava os preparativos com seu bom gosto e humor inglês. Ríamos muito, e Renato adorava essa farra toda.

Bill e Haideé trouxeram para dentro da nossa casa a maior árvore de Natal que encontraram. Conseguiram comprá-la nas montanhas nos arredores de Hollywood. Veio arrastada pelas freeways de Los Angeles, metade para fora da caminhonete, de tão grande, chegando em casa ainda salpicada de flocos de neve. Foi colocada próximo à lareira da sala, em frente a uma janela de vidro transparente, quadriculada do chão até o teto, de modo que todos que chegassem já da rua pudessem admirá-la.

Aquela árvore majestosa encheu o espaço físico da sala e inundou com sua fragrância de pinho a nossa casa. Os enfeites, escolhidos cuidadosamente numa feira mexicana, eram anjos de palha, sinos, estrelas e imagens dos três Reis Magos, pintadas em latão. Guardo-os até hoje como lembrança. Tivemos presépio montado em outra janela da sala de música. Todos participavam da decoração, tudo regado a um indefectível tinto seco Burgundy, ao calor das lareiras acesas. Na vitrola, o som do piano de armário do Scott Joplin dedilhado pelo próprio, naquela ocasião uma raridade. José Renato, olhos brilhantes, comandava: “Talvez melhor aquele arranjo naquela porta”. Duas semanas de preparativos e de compras. Foi um lindo Natal. Chegaram Florinda, sorridente e saudosa, e Chacrinha, com um chapéu de cowboy – “É verdade!”, exclamava, constatando como vivíamos felizes naquele canto da Califórnia, apesar das adversidades.

Lá pelas 7 da noite da véspera de Natal, chegaram outros convidados, e, entre outros ilustres, a presença carismática do nosso maestro Tom Jobim, que também foi passar o Natal junto a todos nós. Ele com freqüência ia sozinho a nossa casa e, descontraído, passava a noite conosco ao piano degustando uma Tuborg, que Bill, a seu pedido, providenciava sempre gelada, e um cigarro no canto da boca.

Cantava e dedilhava suas canções para nós, às vezes até as 8 horas da manhã, quando íamos para a cozinha preparar um reforçado breakfast. Nessas ocasiões, sua pequena platéia era constituída de Bill, Nanato, Creuza, Severino, Heloísa, Haideé e eu. E a noite rolava imperdível.

“Olha, está chovendo na roseira / que só dá rosa mas não cheira / o perfume das gotas úmidas…”
“Eu nunca te telefonei / nunca fui ao cinema / nem gosto de sol…”

Naquele Natal fomos brindados, lá pelas 8 da noite, com o sino da porta tocando. Saímos todos, Tom, eu, José Renato, Bill, minha irmã Wanderte, Chacrinha, Florinda, Dr. Nilson, Haideé, Carlos Moreira e outros amigos, e fizemos uma platéia aconchegados do lado de fora, em pé, no mesmo plano do piso da porta toda de tijolinhos, com as caras curiosas iluminadas pelos lampiões da entrada. Alguns degraus abaixo desse piso, surgiu, como duendes por entre as árvores antigas e as luminárias do jardim, uma família de músicos, pai, mãe e três filhos, sendo que o menor tocava flauta, carregado pelos outros dois por um carrinho de mão. Vinham cantando pelo jardim aberto sem cercas, e pararam solenemente à nossa frente. Tranqüilamente as duas crianças tiraram do carrinho dois pequenos cavaletes, nos quais estenderam suas partituras musicais, e, como se cumprissem um cerimonioso ritual, tocaram para nós belas canções natalinas, com uma formação singular: a mulher no sax alto; o pai, na harmônica; na flauta transversal a filha mais velha; na flauta doce de madeira o menino; e no flautim o caçula, confortavelmente aconchegado no carrinho de mão; todos tocando e lendo juntos as pautas musicais. Harmoniosos, sutis e afinados, pareciam anjos do céu abençoando nosso Natal.

Uma aura de magia nos envolveu a todos. Chacrinha e todos nós emocionados com aquela aparição inesperada. O encantamento da verdadeira beleza! Nossos olhos brilhavam, e nossa respiração era visível pela fumaça que exalávamos na noite fria de inverno. Entramos com o coração aquecido pela graça daquele momento, para mim inesquecível.

Feliz Natal, Chacrinha!
Feliz Natal, Jobim!
Feliz Natal, Bill!
Feliz Natal, Elis!

Que Jesus cubra seus sonos com o amor e encantamento que vocês proporcionaram até hoje aos corações de todos aqueles privilegiados que tiveram a honra e alegria de conviver com o que vocês plasmaram aqui na Terra, deixando um legado tão forte que fecunda o sonho de tantos de nós, pobres mortais, que tentamos alcançar sem êxito a realização de uma vida tão memorável e bela.


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