Samuel, o pensador

Desde 1º de janeiro, transeuntes de pontos diversos da cidade de São Paulo têm se deparado com inusitados cartazes coloridos expostos no chão, contendo máximas filosóficas escritas com pincel atômico em redonda caligrafia. Trata-se do trabalho de Samuel Salles, 53 anos, ex-cobrador de ônibus, ex-porteiro e auto-intitulado poeta e pensador. São cerca de 150 pensamentos acumulados ao longo de 24 anos de carreira, mas somente uma amostra fica à disposição do público. Até maio, sua “galeria” era a Avenida Paulista. A partir de então, iniciou uma peregrinação por outras ruas e bairros da cidade. Diante de suas obras, ele aponta com o indicador o cartaz contendo o pensamento que mais gosta: “Se pudesse, eu inventaria o amor: ele seria incontrolável como o ímpeto de um tufão capaz de varrer os mares; seria absoluto, como o talento de Mozart; e seria grande, como todas as galáxias reunidas”.

A citação a Mozart não é gratuita. O pensador diz ter verdadeira devoção pelos arautos da música clássica. “Sou poeta, mas gosto muito mais de melodia. Um poema você lê e joga para o lado. Mas uma melodia bem elaborada, quanto mais ouço, mais quero ouvir”, explica. Diz que, quando pára para ouvir música, não faz mais nada, concentra-se exclusivamente nisso. Tem especial predileção por Ave Maria, de Schubert. Salles, aliás, parece subestimar a própria erudição. Diz que lê pouco, e só os livros que o façam rir e chorar ao mesmo tempo. Entre as leituras que se inserem nessa exigência, ele cita Guerra e Paz, de Tolstoi, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski. “Os Miseráveis eu li duas vezes”, sussurra, quase que num pensamento alto, como se uma leitura dobrada da obra-prima de Victor Hugo fosse a coisa mais trivial do mundo. Dos autores nacionais só gostou de dois: o Fernando Sabino de O Encontro Marcado e o Jorge Amado de Capitães da Areia.

Em sua terra natal, Recife, Salles ganhava – ou melhor, perdia – a vida com jogo do bicho. Diz que a clientela era boa e conseguia tirar diariamente o equivalente a um salário mínimo. O problema é que gastava tudo nas apostas. “Podia ser carteado, dominó, sinuca…”, lembra. Em 1984, partiu para São Paulo, onde já residia a irmã mais velha, Conceição. Um trauma onírico o levaria para o caminho dos pensamentos. Sonhou que um anjo empunhando um tridente o espetava na altura do sexo, dilacerando seu corpo. “Acordei assustado, achando que fosse verdade”, rememora. Desde então, impelido por uma inspiração desconhecida, desembestou a escrever. Quem olha sua humilde exposição pode notar em alguns dos cartazes um rodapé com a chancela “textos inéditos”. Isso porque Salles já fizera uma exposição similar no centro da cidade. Ele revela, no entanto, que essa primeira experiência foi pouco memorável. “Deu polêmica ligada à teologia. Radicais queriam me matar”, assegura. A partir de então, decidiu arrumar um emprego mais estável. “Para não correr riscos inúteis. Senão, eu teria o mesmo fim de Gandhi e Luther King”. Daí trabalhou como cobrador de ônibus, porteiro de edifício e plantonista de imobiliária. Diz não expor seus sentimentos por prazer. “A necessidade me obriga a fazer isso.” Não que não se orgulhe dessa atividade de alta voltagem artística. “Eu me considero tão bom quanto Neruda, Vinícius e Bilac”, compara. Mas aponta para seus cartazes estendidos no chão e diz que é tudo lixo. Ele afirma que seus poemas são melhores do que os pensamentos. Faz um gesto indicativo de que tem um na ponta da língua, prepara a voz e declama com a cadência e a musicalidade dos trovadores:
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Malícia morena, sou bom beduíno
A cena serena do teu desatino
A fonte tem festa, assista na cama
A fresta da testa, me chispa de chama
Morena Marina, serena menina
Teus olhos sedosos têm cor de colina
Mulata macia, dengosa domina
No dengo do dia essa folha fina

Curiosamente, nenhuma de suas poesias consta nos cartazes expostos. Por quê? “Poema não dá ibope. Escrevo para atingir massas”, explica. Confia tanto nisso que a publicação de um livro com uma seleção de seus pensamentos, ele crê, é questão de tempo. Ele só não quer se dar ao trabalho de correr atrás de editores. “Quero que eles venham a mim.” Pelo usufruto de suas pérolas, Salles pede aos passantes contribuições de qualquer valor. Consegue tirar entre R$ 50 e R$ 60 por dia, e um pouco mais aos domingos. Uma estudante de comunicação da Universidade de São Paulo (USP) chegou a lhe dar R$ 20 certa vez. “As pessoas me dão os parabéns, dizem que sou um homem iluminado. E tem gente que acha que sou um bruxo”, diverte-se. “E eu sou mesmo!”

Salles teve de se aposentar em 1995, por invalidez, desde que um incidente relativo a uma suposta insanidade mental ocorrido três anos antes passou a constar em seu histórico. Segundo ele, sua crise não passou de 48 horas, embora tenha ficado internado por três meses num hospital psiquiátrico. “Passei a ter mania de perseguição e fiquei violento. Achava que em cada esquina tinha um assassino querendo me pegar”, conta com o semblante crispado e o olhar de terror. Apesar disso, considera sua estada por lá uma experiência humana muito rica, por ter podido ajudar outros pacientes, dando-lhes banho, trocando-lhes as fraldas. Mas, como se a mera menção ao episódio lhe trouxesse mais recordações insuportáveis do que boas, ele trata de encerrar rapidamente o assunto. “Achavam que eu fosse louco, mas já passou. Fiquei bom.”

Solteiro, sem filhos, o trovador vive no bairro do Ipiranga com a irmã Conceição, que é cabeleireira, e com um inquilino que aluga um quarto da casa. Conta ainda com a companhia do cão “Lyon”, um pitbull que ele garante ser mansinho. “Só ataca crianças, idosos e outros cachorros”, ressalva. Salles diz não se sentir solitário e que se desiludiu com o amor na juventude. “Meu desejo era ser amado por uma jovem que tivesse amor aos artistas que amo: Mozart, Neruda, Chopin, Bach, Vivaldi, Chico, Gil, Caetano, Tom e Vinícius.” Resignado, Salles acha que hoje, uma mulher assim, só pode pertencer a uma classe social inacessível a ele. “Tive moças lindas, mas que só queriam saber de Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e Reginaldo Rossi”, lamenta. A questão da guerra dos sexos tornou-se, para ele, um tema-obsessão. Numa das tardes em que conversava com a reportagem, um senhor na faixa dos 70 anos interessou-se por uma das frases expostas. A negociação foi rápida e o velhinho foi embora com o cartaz debaixo do braço. Por ele, deu ao pensador uma moeda de um real. O pensamento comprado afirmava: “O homem só descobre que se casou com a mulher certa ou errada quando ele fica desempregado”.


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