[16 de 100] A escrita social de Stephen Crane

O mais famoso livro do escritor americano Stephen Crane (1871-1900) é o romance “O Emblema Rubro da Coragem: um episódio da Guerra Civil americana”, celebrado como um documento extraordinário sobre a guerra de secessão, ocorrida entre os anos de 1861 e 1865, e que foi lançado quando o autor tinha apenas 24 anos. Considerado um dos primeiros clássicos modernos da literatura norte-americana, a obra de Crane foi pioneira em retratar o conflito de maneira realista e sem romantismo, a partir do ponto de vista do jovem e inexperiente soldado, Henry Fleming. Na história, o personagem se alista por acreditar que voltará glorioso, depois de grandes façanhas e atos de coragem. Na hora do combate, porém, ele se acovarda e foge do inimigo. Perdido no campo de batalha, uma ampla floresta, ele luta para sobreviver ao pesadelo da guerra, mas acaba por se tornar herói pelo acaso.

Contemporâneo e admirador do escritor H. G. Wells (1866-1946), amigo de Joseph Conrad (1857-1924), Crane foi um jornalista que viveu intensamente seu ofício, nos seus breves 29 anos incompletos de vida. Além de ficcionista, correu o mundo como repórter em passagens importantes por Cuba e Grécia. Morreu na Alemanha, vítima de tuberculose. Sua prosa, felizmente, não se limitou a esse tratado anti-belicista protagonizado por Henry Fleming. Na verdade, antes do lançamento da conhecida obra, ele tinha publicado seu primeiro romance, “Maggie – Uma Garota das Ruas”, cuja trama nasceu de sua experiência jornalística nas várias incursões pelas ruas miseráveis de Bowery e nos bairros mal-afamados de Nova York, onde conheceu todo tipo de marginal. Sua intenção era fazer um estudo aprofundado sobre a decadência de uma jovem inocente, vítima de abuso que virara prostituta e acaba por se matar. Um marco da literatura naturalista com a qual flertou.

O livro “O Monstro e Outros Contos”, cuja edição original saiu em 1899, um ano antes da morte do escritor, reúne três histórias longas que confirmam o talento inegável e a veia de militante social de Crane – que influenciou autores como John Reed (1887-1920), adepto do jornalismo engajado e transformador do mundo. O conto que dá título à obra bem poderia ser considerado uma novela, com suas 82 páginas. Na história, Henry Johnson é um negro que tratava dos cavalos de um médico, pai do menino Jimmy. Os dois têm uma grande amizade. O empregado, escreve o autor, deveria ser “um indivíduo importante e uma eminência nos subúrbios da localidade, onde vivia a maioria dos negros e, evidentemente, esta glória encontrava-se para lá do horizonte de Jimmie”. Um dia, Henry salva o menino de um incêndio, mas acaba com o rosto deformado pelas queimaduras. Como gratidão, o médico passa a protegê-lo e tem de pagar um preço alto por isso. O rapaz é considerado um “monstro” e assusta mulheres e crianças na cidade. Um dia, o pai do menino recebe uma proposta: isolar o negro num sítio e, assim, recuperar sua reputação de médico. Mas ele, sem vacilar, diz que não.

A trama é ambientada na imaginária Whilomville, pequena comunidade como muitas existentes até hoje em vários lugares do mundo em que o preconceito está tão enraizado quanto suas árvores e casas centenárias. Uma realidade em que não há espaço para exceções. Henry passa a viver na cidade como um homem sem rosto que causa a repulsa de todos, independentemente da nobreza do seu ato. Crane é detalhista e descritivo, como se relatasse um fato numa reportagem, mas que acaba, não raro, por entrar na psicologia dos principais personagens. Ele faz o leitor acreditar na veracidade das cenas, num dos textos mais perturbadores e ousados do século XIX, pela postura do autor em se expor de modo contundente contra o racismo, numa época em que esse era um tabu intocável. A narrativa segue a ideia da transformação do homem em coisa que Crane tinha explorado em “O Emblema Rubro da Coragem” e “The Open Boat”, como ressalta David Furtado no posfácio da edição portuguesa, lançada pela Antígona.

Completam dois contos menores apenas no tamanho. Mas grandiosos como seus dois romances. “O Hotel Azul” é um dos seus textos mais conhecidos e considerado por Ernest Hemingway um de seus preferidos. A história trata, assim como em seu livro mais famoso, do modo como a sociedade consegue moldar o destino de um indivíduo, mesmo que aparentemente de forma casual, porém com conseqüências trágicas e reveladoras. Teria sido inspirado numa experiência pessoal do autor, que se hospedara num hotel pintado de azul. “As Luvas Novas de Horace”, observa David Furtado, complementa de certa forma o conto anterior, ao tratar da impossibilidade de fugir do estado tranqüilizador porém dependente da infância. Duas histórias curtas e de grande força, construídas por um autor vigoroso em sua escrita que deixou um legado ainda não dimensionado.


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