[20 de 100] A estética da violência seminal de Rubem Fonseca

A última notícia que o programa “Jornal Nacional”, da Rede Globo, deu na noite do dia 14 de novembro de 1989 não tinha a ver diretamente com o fato histórico programado para o dia seguinte – a eleição presidencial em primeiro turno, depois de 25 anos do início da ditadura militar, que elegeria Fernando Collor no segundo turno. Mas tinha um valor simbólico dos mais importantes. Naquela data, o Superior Tribunal de Justiça liberou o último livro mantido sob censura pelo regime fardado que governou o País entre 1964 e 1985: “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca. A obra ficou proibida de circular por 14 anos, desde o seu lançamento, em 1975, pela Editora Artenova. Alguns dias depois, a editora de Fonseca naquele momento, a Companhia das Letras, mandou uma nova edição para as livrarias. Entre uma tiragem e outra, muita coisa tinha acontecido com o autor, que lançara livros primorosos como “O Cobrador”, “Bufo & Spallanzani”, “A Grande Arte” e “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”. Era, indiscutivelmente, o melhor contista brasileiro vivo e um dos grandes autores do País de todos os tempos.

Não havia o que se podia chamar de pornografia em “Feliz Ano Novo”, apesar de alguns contos fazerem referência a sexo. Se tivesse algo nesse sentido, justificaria a prática comum na época que levou a censura a proibir cerca de 500 obras entre 1970 e 1978, instituída pelo decreto 1.066, de 26 de janeiro de 1970 – conhecido como “Decreto Leila Diniz”, por causa da entrevista cheia de palavrões que a polêmica atriz deu dois meses ao jornal “O Pasquim”, que escandalizou os generais e suas esposas. O motivo do veto ao livro era a violência exacerbada, inédita, chocante como nunca se vira até então na literatura de alta qualidade feita no País, porém temperada com uma escrita magistral, fascinante, refinada, sedutora e irresistível de Rubem Fonseca. Nem todo mundo, claro, entendeu assim. “Suspender ‘Feliz Ano Novo’ foi pouco. Quem escreveu aquilo deveria estar na cadeia e quem lhe deu guarida também”, disse à “Folha de S. Paulo”, em 7 de janeiro de 1977, o senador Dinarte Maria. “Não consegui ler nem uma página. Bastaram meia dúzia de palavras. É uma coisa tão baixa que o público nem devia tomar conhecimento”, acrescentou ele, sem deixar de confessar sua ignorância.

Na apresentação, o editor Álvaro Pacheco descreveu a obra como “um livro engraçado e mordaz, mas também cruel e violento, que mostra a realidade inquietante de um mundo ameaçadoramente destrutivo e corrupto”. Em seguida, fez uma premonição: “Sem dúvida, o que Rubem Fonseca, com percepção e inteligência, diz no seu ‘Feliz Ano Novo’ dificilmente será esquecido pelos leitores”. Principalmente os censores. A começar pelo conto que dá título e abre o volume. Na história, para matar a fome, três amigos pegam um poderoso arsenal de armas pelo qual foram encarregados de guardar para criminosos e decidem invadir uma mansão tipicamente carioca na véspera do Ano Novo. Tudo dá errado e eles matam uma senhora e sua filha, donas da casa, e, também, um homem, enquanto um deles estupra uma menina. Ao fim, em um desfecho amoral – ou imoral, para a censura? –, os três brindam um Feliz Ano Novo para todos. Não menos incômoda é a história de “Corações Solitários”, sobre um ex-repórter de polícia que vai trabalhar em um jornal destinado ao público feminino. Ele fica intrigado ao receber cartas de Pedro Redgrave, que diz ser um homem que gosta de se vestir como mulher e que tem ideias suicidas. Em “Botando pra Quebrar”, o protagonista está desempregado e mora de favor na casa de sua amante, uma costureira. Pressionado para conseguir trabalho, emprega-se como “leão de chácara” de uma boate e não deve deixar entrar transformistas, negros e traficantes. Mesmo assim, a mulher o deixa e ele se mete em uma série de brigas e confusões.

As histórias mais marcantes, porém, são as duas partes de “Passeio Noturno”. Na primeira, um homem bem-sucedido profissionalmente descobre um modo peculiar de aliviar o estresse: dar passeios noturnos com seu carro e atropelar pessoas aleatoriamente. No segundo, o mesmo personagem é abordado por uma mulher no carro ao lado, que lhe dá seu telefone. Depois de levar a mulher a um restaurante, ele decide atropelá-la. O sexo é tema de “O Campeonato”, narrado pelo árbitro de uma competição de conjunção carnal, com suas regras e jurisdições, modos de medição das ejaculações, etc. “Nau Catrineta” é um conto sobre a tradição familiar canibalista de três tias e seu sobrinho, escrita no livro “Decálogo Secreto”. A última história é uma irônica autorreferência: escritor diz em entrevista que seus livros “estão cheios de miseráveis sem dentes” e pornografia. Ele defende a pornografia nos livros, e fala sobre seu livro “Intestino Grosso”. Numa impressionante antecipação, a conversa continua entre ele e um jornalista. Ao final, este, irritado, diz ao chefe: “Esses escritores pensam que sabem de tudo”. O Editor responde: “É por isso que são perigosos”.

Subversivo no sentido mais amplo do termo, apesar de não ter caráter político-ideológico explícito, militante, o livro de Fonseca traz uma visão chocante do cotidiano carioca, para lá de estarrecedor em que desconstrói o mito secular de uma cidade maravilhosa em todos os sentidos. Com seus criminosos, tarados, moralistas, assassinos, neuróticos e psicopatas de toda espécie, o escritor embaça a visão idealizada de um lugar que só produzia mulheres lindas e muita felicidade e sempre foi vendida como um paraíso idealizado. Fonseca cutuca também outra instituição carioca – e nacional: a cordial relação hipócrita que sempre manteve sem conflito diferentes classes sociais. O Rio dos morros e suas favelas nada romantizadas, já sob o controle de criminosos, e o das praias de Ipanema e Copacabana era, então, um mundo negado e ofensivo, cujo incômodo ajudou muito em seu veto. No primeiro conto, um personagem marginal diz: “Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque”.

Por outro lado, a violência na obra é um elemento estético, um exercício de síntese temática, de caráter literário, uma forma de instigar, de provocar e testar as emoções do leitor – numa época em que o tráfico de drogas ainda se disseminava de modo sorrateiro pelos morros – e que ele radicalizaria quatro anos depois, com outra obra-prima, “O Cobrador”. O que Rubem Fonseca quer tratar não é a brutalidade em si, mas a sua presença como elemento indissociável do humano. Nesse sentido, o livro vai além, ao mostrar são histórias inteligentes e criativas, feitas para levar à reflexão por meio do choque sobre a essência mais profunda que habita o íntimo das pessoas. Nas entrelinhas, porém, é um retrato político, desiludido e desesperançado da época em que foi escrito, quando o milagre econômico brasileiro pregado pela ditadura militar se mostrava fracassado.

“Feliz Ano Novo”, ainda vigoroso e com frescor quase quatro décadas depois, antecipa de modo visionário comportamentos e as temáticas nas artes – literatura, cinema e quadrinhos, principalmente – ligadas ao sombrio da mente e às doenças sociais dos anos de 1980 e 1990. Atualíssimo e incansavelmente copiado por outros autores, com resultados pífios, não é apenas um livro sobre violência urbana, essencialmente. Daí merecer a condição de uma obra grandiosa e seminal.


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