A História da Mostra Internacional de Cinema

Em sua primeira visita ao Brasil, em 1992, o estreante Quentin Tarantino impressionou pela voracidade com que devorava catálogos e assistia aos filmes – mais de quatro por dia. Em 1994, o diretor iraniano Abbas Kiarostami encantou-se com duas crianças que fuçavam latas de lixo numa rua da capital. O menino procurava comida e a menina, revistas de moda. Intrigado, comprou um lanche e colocou ao lado de uma das latas. Ela não o tocou. Inspirado na cena, Abbas escreveu um roteiro, que nunca sairia do papel. Treze anos depois, Leon Cakoff procuraria aquelas mesmas crianças para participar do documentário Volte Sempre Abbas. A menina nunca foi encontrada. Já o garoto mandou um recado a Kiarostami: “Diga a ele para não se preocupar comigo, que estou bem…”. Em 1995, o diretor espanhol Pedro Almodóvar acabou protagonizando um chilique em plena Avenida Paulista. Emocionado ao ver mais de duas mil pessoas aglomeradas no vão do Museu de Artes de São Paulo (Masp) para assistir ao seu A Flor do Meu Segredo, ele enfureceu-se com as condições de exibição: ao lado da rua, com barulho e iluminação inadequada. “Vocês estão arruinando o meu filme”, diria a Leon Cakoff, que conta o caso em seu livro Cinema Sem Fim. As cenas acima compõem um filme real, que completa 32 anos e não tem previsão de término. Trata-se da história da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, inaugurada em 21 de outubro de 1977, mas que teve sua trajetória delineada quatro anos antes pelo crítico de cinema e jornalista Leon Cakoff – na época, programador de cinema do Masp.

Um começo difícil
As condições eram precárias. O Masp não possuía um bom projetor e o acesso aos filmes era difícil. Realizar a primeira edição da Mostra foi uma batalha. O problema da projeção foi resolvido pelo lendário “seu Ernesto”, projetor de 16 mm emprestado pelo Instituto Goethe. E os filmes estrangeiros chegavam com a ajuda das embaixadas no Brasil. Graças à imunidade das “malas diplomáticas” – pelas quais os diplomatas recebiam material para divertimento próprio – esses filmes acabavam indo parar no “seu Ernesto”. Todos os outros precisavam de aprovação. Havia pressões, como o confisco de filmes e cortes de cenas. “Tínhamos que exibir o filme antes para os censores”, lembra Cakoff. Naquele primeiro ano, o festival apresentou 16 longas e sete curtas – e teve vetado um curta chinês. O filme premiado por voto popular foi Lúcio Flávio, o passageiro da agonia, do argentino Hector Babenco.

O cubano A Última Ceia, de Tomás Gutiérrez Alea, venceu a segunda edição, mas foi a partir do festival de 1979 que a Mostra assumiu a sua diversidade. Exibiu, entre outros, A Batalha do Chile, de Patricio Guzmán, sobre a queda de Pinochet, em meio ao governo militar, documentários nacionais de cunho político, O Amigo Americano, de Wim Wenders (diretor de Paris, Texas e Buena Vista Social Club) e A Estratégia da Aranha, de Bernardo Bertolucci. Na abertura, uma surpresa: em meio à apresentação de Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, com cerca de quatro horas de duração, alguns espectadores abandonaram o cinema. Não seria a única vez em todos esses anos. “Fiz a minha parte”, diz Cakoff. Começaram a surgir problemas entre o Masp e a organização da Mostra. Após a sétima edição, a situação piorou quando Pietro Maria Bardi, diretor do museu, acusou Cakoff de ganhar dinheiro com o festival e decidiu não levá-lo adiante. Leon, então, mudou-se para a Secretaria Municipal de Cultura, onde organizou a oitava edição, que teve sessões no Vitrine, Majestic e outros cinemas do circuito. Ainda em outubro de 1984, a censura interrompeu o festival por quatro dias, provocando a ira da mídia internacional. No início da nona edição, a censura em festivais de cinema já estava provisoriamente abolida.
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Filmes, cineastas e parcerias
A nona edição foi a do início das retrospectivas e teve a participação dos estreantes Joe Stelling e Lars von Trier, o mesmo que mais tarde lançaria o movimento Dogma 95, por um cinema mais realista e menos comercial. Em toda a sua existência, não ficaram de fora os documentários de Michael Moore, a ficção de Stephen Daldry (indicado ao Oscar por Billy Elliot em 2000), o conceitualismo de David Lynch e trabalhos de diretores como Alejandro González Iñárritu, Alejandro Jodorowsky e Amos Gitai. O festival acompanhou a formação de uma geração de cineastas brasileiros, como Beto Brant, Walter Salles, Luís Fernando Carvalho, Daniela Thomas e Fernando Meirelles, cujo filme Cidade de Deus reinventou o cinema nacional. Em 2002, lançou Ônibus 174, documentário de José Padilha que inspirou o longa Última Parada 174, de Bruno Barreto, escolhido para representar o Brasil na disputa pela indicação ao Oscar de filme estrangeiro. O lançamento nacional do filme, que teve prévia no festival do Rio, está programado para 24 de outubro, no decorrer da 32ª edição.

Nesse meio tempo, a Mostra fez as pazes com o Masp. Todos os anos, são exibidos gratuitamente filmes no seu vão livre. “É uma parceria antiga da qual temos enorme orgulho”, diz Deborah Lauand, coordenadora de eventos do museu. A cada ano, a organização do evento também recebe mais contribuições. As primeiras vinhetas de apresentação da Mostra, por exemplo, foram feitas por Fernando Meirelles, então publicitário e cineasta estreante. Desde 1987 os cartazes de propaganda passaram a ser assinados por artistas como Federico Fellini, Isabella Rossellini, Manoel de Oliveira, Akira Kurosawa, Angeli e Hector Babenco – que aparece de homem-placa em seu próprio cartaz, repetindo a cena de Bardi, em 1983. O deste ano, assim como o de 1993, é de Tomie Ohtake, que criou o desenho do troféu da Mostra. O festival de São Paulo passou a ser também palco de acasos cinematográficos. Foi na mesa de um restaurante que a cineasta belga Marion Hänsel e os produtores Cedomir Kolar e Marco Müller selaram o pacto de fazer um filme juntos. Os três, que não se conheciam, concluíram dois anos mais tarde Terra de Ninguém, vencedor do Oscar do melhor filme estrangeiro em 2001.

OUÇA ENTREVISTA COM LEON CAKOFF:

 

A próxima cena
A Mostra cresceu. Leon Cakoff, que em 1977 trabalhava sozinho, administra hoje um escritório que começa o ano com dez pessoas e na época do festival chega a ter 300. A seu lado, a esposa Renata de Almeida cuida de cada detalhe, até mesmo da seleção dos filmes. “Assistimos a aproximadamente dois mil títulos por ano, um a um, tentando enxergar com o olho do nosso público, pensar no que eles gostariam de ver”, diz. Além de considerar o gosto pessoal, eles tentam levar em conta a parte técnica. “Não dá pra ir pelo exótico. Se a intenção é levar um filme iraniano, tem que ser, sobretudo, um bom filme iraniano”, completa. Os filmes apresentados também estão atingindo um outro tipo de público. A principal patrocinadora do evento, a Petrobras, estabelece algumas regras para dar seu apoio. Entre elas, ter retorno social. Em 2008, a empresa destinou R$ 37,5 milhões a projetos de cinema, utilizando os benefícios fiscais das Leis Rouanet e Audiovisual. Em contrapartida, foram organizadas exibições voltadas para alunos de escolas públicas e sessões gratuitas.

Entre as novidades para este ano, Renata aponta as retrospectivas do sueco Ingmar Bergman e do japonês Kihachi Okamoto: “Elas estão sendo tratadas quase que como filmes novos, pela raridade e ineditismo”, diz. Segundo Renata, a escolha por Okamoto foi para homenagear o centenário da imigração japonesa, e por Bergman, para comemorar os 90 anos que o diretor completaria em 2008. Entre 17 e 30 de outubro, serão cerca de 400 filmes, espalhados por 16 espaços de cinema, e ainda palestras, seminários e programas especiais para vários tipos de público. Em cada filme, um universo, um aprendizado, uma chance. Oportunidade de, nas telas do cinema, ver o mundo por outras lentes.


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