Corrija o título acima. O amigo da onça existe, na verdade, desde que o mundo é mundo. Quem nunca teve perto um tipo assim, inconveniente, linguarudo e fofoqueiro que atire a primeira pedra – nele ou na onça, claro. Mas o que se diz aqui tem a ver com o personagem dos cartuns e dos quadrinhos criado para a revista semanal “O Cruzeiro”, que estreou no dia 23 de outubro de 1943. “O Cruzeiro” pertencia ao magnata da imprensa brasileira Assis Chateaubriand, dono de uma rede de rádios, jornais e revistas e fundaria em 1950 a primeira emissora de TV do país, a Tupi. Era uma espécie de “Fantástico” da Rede Globo na época. Todo mundo seguia o que pregava a revista – moda, comportamento, esporte, política etc.
Embora se diga que sua origem é argentina, oficialmente O Amigo da Onça foi criado pelo pernambucano Péricles de Andrade Maranhão (1924-1961), que migrou aos 18 anos de idade para o Rio de Janeiro, onde queria fazer carreira como cartunista e ilustrador. Dono de um traço singular e marcante, elegante e estiloso, era um artista inconfundível.
Nos 17 anos que produziu seu personagem, em cerca de 650 cartuns, sempre na última página da revista, transformou o anti-herói sem nenhum caráter, tão brasileiro e universal ao mesmo tempo, na primeira leitura de boa parte dos leitores assim que pegavam o exemplar da revista para ler. Ao invés de abrir na primeira página, ia-se direto à última ver o cartum de Péricles. Com seu jeito satírico, irônico e crítico de costumes e com uma ingenuidade típica da época, O Amigo da Onça sempre colocava seus interlocutores nas mais embaraçosas situações.
Para quem não sabe, foi essa a famosa anedota que deu origem ao personagem:
Dois caçadores conversam em seu acampamento:
— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?
— Ora, dava um tiro nela.
— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?
— Bom, então eu matava ela com meu facão.
— E se você estivesse sem o facão?
— Apanhava um pedaço de pau.
— E se não tivesse nenhum pedaço de pau?
— Subiria na árvore mais próxima!
— E se não tivesse nenhuma árvore?
— Sairia correndo.
— E se você estivesse paralisado pelo medo?
Então, o outro, já irritado, retruca:
— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?
Péricles se matou na véspera do ano novo, em 31 de dezembro de 1961. Vedou todas as janelas e abriu o gás. Antes, fixou na porta um cartaz onde se lia: “Por favor, não risquem fósforos”. Sobre ele, assim que soube de sua morte, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: “A solidão do caricaturista seria talvez reação contra a personagem, que o perseguia, que lhe era necessária e que lhe travara os meios de comunicar-se e comungar com outros seres”.
O Amigo da Onça morreu junto com seu criador, embora tivesse continuidade – foi desenhado por Getulio Delphim durante dois anos, amigo e parceiro de Péricles na produção de outros personagens que ficaram inéditos: Oliveira Trapalhão e Laurindo Capoeira. Como Péricles era muito ciumento com seu personagem, Getúlio assinava “Equipe do Cruzeiro”. Após esses dois anos, o cartunista Carlos Estevão desenhou o personagem até 1972. “O Cruzeiro” desapareceu dois anos depois. O Amigo da Onça, não. Continua a ser lembrado como referência de um Brasil cheio de glamour e de contradições.
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