[23 de 100] A arte de reconstruir o futuro de Philip K. Dick

 O futuro é logo ali, em 2021. E ele está nas páginas de “O Caçador de Androides”. É muito provável que se encontre dificuldade para ler esse romance de ficção científica do americano Philip K. Dick (1928-1982), lançado em 1968, caso o leitor tenha visto antes sua versão cinematográfica, feita 14 anos depois, pelo diretor Ridley Scott, que consagrou o ator Harrison Ford no papel principal. Os cenários de decadência, a cidade caótica e superpovoada, os seres, biologicamente desenvolvidos em laboratório, simbolizados pelos personagens de Daryl Hannah e Rutger Hauer. Não falta quem diga que, nesse caso, o filme superou o texto original. Não que isso tenha acontecido, mas os dois formatos dessa intrigante história têm vida própria e independente. Sem dúvida. Se Scott conseguiu fazer o filme de ficção científica mais influente de todos os tempos – só não é o mais cultuado, garantem os fãs da série “Guerra nas Estrelas” –, não chegou a aproveitar todos os elementos do livro de K. Dick, o que dá ao texto impresso certa autonomia e individualidade. 

Ler, portanto, “O Caçador de Androide” não deve ser encarado como apenas uma curiosidade para ver de onde saiu um filme tão fascinante. Seria mais um complemento ao filme. K. Dick escreveu um grande livro desse gênero tão subestimado pela crítica que é a ficção científica. A obra, de estrutura perfeita, tem personagens ricamente constituídos e traz um tema mais atual que nunca: a busca do homem pela imortalidade, a partir de experimentos de clonagem e construção de seres artificiais por meio de células de laboratório. Como em toda obra de cunho futurista que se preza, em algum momento os caminhos do criador e da criatura vão se cruzar e o resultado pode ir do trágico ao catastrófico. A semelhança entre o filme e o livro é grande, mas o tratamento dado ao protagonista é diferente em ambos. No cinema isso acontece de modo mais instintivo, menos reflexivo, cuja compreensão só se dá no decorrer de uma situação limite em que sua vida está ameaçada. No livro, tem-se a história de um caçador de recompensas chamado Rick Deckard, que persegue androides em uma São Francisco pós-guerra nuclear, parcialmente deserta. Um trabalho arriscado o seu, ingrato e questionável que o coloca em uma crise moral, principalmente pelas observações de sua mulher, excluída da história do filme.

Assim como no cinema, a história de K. Dick se passa mais de meio século depois de o livro ter sido escrito. Começa precisamente no dia 3 de janeiro de 2021, em um Planeta Terra que, acreditava o autor, seria devastado por uma guerra de bombas atômicas entre os comunistas da União Soviética e os capitalistas dos Estados Unidos – quando o texto foi escrito, essa tensão estava mais que nunca evidente. Não por acaso, no livro, as grandes cidades vivem mergulhadas nas trevas. A luz do Sol foi ofuscada por uma névoa sombria, mortífera e permanente, formada pela poeira radioativa das explosões e que cobre o céu, deixando aspecto de noite eterna. A única forma de perpetuar a espécie humana é escapar da contaminação e da morte e partir para a colonização de outros planetas. Marte, claro, é a opção imediata. E lá os humanos iniciam a colonização. Nesse caos de melancolia e poucas perspectivas, humanos convivem com robôs humanoides – exatamente os mesmos idealizados pelo escritor tcheco Karel Čapek (1890-1938), na peça visionária “R.U.R.”, em que introduziu o termo robô. Cada vez mais sofisticadas, essas criaturas produzidas em série nos laboratórios são chamadas de androides – foram concebidos para servir aos humanos como escravos em sua tarefa de colonização do universo.

A situação, entretanto, foge ao controle quando alguns replicantes se rebelam contra seus criadores e escapam de seu domínio. Eles são parecidos demais com os humanos naturais. Tanto que conseguiriam sobreviver imperceptíveis entre os homens, não fosse a capacidade de identificá-los de um grupo especial de exterminadores de androides a serviço da polícia. Somente esses mercenários implacáveis são capazes dessa localização, o que levou K. Dick a criar uma espécie de jogo que faz com que nada nesse mundo pós-apocalipse é o que parece ser. Matar os replicantes, porém, não é uma necessidade unânime entre os terráqueos. A operação é polêmica e divide opiniões, pois há quem ache que eles têm direito à vida como qualquer humano. Nesse universo imaginário, a presença humana na Terra é vista como transitória até a migração para Marte. Não há muito que fazer para restaurar o planeta e praticamente todas as espécies de animais estão extintas. As espécimes que restaram, de tão caras, dão a seus donos certo status social, por causa do preço elevado. Como alternativa para quem não tem dinheiro e quer um bicho de estimação, empresas constroem versões eletrônicas de cavalos, pássaros e ovelhas, além de humanos.

Em um mundo ainda dividido em castas, poucos chegarão a Marte, numa seleção quase natural de quem tem posses, quem desembarca no planeta vizinho recebe de presente androides de última geração – humanoides imperceptivelmente perfeitos. Seis deles fogem ao controle em inteligência e sensação e vão parar na Terra, em busca de liberdade e para fugir à escravidão a que foram submetidos. Mas aqui encontram hostilidade e descobrem que estão na mira de caçadores como Rick Deckard, que precisa destruí-los. Mas não será fácil. Deckard, cujo sonho é ter um carneiro de verdade, a ser comprado com o dinheiro das recompensas, precisa “remover” essas criaturas, descritas como perigosos replicantes extrainteligentes de última geração, os temíveis Nexus-6. Em determinado momento, ele se vê forçado a aceitar a ajuda de uma suposta inimiga, Rachel Rosen, também androide da linhagem Nexus-6, só que legalmente estabelecida na Terra. Os dois, no entanto, acabam por se envolver e o caçador – que é casado – entra em conflito consigo sobre a ética de seu trabalho e a própria tarefa de exterminar os humanoides.

Philip K. Dick, assim, segue a tradição dos clássicos de ficção científica de questionar a realidade presente, pelo uso de ideologias totalitárias por meio da tecnologia como ferramenta para que as pessoas percam o controle de suas vidas. E, também, percebam que o mundo real é mais nebuloso ou impreciso do que parece e onde a felicidade pode ser adquirida comvariações de descargas elétricas no cérebro – o modulador psíquico. Ao apresentar uma versão recente do livro, lançada no Brasil pela Rocco, o crítico Roger Zelazny definiu o autor de “O Caçador de Androides” como um mestre em fazer história desnorteante, pungente, grotesca, filosófica, satírica e divertida. Sim, é tudo isso. E um pouco mais. Traduzido para 25 países, explora o futuro para falar do presente e fazer pensar o que se faz hoje que pode ser terrível depois. Assim, o ficcionista respeita preceitos de precursores como Čapek ao criar uma obra subversiva e reflexiva a partir de personagens subjugados em uma sociedade dominadora, autoritária e tecnológica, ao mesmo tempo que defende o direito inquestionável à liberdade física e do espírito humano – de pensamento e expressão.


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