Reflexões e Direitos Humanos

Era ainda março de 2013 quando as estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Paraná, Mariana Ceccon, 20 anos e Marina Mori, 19 anos, davam início a um novo desafio na jovem carreira: a imersão em um tema que até então não fazia parte do cotidiano das duas. Depois de levantar inúmeras pautas que se encaixassem no tema bullying, proposto pelo 5º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão realizado pelo Instituto Herzog, um assunto em especial chamou a atenção das jovens e do professor orientador, José Carlos Fernandes: os direitos e o cotidiano de alunos transexuais. 

Quase oito meses depois as duas eram reconhecidas na premiação final do concurso, realizada no dia 22 de outubro, 2013, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Prêmio que deu a elas uma viagem para conhecer o Museu do Apartheid, em Johannesburg, África, que será feita no ano que vem, 2014. 

Com um assunto extremamente delicado em mãos, o grande desafio foi se debruçar sobre uma causa que, segundo as duas estudantes, era invisível até para os Direitos Humanos. O processo de pesquisa encontrou obstáculos desde o uso do vocabulário LGBT, já que há um grande abismo entre algumas definições postas em manuais de comunicação do movimento e a sua identificação com pessoas transgêneras.

Para resolver a questão foi preciso definir, antes de tudo, quem seria o leitor potencial. “Decidimos que não íamos escrever para o movimento ou para pessoas transgêneras. E sim para o público leigo. Então adotamos os conceitos de uma psicanalista aqui de Curitiba, e escolhemos uma forma de contar, mas o que queríamos era passar a mensagem de que o mais importante mesmo é o respeito”, defende Mariana.

Feito isso, foi uma questão de tempo e muita dedicação para as estudantes chegarem a mais de 130 mil caracteres escritos, 24 entrevistas, dois vídeos, três podcasts, um ensaio fotográfico e quatro infográficos, todos reunidos no site EducaçãoTrans. Antes de ser contemplado com o prêmio máximo, o EducaçãoTrans foi selecionado finalista ao lado de outras três propostas que também abordavam o tema bullying e inclusão.  

A seguir confira a entrevista que a Brasileiros teve com as duas jornalistas, que além de discutirem a importância de trazer à luz o tema transgênero na educação,  falam sobre o desejo de ambas em atuar ainda mais na área de Direitos Humanos.

As estudantes de Jornalismo Marina e Mariana ao lado das personagens da reportagem que levou o Prêmio Jovem Jornalista deste ano
As estudantes de Jornalismo Marina e Mariana ao lado das personagens da reportagem que levou o Prêmio Jovem Jornalista deste ano. Fotos: Alexandre Mazzo

Brasileiros – O tema transgenêro é bem delicado até no que tange ao próprio vocabulário da causa. Como foi o processo de pesquisa e preparo para abordar o tema?

Mariana – Esse foi o maior desafio da pauta, a questão da linguagem foi muito dura e foi a única vez que eu pensei em desistir do projeto. Para fazer a pauta a gente conversou em Curitiba com uma professora conhecida por defender a causa LGBT. Ela nos colocou no chão, falou das questões de gênero e nos deu um Manual de Comunicação da causa – criado pelo próprio movimento e livros, e pesquisamos muito na internet. Mas quando você entra na causa, você tem problema, pois nem todas as pessoas transgêneras se identificam com alguns termos desse manual e muitas se sentem ofendidas. Então tivemos que decidir para quem nós íamos escrever essa matéria. Decidimos que não íamos escrever para o movimento ou para pessoas transgêneras. E sim para o público leigo. Então adotamos os conceitos de uma psicanalista aqui de Curitiba, e escolhemos uma forma de contar, mas o que queríamos mesmo era passar a mensagem de que o mais importante é o respeito. 

Brasileiros – Como foi atuar em uma grande reportagem em parceria?

Mariana – Foi excelente. Eu digo para a Marina que eu não faria o trabalho se não fosse com ela. Na hora de escrever, escrevemos a quatro mãos mesmo, que é o mais difícil. Mas entramos com um terceiro elemento que é nosso professor, que foi outra experiência incrível. Ele editou todos os textos e deu uma unidade. E a parceria com o professor foi muito bacana, no sentido de inovar a educação mesmo. Porque ele não ocupou aquela posição hierárquica de uma sala de aula. Ele agiu como um parceiro nosso, ele editou o texto, mas não era a palavra final a dele, tanto que adicionamos bastante coisa depois da edição final. Foi um aprendizado para nós, ele também disse que foi um grande aprendizado para ele. E acho que isso é o mais perto que a gente pode chegar de uma educação democrática.

Brasileiros – Vocês tiveram dificuldades em encontrar personagens que topassem falar sobre suas vidas e discutir o tema na educação?

Mariana – Eu achei que ia ser a parte mais difícil encontrar esses personagens e não foi. Eles foram excelentes e super acessíveis. A gente diz que a Laysa Machado (historiadora, trans e diretora de uma escola pública no Paraná) é a madrinha do nosso projeto. Ela topava fazer tudo, ensaio fotográfico, falar com os alunos. E os jovens também se dispuseram a falar. O mais difícil, por incrível que pareça, foi o acesso às escolas e especialistas. Era uma realidade muito burocrática. Houve caso de um educador que disse que desconhecia a realidade de alunos transgêneros na escola.

Brasileiros – Você disse que outra dificuldade foi constatar que a própria causa é invisível aos Direitos humanos e que o próprio movimento marginaliza os transgêneros.

Mariana – Muitos dos nossos entrevistados disseram, inclusive, que eles sofrem muito preconceito de homens gays e lésbicas, que o movimento TT (Travestis e Transexuais) não participa do movimento LGBT. Eles são pessoas que estão no movimento na hora do exótico, na hora da parada gay, mas na hora dos direitos mesmo, poucas coisas são para elas. Há também dificuldades na relação do trato entre transexuais e travestis. Por isso, a questão da linguagem é muito delicada. 

Brasileiros – Constatar que a rede das escolas, tanto pública e privada, e que os professores não estão preparados para lidar com a diversidade, isso chocou um pouco vocês?

Mariana – Eu acho que o que foi mais duro, foi ouvir o fundador da Escola da Ponte (em Portugal), José Pacheco. E conhecer o trabalho dele fez com que a gente ficasse muito mais cética com a educação em geral. Eu já não acredito mais nessa escola quadradinha. Mas no final, a gente ainda tem bastante esperança, é como a Marisa (professora entrevistada) falou no vídeo, a gente conhece um professor que planta uma semente em um aluno e esse aluno vai levar para frente. A gente acredita em professores que façam a diferença dentro do sistema.
Marina – Na verdade, só tornou concreto o que eu imaginava. É claro que havia esperanças de que o núcleo de diversidade sexual, da Secretaria de Educação do Paraná, estivesse um pouco mais adiante nessa discussão, mas quando vimos que nem lá as questões dos transgêneros eram cuidadas com atenção, foi impossível não se decepcionar. Quanto aos professores, encontramos gente dos dois lados: os que tinham respaldo para lidar com a situação e os que nunca tiveram nenhum curso de como “educar na diversidade”. A esperança é saber que muitos deles têm a vontade de transformar a sala de aula. E é por aí que começa.


Brasileiros – Um dos entrevistados, o urologista Dr. Eloísio Alexsandro (que comanda um dos centros no país que atende transexuais de forma gratuita, pelo SUS) disse a vocês que falar sobre o assunto com a imprensa também é uma questão de saúde pública. E o trabalho de vocês também tem esse peso, de conscientizar e humanizar a causa. O que mudou para vocês depois do trabalho?

Marina – Nossa, tudo mudou. Durante o projeto, percebi que o preconceito começa (e continua) principalmente por causa da distância, sabe? Acho que é com a convivência que as pessoas aprendem a viver na diversidade, como disse o educador português José Pacheco. É claro que o caminho é longo ainda, mas fazer parte desse projeto me fez crescer muito e deu esperanças de que o maior número possível de pessoas veja isso e aprenda um pouco mais, assim como eu aprendi. 
Mariana – A forma que eu via a minha profissão e a minha vida pessoal mudou muito. A gente teve que passar por muitos dilemas éticos. Eu parei para pensar muito no que é ser mulher, no que é ser homem, quantas coisas nos impõem, o que é cultural, tratar as pessoas como pessoas e não pelo sexo delas. Na profissão, é um marco não porque a gente venceu o prêmio, mas porque foi a primeira grande reportagem que a gente fez e que depositaram confiança no nosso trabalho.

Brasileiros – Depois de ir à campo, ir fundo ao tema, ficou ainda mais presente a intenção de trabalhar com temas pertinentes aos direitos humanos? 

Mariana – Hoje eu tenho certeza, lógico que o mercado é difícil, mas tenho certeza de que é isso que eu quero para minha vida, é isso que eu sei fazer, que eu gosto e principalmente no que tange os Direitos Humanos. Acho que esse prêmio não é meu e da Marina, é um prêmio para a causa.

Marina – Com certeza. Durante o processo já surgiu uma outra pauta também relacionada aos direitos humanos, que vamos realizar no TCC de jornalismo. Quando estamos inseridos nesse contexto, vemos que ainda há muitas outras vozes pedindo o direito de falar. Eu vou fazer o possível para deixá-las falar, e tenho certeza que a Mari também. 

 

 

 

 

 


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