Cenas da vida serena no sertão do Ceará

Meu destino era Limoeiro do Norte, no Vale do Jaguaribe, nordeste do Ceará, a 196 quilômetros de Fortaleza. Faltando apenas 30 e poucos quilômetros, o carro alugado, novinho em folha, quebrou na altura de Russas, na BR-116.

No posto em que entramos, o pessoal até ficou assustado com o tanto de fumaça que saia por todo lado, e tomou providências rapidamente, todo mundo querendo ajudar. Sem ninguém descobrir o defeito, arrumaram logo um moto-táxi para nos levar até a melhor oficina da cidade.

Dedé, o dono, largou o que estava fazendo para nos atender e não demorou a dar o diagnóstico: estourou a bomba de óleo da direção hidráulica. Como não tinha conserto, avisamos a locadora, que ficou de nos mandar um outro carro.

Já estava em cima da hora do encontro com Robertson Lima, da Agropolos, nosso gentil guia em Limoeiro, que já havia marcado várias entrevistas com sertanejos.

Resolvi completar a viagem até Limoeiro de táxi, enquanto Ernesto dos Santos, o bravo parceiro fotógrafo que me acompanha nesta viagem, ficaria em Russas, esperando o carro-guincho que traria o carro novo e levaria o quebrado.

Nestas horas, não adianta ficar nervoso. “Quer ir por dentro ou por fora?”, consultou-me o motorista Zé de Fátima, que logo descobri ser mais surdo do que eu. “Por dentro”, respondi na lata, falando alto, sem ter a menor idéia do caminho.

Pegamos uma estrada de chão para cortar caminho, que, segundo o piloto, reduziria nossa viagem em dez quilômetros. Valeu a pena. Deu para ver a vida serena do sertão por dentro.

Em Flores, distrito de Russas, atravessamos uma ponte sobre o rio Jaguaribe _ o maior e o único perene do Ceará, tão estreita que só pode passar carro pequeno por ali. O rio ali também é estreito e raso, sem fazer jus à fama.

Quase não se vê viva lama no caminho, só um ou outro sertanejo solitário, pastoreando ovelhas e carneiros entre cavalos que passeiam pela estradinha.

Mais próximo da área urbana, as casas estão enfeitadas de propaganda eleitoral. Logo fica claro que aqui prevalece o bipartidarismo.

Só se vê faixas e cartazes com o número 20 (do PSB, de Ciro e Cid Gomes) e 45 (do PSDB, de Tasso Jereissati). Embora eternos aliados, por mais de duas décadas reinando na política cearense, aqui no sertão Tasso e Ciro disputam as prefeituras e cadeiras as câmaras municipais.

Em São Raimundo, já distrito de Limoeiro, um motoqueiro com caixa de som na garupa, anunciava o número e as qualidades dos candidatos para ninguém. Ruas vazias, casas e lojas fechadas, dei-me conta de que já é meio-dia, em pleno verão cearense, o período da estiagem e do sol de rachar.

Depois de almoçar com Robertson em Limoeiro num restaurante a quilo, esta praga nacional da comida requentada, voltei com ele para Russas, onde Ernesto nos esperava.

Três da tarde, nada do carro novo chegar, resolvi dar uma volta por Russas em busca de uma banca de jornal e uma sorveteria. Não encontrei nenhuma dessas benfeitorias urbanas, mas aproveitei para comprar um boné porque nunca me lembro de trazer o dito cujo nas viagens, adereço indispensável para carecas, principalmente no sertão.

Mas encontrei no caminho o salão do Tó. Salão é modo de dizer: quando olhei lá dentro achei impossível que ali pudesse funcionar uma barbearia: num cubículo de dois por dois, havia uma cadeira desconjuntada, um monte de tralhas empoeiradas e nenhum sinal das ferramentas necessárias para o serviço.

De longe, Tó me viu entrar e chegou rapidinho. ” Barba ou cabelo?”, foi perguntando. Apontei para a minha cabeça e ele entendeu que só poderia ser a barba.

Nunca fiz uma barba igual na vida, eu que sou viciado em fazer a barba em barbeiros de todo canto por onde passo. A toda hora ele me mandava abrir ou fechar a boca. Resolvi brincar com ele:

– Mas aqui é barbeiro ou dentista?

Tó achou graça, terminou o serviço com capricho, e me cobrou três reais pelo serviço que em São Paulo pago trinta.

Mais barato do que isso, só o sorvete de anilina cor de goiaba que acabei encontrando numa mercearia. Chamado de “dimdim”, custou-me a fortuna de dez centavos.

Lá pelas quatro da tarde, Ernesto e eu finalmente começamos a fazer a nossa reportagem em Limoeiro, começando por Zé Xicó, plantador de bananas no Perímetro Irrigado de Tabuleiro de Russas.

Foi bem na hora da melhor luz do dia, o sol já não tão forte, amarelando, sonho de qualquer fotógrafo. Logo na primeira, ele veio correndo me mostrar o resultado: “Já temos a capa!”

Viemos parar aqui para contar a história de retirantes que retornaram para o sertão, tema da edição de aniversário da revista “Globo Rural”, que completa 23 anos em outubro.

A primeira e última vez em que trabalhamos juntos completa o mesmo tempo, pois eu saí poucos meses após o lançamento, e Ernesto está lá até hoje, é o funcionário mais antigo da revista.

Trata-se de um personagem pré-histórico, profissional obcecado pela melhor foto, que já ganhou o Premio Gabriel Garcia Marques de Periodismo, um troféu para poucos.

Quando soube do prêmio, resolveu soltar um rojão, coisa que nunca tinha feito na vida. O rojão estourou na sua mão e, por isso, ele usa até hoje uma luva preta para proteger os dedos reimplantados com muitos ferros em volta.

Logo cedo, no café da manhã, ele sentiu dor nos dedos e anunciou que ia chover, para espanto de Robertson, um engenheiro agrônomo que até por seu ofício é obrigado a entender dos mistérios da metereologia.

O agrônomo olhou para o céu, e garantiu: nessa época do ano, não costuma chover no sertão. Pois não é que, no final da tarde desta quarta-feira de final de agosto, quando Ernesto tirou a última foto e demos por encerrado o nosso trabalho em Limoeiro, começou a chover no sertão?

Uma chuva fina, bem serena é verdade, mas deu para molhar o chão seco desta terra de gente hospitaleira, que a toda hora vem me perguntar, enquanto escrevo esta coluna no saguão do hotel, se estou precisando de alguma coisa.

Na entrada do Classic Hotel, onde estamos muito bem hospedados, atrás dos vidros onde se lê “Cyber Classic.com – A internet mais rápida da cidade – Entretenimento, Pesquisa e Bate Papo”, quase todos os 11 computadores estão permanentemente ocupados.

A modernidade da vida serena só é quebrada por alguns instantes pelo buzinaço de dezenas de carros e motos agitando bandeiras amarelas de “Dilmar é 10”, o prefeito de Limoeiro do Norte candidato à reeleição pelo PSB em aliança com o PT.

Bem nessa hora, acaba a bateria do notebook. Deve ter sido o barulho. Logo me providenciam um benjamim pra plugar meu moderno aparelho na tomada antiga. Oito da noite, vida que segue no sertão, e eu vou sair em busca de um bode assado.


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