[25 de 100] A infelicidade do amor eterno, pelo olhar de Nelson Rodrigues

img110Sabino Uchoa Maranhão é um pai de família exemplar. Construiu para si a imagem do homem sério e respeitável, como mandava o figurino da classe média brasileira da década de 1950 e começo dos anos de 1960 – pré-golpe militar de 1964. Bem sucedido nos negócios e cumpridor de suas obrigações familiares, sua única preocupação no momento é o casamento da filha caçula, Glorinha, que mal saiu da adolescência. “Magro, de canelas finas, diáfanas, peito cavado, costelas de Cristo”, Sabino é louco pela moça. Mataria ou morreria por ela e mais ninguém. Por mais que tentasse, não conseguia esconder da esposa e dos demais filhos sua preferência – um sentimento obsessivo, possessivo, quase doentio, quase incestuoso. “O pai (de Sabino) queria que ele fosse um homem de bem e desde então a vontade do defunto o acompanhava por toda parte”, descreve o narrador. 

Cidadão exemplar, Dr. Sabino não admitia palavrório sem recato em sua casa. Era tão severo e moralista que, para ele, o ato amoroso era algo para ser feito “em silêncio”. Glorinha, claro, sabia explorar os mimos e dengos do pai a seu favor. “Eu daria a minha última camisa à minha filha”, dizia, de boca cheia, orgulhoso, para quem quisesse ouvir. No fundo, compensava nela o sacrifício de viver como um homem de virtude, forçado a manter um casamento morno e sem sexo com Eudóxia, com quem se casara “porque era impotente com prostitutas”. Isto é, unira-se em nome da moral. Mas a carne é fraca e Sabino praticava suas infidelidades longe dos olhos de todos. Sua aparente respeitabilidade não impediu que, às vésperas das núpcias da filha, convidasse sua secretária, dona Noêmia, para um encontro furtivo. Na ocasião, não escondeu o desprezo pela reação imediata da funcionária: “A senhora não soube nem fingir uma resistência”, reclamou.

Sabino e Glorinha são os protagonistas de “O Casamento”, romance de Nelson Rodrigues (1912-1980), publicado originalmente em 1966, pela Livraria Eldorado. A história se passa nas 48 horas que antecedem a união entre a jovem e o noivo Teófilo, um rapaz aparentemente exemplar para se casar – bem apessoado, boa família. Tudo parecia caminhar para um desfecho normal, rumo à felicidade, até que o médico da noiva, Dr. Camarinha, chama Sabino para uma conversa urgente e grave. Na privacidade do consultório, ele revela ao amigo que flagrara Teófilo beijando seu assistente. Sim, um beijo homossexual, intenso, ardente, carregado de desejos. Chocante, inadmissível, imperdoável, para a época. O dilema se instala em sua consciência de pai: se contar o acontecido à filha levaria ao cancelamento do ato mais importante da vida de Glorinha e a uma grande decepção. Não contar é levá-la a um destino infeliz. “Um pai não tem o direito de ignorar a pederastia de um genro.”

A partir daí, uma série de acontecimentos vem à tona, envolve vários personagens e expõe um mundo surpreendente de dramas, revelações e traições – com certo humor – que só Nelson Rodrigues sabia imaginar e dar corpo na ficção. Na história, aparecem os temas preferidos do autor – as mazelas do casamento, a homossexualidade como drama familiar, a traição, a perversão. Ninguém jamais entendeu a alma e a intimidade do brasileiro como o polêmico e condenado dramaturgo e cronista. Em sua coluna “A Vida Como Ela É” ou nos folhetins dramáticos publicados no jornal “Última Hora”, ele fala do romantismo às avessas, ao tratar de instigantes histórias de adultério, ciúme e obsessão. Assim, retratou a classe média brasileira do pós-guerra e desnudou a hipocrisia das relações sociais e amorosas. Uma frase sua não muito conhecida funciona como a síntese perfeita de tudo que ele escreveu em seus contos, romances e peças: “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”.

Nelson era um romântico sofredor disfarçado de incrédulo. Entregar-se aos sentimentos, portanto, para ele, implicava em algum tipo de dor ou tormento que, não raro, poderia acabar em tragédia. Sim, porque quem ama mata. E de modo muitas vezes traiçoeiro e cruel, como mostrava o sensacionalismo de jornais e revistas na época em que viveu suas adolescência e juventude, entre as décadas de 1920 e 1930. Quem ler toda a sua obra ficcional percebe um universo único, perfeito e acabado, construído por ele sobre a dramaticidade do amor, com uma percepção e sabedorias raras. O escritor, na verdade, contava histórias que eram variações sobre o mesmo tema dentro da sua própria ficção. E, portanto, pareciam repetitivas, muitas vezes. E eram, com leves mudanças. Mas isso pouco importava. Ele falava em perversões e taras, mas estava longe de ser um pornógrafo ou um pedófilo com fixação em adolescentes ninfetas. Nelson Rodrigues enxergava o óbvio ululante – sua expressão favorita – das regras do amor que, quando rompidas, poderiam levar a consequências terríveis.

“O Casamento” é seu romance mais bem escrito e o único feito exclusivamente para sair em livro e não em capítulos a serem publicados em jornal, como acontecia com a sua prosa ficcional desde a década de 1940. Embora menos chocante que as trágicas histórias de seus trabalhos mais famosos, como “Asfalto Selvagem” (“Bonitinha Mas Ordinária”) e “Meu Destino É Pecar”, é a síntese da obra rodrigueana e uma dos grandes textos de ficção da língua portuguesa. No seu caso, em particular, o autor dá um exemplo de maturidade narrativa e perfeito domínio da técnica da escrita, sem abrir mão do sentido subversivo – confundido com pornográfico – de seus escritos. Ele flerta o tempo todo com o dramalhão trágico, com  a possibilidade de um desfecho de sangue. A narrativa é conduzida por meio do suspense, ressaltado ao final de cada capítulo.

Assim, Nelson Rodrigues mantém a estrutura do folhetim, mas os episódios são mais bem construídos e interligados e a história toda amarrada sem a pressa diária de se escrever na redação para o dia seguinte. É também uma obra tardia, mas a maturidade conta a favor de Nelson. A trama se passa no Rio de Janeiro ainda casto do começo da década de 1960, sem espaço para a pílula anticoncepcional e do sexo descompromissado praticado por mulheres – lembremos que somente em 1962, com a entrada em vigor do Estatuto da Mulher Casada, o sexo frágil pode, finalmente, trabalhar sem a autorização por escrito do marido ou do pai (quando solteira). Eram tempos desfavoráveis para o escritor que, mesmo simpático à ditadura militar – ou contra as esquerdas? –, teve seu livro taxado de pornográfico e proibido de circular pela censura, apesar de sair na primeira edição com uma tarja vermelha na capa, onde se via “Leitura para adultos”.


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