A exumação do corpo de João Goulart será o primeiro passo para tentar descobrir se o presidente deposto pelo golpe de 1964 teve morte natural ou foi assassinado. A mesma dúvida paira sobre as mortes do ex-presidente Juscelino Kubitschek e do ex-governador Carlos Lacerda. Antigos adversários, eles haviam se unido em nome da redemocratização do País. Farta documentação comprova que os três eram monitorados de perto por agentes de inteligência, no período em que vigorava a Operação Condor, a aliança clandestina das ditaduras militares do Cone Sul para espionar e eliminar seus adversários, com o apoio estratégico da CIA. Os três morreram em um período de nove meses. Jango, como nos conta o seu ex-ministro Almino Affonso, naquele momento se preparava para voltar ao Brasil.
Foram apenas nove meses. O mesmo tempo que se leva para gerar a vida humana correspondeu ao período em que três líderes políticos brasileiros morreram em circunstâncias nebulosas, durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979). Antigos adversários, os três líderes haviam deixado de lado as divergências e se aproximado para tentar restaurar a democracia no Brasil. Todos eram monitorados de perto pelas polícias políticas das ditaduras do Cone Sul, por meio do acordo clandestino conhecido como Operação Condor. Essas ditaduras, por sua vez, contavam com o apoio integral do governo americano desde os tempos de Lyndon Johnson (1963-1969). O primeiro a morrer foi o ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK), em um acidente de carro na rodovia Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, em agosto de 1976. Em dezembro do mesmo ano, o presidente deposto João Goulart (Jango) morreu na fazenda La Villa, em Mercedes, na Argentina, pouco depois de tomar um comprimido para o coração. Cinco meses mais tarde, no Rio de Janeiro, o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda não sobreviveu a uma internação devido a uma gripe forte. A morte dos três líderes brasileiros ocorreu em um contexto de mudanças na relação dos Estados Unidos com a América Latina, por causa da campanha e eleição do presidente Jimmy Carter. “Havia possibilidade de transição e Carter falava em retirar o apoio às ditaduras do Cone Sul”, afirma o advogado Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que há mais de três décadas investiga a Operação Condor. “Esse cenário acabou por assustar os militares da região. Eles nunca admitiriam uma transição sem controle.”
De lá para cá, não pararam de surgir testemunhas e documentos que tornaram ainda mais densas as brumas em torno das três mortes. Pelo contexto da época, é muito possível que JK, Jango e Lacerda tenham sido mortos. Entre os integrantes das próprias famílias, as opiniões se dividem, com base em convicções pessoais. Um primeiro passo para elucidar essa parte da história recente do Brasil acaba de ser dado em relação a Jango, o presidente deposto pelo golpe militar de 1964. Uma equipe de peritos brasileiros e estrangeiros se prepara para exumar os restos mortais de Jango, na esperança de encontrar indícios que apontem a causa de sua morte. Pela versão oficial, o presidente deposto sofreu um infarto do miocárdio. Pode, no entanto, ter sido vítima de envenenamento. Em busca de elementos para resolver a dúvida, a Comissão Nacional da Verdade pediu ao governo Barack Obama a liberação dos documentos sobre o caso que se encontram arquivados como confidenciais. A pesquisa nos papéis liberados à consulta já está sendo feita para a comissão pelo brasilianista americano James Green, da Universidade Brown, em Providence, Rhode Island.
Jango morreu aos 57 anos, nas primeiras horas da segunda-feira 6 de dezembro de 1976. Na véspera, saíra cedo de uma de suas fazendas – El Rincón, em Tacuarembó, no Uruguai – rumo a outra, a La Villa, que se estendia por 900 hectares em Mercedes, na província de Corrientes, na Argentina. Acompanhado pela mulher, Maria Thereza, ele fez a primeira parte da viagem em um Cessna de sua propriedade. Cruzou o rio Uruguai, na fronteira entre os dois países, em uma lancha alugada. Depois, seguiu viagem de carro, um Opel alemão, com dois funcionários que o esperavam na outra margem. O grupo parou para almoçar no Hotel Alejandro Primero, na cidade de Paso de los Libres, e chegou por volta das 16 horas a La Villa. Na fazenda, Jango saiu com o capataz Julio Passos, para ver o gado e separar os novilhos em lotes, pois pretendia participar de um leilão no dia seguinte. À noite, tomou uma sopa e comeu um pedaço de churrasco de ovelha. Depois que Maria Thereza foi para o quarto, fez um mate e ficou conversando com o capataz. Por volta da 1 hora, tomou um comprimido para o coração e foi dormir. Pouco depois, o capataz ouviu gritos de Maria Thereza e correu até o quarto do casal. Jango já estava morrendo.
O presidente deposto se tratava com um cardiologista de Lyon, na França, pois sofrera um infarto em 1969. Como tinha muitas propriedades e, no exílio, circulava de um lado para outro, os frascos do remédio que tomava eram enviados da França para o Hotel Liberty, em Buenos Aires. Jango já havia morado no hotel, ponto de encontro de exilados latino-americanos. Lá, costumava se encontrar com dois parlamentares uruguaios exilados na Argentina – Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz –, que foram sequestrados e mortos em Buenos Aires, poucos meses antes, em maio de 1976. Quimze dias depois, outro interlocutor de Jango, o presidente deposto da Bolívia Juan José Torres, teve o mesmo destino. Por causa da série de assassinatos e do crescente endurecimento dos governos da região, Jango tinha mandado sua filha, Denize, para Londres, onde já se encontrava o primogênito, João Vicente. Ainda assim, em um primeiro momento, não se questionou a causa da morte do presidente deposto nem foi feita autópsia. As atenções se concentraram em driblar as restrições impostas pela ditadura brasileira, para enterrá-lo em São Borja (RS), onde nascera, levando o corpo por terra, pela fronteira com Uruguaiana (RS). “Foi a custo que conseguimos entrar no Brasil, os militares de início proibiram. Por fim, acabaram permitindo, desde que o cortejo não parasse em nenhum lugar”, conta Almino Affonso, ex-ministro do Trabalho de Jango (leia mais à página 70).
El Crimen Perfecto
O empresário uruguaio Enrique Foch Díaz, que vendera uma fazenda – a El Milagro – para Jango e ficara amigo do presidente deposto, foi a primeira pessoa a se convencer de que ocorrera um assassinato. Antigo piloto, Foch Díaz investigou durante anos a morte de Jango, registrando os indícios encontrados no livro El Crimen Perfecto. Um outro uruguaio, o jornalista Roger Rodriguez, foi, no entanto, quem primeiro chegou ao ex-agente da polícia de seu país Ronald Mario Neira Barreiro. Preso desde 2000 em uma penitenciária de alta segurança do Rio Grande do Sul, o uruguaio Barreiro repete para quem quiser ouvir que Jango foi assassinado por envenenamento, a pedido do governo brasileiro, com acompanhamento da CIA (a agência de inteligência americana). Na sua versão, uma cápsula com um “composto químico” foi colocada em um dos frascos que chegaram da França ao Hotel Liberty. “Não dei o veneno, não fiz nada pessoalmente, mas estava a par dos fatos, porque era quem instalava os equipamentos de rádio, intervinha nos aparelhos telefônicos, tirava fotografias e fazia os acompanhamentos”, costuma ressaltar Barreiro.
Barreiro é uma figura controversa. Nos anos 1970, atuava no Uruguai com o codinome Tenente Tamus. Com a redemocratização do Cone Sul, virou bandido comum. No Brasil, está condenado a mais de 17 anos de prisão por assalto e tráfico de armas, mas não quer nem pensar em ser extraditado para seu país. Lá, também tem dívidas com a Justiça comum. O intrigante é que informações prestadas por ele sobre outros assassinatos e operações clandestinas foram posteriormente confirmadas no Uruguai. João Vicente, o filho de Jango, está convencido de que Barreiro, de fato, monitorava a família. Em 2005, durante encontro entre os dois na penitenciária gaúcha, o ex-agente da polícia uruguaia entrou em detalhes sobre a rotina do presidente deposto e de sua família. No começo do encontro, João Vicente simulou ser integrante de uma equipe de jornalistas que entrevistava Barreiro. Quando ele se identificou, o ex-agente uruguaio relatou episódios conhecidos apenas pela família, como um acidente de carro envolvendo João Vicente, que não teve sequer Boletim de Ocorrência.
O antigo Tenente Tamus não foi, porém, o único a espionar Jango. Dois dias depois do golpe militar de 1964, 2 de abril, um agente da CIA avisou à agência americana que Jango havia deixado Porto Alegre às 13 horas, rumo a Montevidéu. Arquivado na Biblioteca Lyndon Johnson, em Austin, nos Estados Unidos, o documento tem partes cobertas por tinta preta. Dos arquivos do SNI, o serviço de informação da ditadura brasileira, já emergiram dezenas de documentos. Uma das séries mais reveladoras mostra que um informante identificado como Agente B tinha acesso ao círculo íntimo de Jango. No informe 162, de março de 1975, esse agente conta em detalhes como foi o churrasco que reuniu cerca de cem pessoas para comemorar o aniversário de 56 anos de Jango, na fazenda El Milagro, aquela que o presidente deposto comprou do empresário Foch Díaz. No mesmo mês, no informe de número 178, o Agente B relaciona mais de 40 documentos “obtida de forma clandestina no domicílio do nominado”.
Armas químicas
Entre os papéis de Jango roubados pelo homem do SNI estão manuscritos de conteúdo político, cartas recebidas por ele e documentos sobre seus negócios. No mês seguinte, o informe número 308 tem anexado um álbum com 11 fotografias tiradas pelo Agente B durante o churrasco na fazenda El Milagro, com os personagens das imagens numerados e identificados. No segundo semestre de 1976, o provável retorno de Jango ao Brasil é tema de relatórios de outros agentes do SNI. Dois meses e 12 dias antes da morte do presidente deposto, no informe 343, um agente relata que Jango estava em Lyon, para consulta em uma clínica cardiológica, e deveria voltar em breve a Paris. Em tese, nada impedia o retorno de Jango ao Brasil. Embora tivesse sido investigado à exaustão, não havia nenhum processo contra ele no Brasil. Também em tese, poderia se candidatar caso houvesse eleições, pois já havia vencido o período de dez anos de cassação de seus direitos políticos.
O cenário político da região não era favorável, porém, a nenhum líder político civil. Ainda vigorava a Guerra Fria, a disputa geopolítica que dividiu o mundo entre os Estados Unidos e a então União Soviética. Depois de serem surpreendidos pela revolução de Fidel Castro em Cuba, que se alinhara ao bloco socialista, o governo dos Estados Unidos passou a interferir de forma direta na política do continente, a favor dos regimes militares de direita. Com a meta americana de afastar o “perigo comunista”, o Cone Sul ficou infestado de agentes da CIA. Um deles, o americano Michael Townley, está na relação de estrangeiros que a família Goulart pediu para serem ouvidos na investigação que apura a morte de Jango. O difícil é saber qual a atual identidade e localização de Townley. O agente da CIA, que atuou na produção de armas químicas (como gás sarin) no Chile do general Augusto Pinochet, integra o programa americano de proteção a testemunhas.
Na Argentina, Townley é acusado de participar do atentado a bomba que matou, em setembro de 1974 o general Carlos Prats e sua mulher em Buenos Aires, onde estavam exilados depois do golpe liderado por Pinochet, no Chile. No governo de Salvador Allende, Prats era o comandante do Exército. Na extensa lista de acusações contra o americano Townley também está a morte do diplomata Orlando Letelier, que tinha sido ministro da Defesa de Allende, depois da explosão de uma bomba em seu carro, em Washington. Pelo atentado cometido em território americano, Townley chegou a cumprir pena de cinco anos e dois meses de prisão. Depois, ganhou abrigo no programa de testemunhas. Documentos liberados pelo FBI, a polícia federal americana, indicam que ele trabalhava para a DINA, o serviço de inteligência da ditadura chilena, atuante no âmbito da Operação Condor.
Livro com dedicatória
A cópia de uma correspondência do diretor da DINA, coronel Manuel Contreras, para o então chefe do SNI, o serviço de informações da ditadura brasileira, general João Baptista Figueiredo, mais tarde presidente da República, faz parte de dossiê em análise pela Comissão Nacional da Verdade sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek (JK). No documento de 28 de agosto de 1975, Contreras registra que “compartilha” a preocupação com a possível vitória do democrata Jimmy Carter nas eleições presidenciais americanas do ano seguinte e vai além: “Também temos conhecimento do reiterado apoio a Kubichek (sic) e Letelier, o que no futuro poderia influenciar seriamente a estabilidade do Cone Sul do nosso hemisfério”. Coincidência ou não, os dois políticos morreram no ano seguinte. Letelier, na explosão em Washington, em setembro de 1976.
JK morreu 21 dias antes de completar 74 anos, por volta das 18 horas do domingo 22 de agosto de 1976, em um acidente de carro no km 165 da Rodovia Dutra. Ao volante do Opala 1970 de cor marfim ocupado por JK estava Geraldo Ribeiro, seu motorista havia 36 anos. Pela versão oficial, depois de o Opala ter a traseira esquerda abalroada de leve por um ônibus da Viação Cometa, que circulava de São Paulo para o Rio de Janeiro, o motorista perdeu o controle do carro que, desgovernado, atravessou o canteiro central e chocou-se de frente com um caminhão Scania que vinha em direção oposta. JK e o motorista morreram na hora. O ex-presidente foi identificado pela carteira de identidade 1.633.333, expedida pelo Instituto Félix Pacheco, do Rio de Janeiro, que trazia consigo. O advogado Paulo Olivier, hoje com 64 anos, era um dos 33 passageiros do ônibus. Na hora do acidente, ele tinha boa visão da estrada, pois estava no corredor, sentado no braço da poltrona de uma das primeiras fileiras, conversando com outro passageiro, o médico Célio Beltrami.
“O ônibus não bateu no Opala. Nem encostou. O Opala desgovernou, atravessou o canteiro central e bateu no Scania que vinha na pista contrária”, afirma Olivier. “Vi um clarão no vidro traseiro do Opala, mas pode ter sido reflexo do sol. Também pode ter sido um tiro, é claro. A princípio, era um acidente normal. Mas, vendo o histórico, fica uma bruta de uma dúvida.” O médico com quem Olivier conversava tentou prestar os primeiros-socorros aos acidentados. Não havia o que fazer. Olivier pegou o livro As Musas se Levantam, que estava junto ao corpo de JK e, assim que chegou à rodoviária do Rio de Janeiro, telefonou para o número anotado abaixo da dedicatória do autor, Joaquim Felismino de Almeida: “Atendeu o neto. O avô não estava, mas ele me passou o telefone de dona Sarah Kubitschek”, conta Olivier. “Só da terceira vez que liguei, o mordomo passou a ligação. Expliquei que era advogado, que me hospedaria no Hotel Serrador, e avisei sobre o acidente, mas ela não acreditou. Disse que era a segunda vez que matavam o marido dela.” Quinze dias antes, circulara um boato de que JK tinha morrido em um desastre de carro, entre a sua fazenda em Luziânia (GO) e Brasília. Serafim Jardim, ex-secretário particular de JK, acredita que o boato foi um balão de ensaio para saber como a população reagiria à morte do ex-presidente.
Na noite do domingo 22 de agosto, quando dona Sarah confirmou que o boato se tornara realidade, ela pediu a um amigo que procurasse o advogado Olivier no hotel. “Era o ministro Victor Nunes Leal”, lembra Olivier, referindo-se ao antigo chefe da Casa Civil de JK (1956-1959), depois ministro do Supremo Tribunal Federal, cassado pelo regime militar. “Fui com ele ao funeral. E entreguei o livro.” Dez anos depois, dona Sarah falou pela única vez sobre a suspeita de atentado ao Jornal do Brasil: “Precisaram matar, espezinhar, liquidar Juscelino, porque não conseguiram liquidar sua força, sua dignidade, sua coragem, seu carisma de grande líder”. Ela morreu em 1996, convencida de que o acidente fazia parte de um complô para eliminar seu marido. A ex-deputada e ex-vice-governadora do Distrito Federal Márcia Kubitschek, filha mais velha do casal, falecida em 2000, partilhava de convicção similar à da mãe.
A outra filha, a arquiteta Maria Estela Kubitschek, tem posição diferente. “Para mim, foi um acidente. E, como dizia papai, não discuto os desígnios de Deus. Se eu tivesse alguma dúvida, teria ido atrás. Foi um acidente e foi com o Geraldo (o motorista), uma das pessoas mais queridas da vida dele”, diz Maria Estela. A relação de JK com Maria Estela também era muito forte. Quando presidente, ele alterou a lei de adoção, para assumi-la como filha. Até então, casais com filhos eram impedidos de adotar outras crianças. Entre as atuais atividades de Maria Estela está a preservação da memória do pai. No mês passado, quando se celebrou os 111 anos do nascimento de JK, Maria Estela esteve na terra natal dele, Diamantina (MG), que acaba de se tornar cidade-irmã de Trebon, na República Tcheca, onde nasceu o pai do ex-presidente. Em Diamantina, fica a Casa de Juscelino Kubitschek, a construção modesta onde o ex-presidente passou a infância, hoje museu. À frente da Casa está Serafim Jardim, o ex-secretário de JK que conseguiu reabrir as investigações sobre o acidente em 1996: “Juscelino me disse várias vezes que estavam querendo matá-lo”.
Fragmento de metal
Durante as investigações de 1996, o corpo do motorista Geraldo Ribeiro foi exumado e um fragmento de metal encontrado dentro de seu crânio. Peritos atestaram que não passava de um prego desprendido do caixão. O laudo com esse parecer integra dossiê remetido à Comissão Nacional da Verdade pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-MG, que pediu novas apurações no ano passado. “Temos informações de que se trata de um projétil de uso exclusivo das Forças Armadas”, diz o advogado William dos Santos, da OAB-MG. Novas perícias serão feitas em breve no crânio de Geraldo e na peça de metal, por determinação do governo de Minas Gerais, a pedido da Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, que também investiga a morte de JK. “A suspeita é que o motorista do ex-presidente levou um tiro na cabeça e perdeu o controle do carro. Se o metal for um pedaço de projétil, acabou a dúvida”, afirma o vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da comissão. O recente depoimento do motorista do ônibus da Viação Cometa à comissão reforçou a tese de atentado. Hoje com 69 anos, Josias Nunes de Oliveira contou que poucos dias após o acidente recebeu uma proposta estranha em sua casa, em São Paulo. “Eram 9 horas da manhã de um sábado, eu estava de folga. Chegaram dois homens, cabeludos, em duas motos Honda CB 400. Primeiro, disseram que eram repórteres. Depois, me ofereceram uma mala de dinheiro para eu assumir a culpa do acidente”, afirma o motorista. “Tinha maços de 500 cruzeiros. Era muito dinheiro, mas não aceitei. A verdade é que não bati no Opala.”
A terceira morte em circunstâncias nebulosas ocorrida na época em que as ditaduras do Cone Sul se associaram para vigiar e eliminar seus adversários foi a de Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara. Registrado ao nascer como Carlos Frederico Werneck de Lacerda – Carlos em homenagem a Karl Marx e Frederico por causa de Friedrich Engels –, o jornalista, editor e político carioca só seguiu as raízes socialistas e comunistas da família até os 25 anos. Polemista sanguíneo e orador talentoso, Lacerda foi alvo de um dos mais rumorosos atentados do Brasil, na época em que desfechava ataques contínuos contra o segundo governo Getúlio Vargas (1951-1954). No atentado, na madrugada do dia 5 de agosto de 1954, morreu o major-aviador Rubens Florentino Vaz, que o acompanhava. Ainda no hospital – Lacerda foi atingido por um tiro no pé –, o político responsabilizou “elementos da alta esfera” do governo pela morte do major. O episódio e a campanha empreendida por Lacerda na sequência ajudaram a aguçar a crise no governo, até por que a guarda pessoal do então presidente estava, de fato, por trás do atentado. Dezenove dias depois, Vargas se matou com um tiro no coração.
Quando Jango, o herdeiro político de Vargas, assumiu a Presidência da República, Lacerda também se encontrava ativo, na oposição. Era governador da Guanabara, a cidade-Estado que existiu de 1960 a 1975, no território da antiga capital do Brasil. Já famoso como anticomunista, o governador Lacerda foi um dos artífices civis do golpe militar de 1964. O apoio aos militares, porém, durou pouco. Com a suspensão das eleições presidenciais previstas para 1965, Lacerda viu ruírem os planos de se candidatar ao Palácio do Planalto e passou a articular contra o regime. Procurou dois antigos adversários – Jango e JK. Na sequência, lançou um movimento conhecido como Frente Ampla, com vistas a afastar “o perigo permanente que é o governo militar”. Sabia dos riscos que corria. A tradutora Cristina Lacerda, a caçula dos três filhos do político, guarda até hoje uma carta escrita pelo pai na noite de 22 de setembro de 1967, na véspera de embarcar para Montevidéu, para encontrar-se com Jango, que estava exilado no Uruguai.
Depois de discorrer sobre os pontos a serem tratados no encontro, Lacerda registra no documento: “Eis o que me leva a Montevidéu. Se algo me acontecer que me impeça de divulgar a verdade, rogo que divulguem estas palavras. Quanto ao resto, está devidamente providenciado, no que se refere a meus assuntos particulares”. Naquela noite, depois de escrever a carta, o político a entrega, em envelope fechado, a um amigo, Joaquim Silveira. Lacerda voltou incólume da viagem, mas, seis meses depois, uma portaria do Ministério da Justiça proibiu as atividades da Frente Ampla. Mais oito meses e, na esteira da decretação do Ato Institucional número 5, Lacerda foi levado preso a um regimento da Polícia Militar da Guanabara, onde fez greve de fome e não demorou a ser libertado. Em seguida, teve os direitos políticos cassados por dez anos.
Bife na veia
Lacerda morreu aos 63 anos, nas primeiras horas do sábado 21 de maio de 1977, sete meses antes de recuperar os direitos políticos cassados pelo regime. Por causa de uma gripe forte, associada a um quadro de desidratação, ao meio-dia da sexta-feira, fora fazer exames na Clínica São Vicente, na Gávea, onde decidiu-se por sua internação, para tomar soro. A filha Cristina estava em casa, com seu bebê de apenas um mês, quando Sérgio, o primogênito de Lacerda, ligou para dar notícias. “Papai vai ficar internado, para tomar um bife na veia”, avisou Sérgio, antes de viajar para a sua fazenda, em Paraíba do Sul (RJ). No final da tarde, Cristina falou por telefone com o próprio pai. No dia seguinte, ela completaria 28 anos. Como havia previsão de alta, combinaram que Lacerda jantaria na casa dela na próxima noite, para comemorar o aniversário. Sebastião, o outro filho de Lacerda, também acompanhou a internação do pai e foi para casa. Letícia, que era casada havia mais de 40 anos com Lacerda, ficou na clínica, como acompanhante.
Por volta da meia-noite, Lacerda começou a passar mal. Seus médicos chegaram em seguida, mas menos de duas horas depois ele estava morto, de infarto do miocárdio. No momento de comoção, a família não pensou em assassinato, mas os rumores de que haviam injetado uma substância letal no soro não demoraram a circular. A opinião dos irmãos se dividiu. Sérgio, que já é falecido, e Sebastião não acreditaram. Cristina duvida que tenha sido morte natural. “Ele era sempre ameaçado. Podem muito bem ter ouvido que ele estava internado e plantado alguém na casa de saúde”, diz Cristina. “Nós éramos gravados desde sempre. Quando era mais nova, eu e minhas amigas achávamos graça. Os grampos eram malfeitos, faziam clec, clec, dava para ouvir a conversa deles, no estilo ‘Oi Barbosa, tô largando agora’.” Outro detalhe a reforçar as suspeitas de Cristina é o fato de a região onde se localizava a clínica ser quase deserta. “Hoje está rodeada de construções, mas naquela época era um lugar ermo. Quando cheguei lá de madrugada, as portas estavam abertas, não havia segurança. Qualquer um poderia ter entrado.”
Gripe forte
Letícia, a mãe de Cristina, ficou arrasada com a morte do marido. Como tinha déficit de audição e tomava remédio para dormir, conviveu com a própria suspeita de que alguém tivesse entrado no quarto e ela não percebera. A jornalista Maria Cecília de Azevedo Sodré, que à época mantinha um relacionamento amoroso com Lacerda, acredita que o político foi vítima do mesmo esquema que atuou contra Jango e JK. “Ele tinha realmente uma gripe, mas estava em ótima fase, cheio de energia e de planos. Para mim, Lacerda foi morto”, diz Maria Cecília. Como as circunstâncias da morte não foram investigadas, a dúvida persiste 36 anos depois. Neto de Lacerda, o escritor Rodrigo Lacerda era criança quando o avô morreu, mas confidencia que pensou muito nele ao saber da exumação do corpo do poeta Pablo Neruda, no Chile. Neruda estava internado em uma clínica particular, com câncer na próstata, e morreu 12 dias após o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende. Existe a suspeita de que o poeta tenha recebido uma injeção letal, durante ação em que estaria envolvido o agente da CIA Michael Townley, o mesmo citado nas investigações sobre Jango.
O certo é que a morte dos três líderes políticos brasileiros seguirá envolta pelas brumas da dúvida enquanto não forem esclarecidas. “É um desafio à democracia brasileira. Precisamos reexaminar estes casos, até, quem sabe, para chegarmos à conclusão de que, sim, foram mortes naturais”, diz Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, aquele que investiga a Operação Condor há mais de três décadas. No domingo 22 de maio de 1977, as viúvas de Jango e JK, Maria Thereza e dona Sarah, estiveram entre as mais de mil pessoas que acompanharam o enterro de Lacerda. No mesmo dia, o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, elogiou a luta pelos direitos humanos empreendida no Brasil por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, em cerimônia em que ambos receberam o título de honoris causa em Direito na Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana. “Um mundo novo está pedindo uma nova política dos Estados Unidos”, defendeu Carter. O jogo começava a virar nas relações entre os Estados Unidos e o Brasil. Pero no mucho. Que o diga o ex-agente Edward Snowden, que revelou ao mundo o sistemático esquema de espionagem americano sobre o Brasil e a presidenta Dilma Rousseff.
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