Almino Affonso viveu de perto diversas fases da política brasileira. A que culminou com o golpe de 1964 parece ter sido, para ele, a mais intensa. Eleito deputado federal pelo Amazonas em 1958, e reeleito em 1962, foi líder da bancada do antigo PTB na Câmara, ministro do Trabalho de João Goulart – com apenas 32 anos – e um articulador incansável. Nos meses que antecederam o golpe militar de abril de 1964, esteve na tribuna um sem-número de ocasiões, defendendo a legalidade e o governo Goulart. Mesmo divergindo algumas vezes do presidente, mereceu sempre o respeito e a confiança de Jango – confiança, aliás, que ocasionou uma das revelações que Almino faz à Brasileiros.
Ele acaba de escrever um livro, ainda inédito, em que dá um testemunho pessoal sobre os fatos que levaram ao golpe militar. Vários deles jamais haviam sido contados. Outros foram esquecidos ou subestimados em sua importância.
Mas o que a conversa com Almino traz de mais surpreendente não está no livro. Ocorreu pouco depois de ele ter voltado do exílio, em 1976. Para resolver seu desligamento da instituição em que era professor, a FLACSO, uma vez que permaneceria definitivamente ao Brasil, ele foi a Buenos Aires para o que seria uma viagem de um ou dois dias. Ao chegar lá, recebeu um telefonema de um assessor do ex-presidente João Goulart, convidando-o insistentemente para um almoço. Precisava ouvir suas ponderações sobre uma decisão importante que Jango tomaria dias depois. Almino foi a seu encontro. Naquela mesma noite, no início da madrugada, o telefone toca. João Goulart havia morrido em sua fazenda, fulminado por um infarto. Infarto? Apenas uma das perguntas que o Brasil ainda fará por algum tempo antes de obter uma resposta definitiva.
Em março de 1976 houve o golpe na Argentina, mais um golpe na minha vida. Já tinha saído para o exílio em 1964, passado muita dificuldade antes de me estabelecer no Chile. Aí, em 1973 vem a deposição e morte do Allende, um golpe sanguinário, terrível. Lá vou eu novamente me exilar, agora do meu país de adoção. Mandei a família de volta ao Brasil e segui para a Argentina, onde fui trabalhar como professor e depois diretor na FLACSO, Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais. Foram pouco mais de dois anos até que a onda de golpes militares arrastasse também a Argentina. A violência foi entrando numa escalada brutal. Com o apoio dos serviços secretos dos Estados Unidos, formou-se a Operação Condor, que juntava as ditaduras do Cone Sul para eliminar oposicionistas. No dia 18 de maio, sequestram, no Hotel Liberty, bem no centro de Buenos Aires um ex-senador uruguaio, Zelman Michelini e o matam da maneira mais cruel. Logo em seguida, dá-se o mesmo com o ex-deputado Héctor Gutiérrez Ruiz, que tinha sido presidente da Câmara dos Deputados do Uruguai. Mais adiante, 2 de junho do mesmo ano, é assassinado o ex-presidente da Bolívia Juan José Torres. Foi nesse clima que Lygia, minha mulher, foi passar uns dias comigo. Fomos juntos a um show de Mercedes Sosa. Terminado o show, a cantora distribuiu flores à plateia, ela mesma sob ameaça dos grupos paramilitares de direita. Foi aí que eu decidi voltar ao Brasil. Já na saída, eu avisei a Lygia que voltaria, correria o risco. No dia seguinte, eu coloquei data para a volta: 31 de agosto. Não era fácil. Eu não tinha passagem nem documentos para comprá-la – não sei se você se lembra, mas os exilados eram tratados como expatriados, não tinham nem sequer direito aos documentos de cidadão brasileiro. Mas eu estava determinado a voltar.
EXCERTO DO NOVO LIVRO DE ALMINO AFFONSO
Perdida a oportunidade de uma frente ampla política e social, o governo parecia um barco à deriva. A direita estava cada vez mais agressiva. O deputado Padre Vidigal (PSD-MG) não se acanhara de conspurcar a beleza da mensagem de Jesus Cristo, e convocava à violência: “Armai-vos uns aos outros!”. O deputado Bilac Pinto, pondo à margem sua condição de jurista, passara a acusar o presidente João Goulart de coautoria na articulação de uma “guerra revolucionária” que, uma vez vitoriosa, abriria espaço para os comunistas ascenderem ao poder. Apesar do absurdo da acusação, seus discursos vinham se repetindo meses a fio, e ganharam audácia no princípio de 1964. Poderia haver tanta omissão das Forças Armadas, a ponto de deixarem o presidente da República entregue a uma aventura revolucionária, encoberta nos discursos das Reformas de Base? Ademais, sendo ele próprio um fazendeiro, desde a juventude – um dos maiores proprietários de terra do Rio Grande do Sul –, a que título se exporia a perdê-las num processo revolucionário? Não bastasse o despudor dessas leviandades, Bilac Pinto dava-se a desplante de “denúncia” o governo Goulart pela entrega de armas aos sindicatos rurais e da orla marítima.
Escudado nessa fantasia, chegara ao extremo de aconselhar a população civil a armar-se para resistir. Não obstante, interpelado sucessivas vezes na Câmara dos Deputados pelas lideranças do Governo, o deputado tergiversava, sem apresentar provas que sustentassem suas afirmações. Porém, a imprensa lhe dera absoluta cobertura. Vale lembrar as manchetes dos maiores jornais na edição de 16 de janeiro de 1964: “Estarrecedoras revelações do Presidente da UDN” (Diário de S. Paulo); “Bilac Pinto quer dar armas ao povo para defender a legalidade” (Jornal do Brasil); “Bilac Pinto denuncia organização do golpe” (O Estado de S. Paulo); “Bilac Pinto: o Governo arma os sindicatos para o golpe” (O Globo); “Democratas despertam: armar a população civil para obstar a subversão” (O Jornal); “Presidente da UDN faz grave denúncia à Nação” (Estado de Minas); “UDN denuncia a subversão do Governo” (Tribuna da Imprensa).
E tudo isso no mais absoluto vazio de provas, indícios ao menos. Era a campanha que estava em marcha: visando envolver o presidente João Goulart na articulação de um golpe de Estado, a UDN (pela palavra leviana de seu presidente) tentava escavar distâncias entre o Governo e a sociedade. Cabe dar ênfase: estávamos em janeiro de 1964! Na verdade, a UDN (cuja história se enraizava no renascimento democrático de 1945) a olhos vistos rompera os compromissos com a ordem constitucional. O PSD, aliado histórico de Jango, lavava as mãos. Por mero capricho, entrevendo o processo eleitoral? A rigor, a ruptura era profunda: pela reforma agrária, a que se opunha, preservando o latifúndio; pela política externa independente, que respaldava a autodeterminação de Cuba e o reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética. Nesse rebolo, o PTB, sem força para impor os rumos. E como se fora pouco, a Frente Parlamentar Nacionalista fracionando-se, refletindo as contradições das esquerdas…
Naquele impasse que se aprofundava, o presidente João Goulart chegara à conclusão de que era imperioso que o próprio povo, através da pressão social, levasse os parlamentares a abrir espaço para as Reformas de Base e, ao mesmo tempo, contivesse a onda conspiratória. Daí a convocação do Comício das Reformas, realizado no Rio de Janeiro, à altura da Central do Brasil, respaldado pelo I Exército. Antes que o povo afluísse ao longo das tarde, a guarda do palanque presidencial já estava montada. Desde cedo, os primeiros tanques, pelotões do Corpo de Fuzileiros Navais e da Polícia Militar. Dois carros de assalto, tendo à vista suas metralhadoras Thompson. Por que tão ostensiva presença militar? Pela vontade do presidente, o comício teria sido na Avenida Presidente Vargas, onde sempre se haviam feito as homenagens populares ao grande líder. Mas prevalecera a prudência. O chefe da Casa Militar, general Assis Brasil, com insistência ponderara que o Governador Carlos Lacerda poderia armar um atentado, sorrateiramente, pela mão de sicários em meio do povo. Àquela época, as divergências estavam cedendo lugar ao ódio. Como consequência do estado de sítio, acaso decretado, o Lacerda talvez tivesse sido deposto. Tudo, portanto, era de se esperar. A multidão (cerca de 200 mil pessoas) ocupara o espaço à frente do Ministério da Guerra. Relembrando aquela cena, a 13 de março de 1964, custa-me acreditar que, em poucos dias, tudo rolaria por terra, como um castelo de areia.
Uma das primeiras batalhas do jovem deputado Almino Affonso no Parlamento foi a extensão da legislação trabalhista ao trabalhador do campo. Por incrível que pareça, depois de quase duas décadas em vigor, as leis não beneficiavam o trabalhador rural.
Almino havia tomado posse em seu primeiro mandato eletivo com 29 anos. Tinha sido eleito por seu Estado natal, o Amazonas, mas havia montado sua vida em São Paulo, desde os tempos de estudante, quando havia se transferido da Faculdade de Direito do Amazonas para o Largo de São Francisco, onde se formou e foi o orador da turma. Foi nas Arcadas, como se costuma chamar a tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que iniciou sua atividade política, chegando a ser presidente da União Estadual dos Estudantes. Em 1953, recém-formado, foi convidado pelo então prefeito Jânio Quadros para ser membro da comissão organizadora das comemorações do Quarto Centenário de São Paulo. “Eu ainda morava em pensão e agora vinha um carro com motorista me buscar para as reuniões. Me sentia um peixe fora d’água”, diverte-se ao se lembrar da responsabilidade precoce.
O destaque na atividade política paulistana fez com que amigos do Amazonas o convencessem a disputar uma eleição que jamais imaginou ganhar. Não tinha base eleitoral formada, era filiado a um partido pequeno, o PST, e estava há anos longe de seu Estado. Quando as urnas se abriram, ele tinha uma cadeira no Palácio Tiradentes, sede da Câmara dos Deputados na antiga Capital Federal, o Rio de Janeiro. Já tinha também uma família, então formada por Lygia, a eterna namorada desde os tempos de Manaus, e o primogênito Rui. O próximo passo, após a surpresa da vitória, era conciliar as duas novas condições: pai e parlamentar – ambas a serem exercidas em uma nova cidade.
Instalados, Almino não demorou a se adaptar e chegar mais perto das grandes questões nacionais da época. Filiou-se a um partido maior, o PTB, herdeiro do trabalhismo de Getúlio Vargas. No partido, integrou o Grupo Compacto, que apoiava a reforma agrária e o controle estatal de setores estratégicos, como Petróleo, Energia e Indústria de Base.
A primeira luta de Almino na Câmara seria vitoriosa, mas só em março de 1963, um mandato e meio, uma nova capital e três presidentes da República depois.
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Eu disse: vou voltar para o Brasil de qualquer forma, mas vou voltar. Mil vezes tinha tentado obter salvo-conduto de volta, o governo brasileiro sempre me negou. Aí, em certo momento eu digo: vou, der no que der. Não pedi a ninguém que me protegesse, ali ninguém tinha muita força para proteger ninguém.
Como eu não tinha passaporte e não tinha conseguido salvo-conduto, fui ao cônsul-geral do Brasil pedir que me dessem um salvo-conduto específico para sair de Buenos Aires e chegar ao Brasil. “Doutor Almino, o senhor sabe que eu não tenho condições de fazer isso.” Eu já estava preparado para a negativa: “Mas veja, senhor cônsul, o senhor sabe que a cédula de identidade do Brasil tem validade de passaporte na Argentina, nós podemos viajar somente com a cédula de identidade.” Eu não tinha a cédula de identidade, porque tomavam tudo da gente, mas tinha a carteira da Ordem dos Advogados, que tem por lei equivalência à cédula de identidade. Portanto, eu só queria do senhor uma declaração formal de que o documento servia para eu comprar uma passagem. Ele disse: “Doutor Almino, também não posso fazer essa declaração, mas vou lhe fazer uma proposta: o senhor vai à Cruzeiro do Sul (que era uma companhia aérea da época) e apresenta o documento. Eles vão recusar, então o senhor diz: ‘Ligue para o cônsul-geral, ele vai confirmar que o documento vale’”. E assim eu fiz. Fui à companhia aérea numa hora em que eu já sabia que o cônsul estaria no gabinete dele. Peço a passagem, mostro a carteira da Ordem e o homem no balcão da Cruzeiro diz que não pode vender. Invoco então o cônsul, digo que ligue a ele, que autoridade seria maior àquela altura? Pois o sujeito na Cruzeiro do Sul liga, o cônsul atende e confirma: o documento vale. O rapaz olha, hesita um minuto e então começa a emitir o bilhete. Eu só não morri porque o coração é forte. A emoção ali foi imensa, eu ia ver a minha terra, eu ia ver a minha família, eu ia voltar. Voltar! Liguei para minha mulher e disse: “Lygia, dia 31 às 4 horas da tarde estarei aí, não diga a ninguém”. E me preparei para vir.
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A política brasileira, entre 1959 e 1964, era páreo para qualquer rally. A gestão pacificadora, popularíssima e de certa forma espetaculosa de Juscelino Kubitschek foi seguida de uma eleição raivosa, vencida por um conservador personalista, apoiado por Carlos Lacerda, e um vice-presidente, que era o herdeiro político de Getúlio Vargas (à época, a eleição do vice era direta, não vinculada à do presidente). O conflito já começava na posse. A estranheza perdurou nos meses que seguiram, poucos, menos de sete: enquanto Jânio foi presidente, as proibições do biquíni e da briga de galo se destacaram mais do que o terceiro-mundismo, o traje safári marcou mais do que a política econômica voltada à exportação. Renunciou em agosto de 1961, causando uma das grandes crises políticas brasileiras.
Seu sucessor, João Goulart, pegou um país complicado, com inflação alta, débitos na economia, passivos na política. Uma encrenca, que viria a ser potencializada ao extremo pelos bafejos da Guerra Fria. Para Jango, as ameaças vinham de dentro e de fora. Precisava identificar seus aliados. Almino Affonso estava lá, entre os primeiros. Tinha sido um opositor firme do conservadorismo de Jânio e, como líder do PTB, defendia a posse de Jango, após a renúncia, nos moldes do presidencialismo – curiosamente, contrariando suas convicções até hoje parlamentaristas, colocando a legalidade acima delas. Em um fim de tarde de janeiro de 1962, o presidente chamou Almino para uma reunião na Granja do Torto. Jango havia preferido a Granja ao Palácio da Alvorada, como sua residência oficial. Ali, depois de fazer uma avaliação cuidadosa do ministério que acabara de montar, convida o jovem deputado para ocupar o Ministério do Trabalho e da Previdência Social de seu governo. O primeiro impulso foi recusar: ele havia trabalhado pela indicação do deputado Bocayuva Cunha e, além disso, não se via à altura de um grupo que trazia nomes como Santiago Dantas, Celso Furtado, Hermes Lima e outras figuras notáveis e experientes. Jango fez então uma pergunta: “Que idade tu tens hoje, Almino?”. “Trinta e dois, presidente.” “Pois eu tinha 34 quando Getúlio me chamou para uma mesma conversa e disse: ‘Tu podes ser mais jovem que os outros, mas para estabelecer a ponte entre o meu governo e os trabalhadores, o homem que eu tenho hoje és tu’. É a mesma coisa que eu tenho para te dizer, Almino”. Foi assim que, três meses antes de completar 33 anos, saiu da Granja do Torto como ministro – o mais jovem da história republicana até então.
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Voltar ao Brasil foi mais um momento de emoção intensa. Eu não sabia como seria recebido, mas já antecipava no avião o reencontro com a família, os amigos, os detalhes, como a comida, o falar da língua. Há um detalhe que sempre gosto de lembrar: quando cheguei ao aeroporto de Congonhas, fui imediatamente levado a uma sala, em que fui submetido a um interrogatório longo, detalhado e repetitivo. Não houve qualquer tipo de brutalidade física. Essa aparente cordialidade eu atribuo a um amigo de juventude, o doutor Adib Jatene. Ele havia salvo a vida do comandante do 2o Exército. Quando soube que eu voltaria – e olhe que eu só havia contado à minha família –, o Adib ligou para o general e obteve dele a garantia de que nada aconteceria comigo. Mas é aí que se veem os grandes amigos: não contente com o que tinha escutado, ele foi ao aeroporto e se postou junto a uma divisória de vidro de onde se via uma fresta da sala onde eu estava sendo interrogado. Pois o Adib ali ficou, em vigília, durante todo o tempo até eu sair. Foram horas. Nunca me esqueci disso.
Passadas as primeiras tensões, eu fui ao encontro da família, revi velhos amigos – e comecei a busca por reconstruir a minha vida. No fim do ano, estava decidido: não precisaria voltar à Argentina. Poderia retomar a vida no Brasil, como advogado, embora ainda houvesse um veto à minha atividade política – mesmo já tendo passados os dez anos da cassação. Com passaporte emitido, trabalho encaminhado, decidi ir a Buenos Aires apenas para acertar meu afastamento da FLACSO, rever alguns amigos e selar mais um capítulo da minha vida. Mas a viagem acabou indo muito além.
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A situação política no Brasil tomava rumos críticos. Almino se lembra de um depoimento dado pelo ex-chanceler Afonso Arinos ao historiador e cientista político Moniz Bandeira. O diplomata descrevia um diálogo que havia tido na ONU com o então presidente da Argentina Arturo Frondizi. Em certo ponto da conversa, Frondizi vaticinou: “Preste atenção no sistema militarista que os Estados Unidos estão montando na América Latina. A primeira vítima serei eu, a segunda será o João Goulart”. Frondizi caiu no final de março de 1962. Seu alerta tomava ares de profecia.
A partir daí, os golpes foram se sucedendo: o Brasil, em 1964, Uruguai e Chile, em 1973, e Argentina novamente, em 1976.
No começo de 1964, já próximo ao golpe, João Goulart tentou compor uma grande aliança, uma frente ampla que envolvesse os mais diversos segmentos políticos do Brasil, para garantir a sobrevivência da democracia, que já então se mostrava claramente ameaçada. O objetivo era um pacto de governabilidade, que levasse o País até as eleições de 1965.
Para surpresa de Almino, que pouco antes havia se posicionado contra uma proposta de Jango de decretar estado de sítio, como forma de conter a crescente conspiração que levaria ao golpe, o presidente o chamou ao palácio e deu a ele uma missão estratégica. Jango queria articular uma grande aliança, suprapartidária, que trouxesse condições políticas ao País de atravessar aquele momento de crise e chegar sem rupturas às eleições presidenciais de 1965. Pediu a Almino que, com o ex-ministro Santiago Dantas, reunisse as principais lideranças políticas do País e propusesse esse acordo.
De início, Almino procurou Tancredo Neves, que era um getulista histórico e tinha sido primeiro-ministro, na efêmera experiência parlamentarista, e o ex-ministro João Agripino, da conservadora UDN, mas com ideias francamente nacionalistas. Por sua vez, Santiago Dantas também dá início às articulações e consegue uma surpreendente reunião com o político e banqueiro Magalhães Pinto e com o senador Afonso Arinos, ambos mineiros, conservadores e opositores de Jango. O encontro se deu no apartamento de Magalhães, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, e, para surpresa de Almino, a aceitação dos dois conservadores à proposta de Jango foi imediata.
Tudo caminhava para um acordo inédito na história do País, dada abrangência política que ali parecia ter início. O grupo elaborou um texto em que expunha suas razões e destacava a necessidade de união em torno da manutenção do regime democrático. Mas faltava uma liderança importante, sem a qual nenhum movimento dessa magnitude iria em frente: Leonel Brizola, então o deputado mais votado da história do Brasil e ex-governador do Rio Grande do Sul. À época, Brizola era tido como um dos três nomes favoritos para ganhar as eleições de 1965, ao lado do ex-presidente Juscelino Kubitschek e do ex-governador do Estado da Guanabara e deputado Carlos Lacerda.
Almino então telefona para Brizola e o convida para a reunião seguinte do grupo, que aconteceria um dia depois. Brizola aceita, chega à reunião com atraso e, para surpresa de todos, não lê o documento. Simplesmente recusa tomar parte na articulação. Sem Brizola e seu grupo, nenhum movimento como aquele seria possível. Naquela noite, Santiago Dantas havia preferido não comparecer à reunião, e combinara com Almino que este iria à sua casa, assim que o encontro terminasse, fosse a hora que fosse. Almino chegou pouco depois de o Sol nascer. Já à mesa do café da manhã, Santiago ouve o relato e conclui: “Não temos saída, Almino”. Dias depois, o golpe de Estado de 1964 derrubou o presidente João Goulart e mergulhou o País em uma ditadura que se estendeu por duas décadas.
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No dia 5 de dezembro, ao chegar a Buenos Aires, recebo um telefonema do Cláudio Braga, assessor político do Jango. “Almino, eu tenho algo a transmitir a você por parte do presidente, ele me pede para nós almoçarmos, é um convite que ele faz.” Me lembro de que era um belo restaurante. Sentamos à mesa e ele foi direto ao assunto: “O presidente quer saber o que você acha da hipótese de ele voltar ao Brasil”. O plano do Jango era ir à França, consultar um cardiologista em que ele confiava muito, depois ir a Roma visitar o Papa, e de lá direto a Washington encontrar o senador Edward Kennedy. De lá, viria para o Rio de Janeiro sem consultar as autoridades, mas tendo deixado pública a sua viagem. Eu disse ao Cláudio que, no lugar do presidente, eu faria sim, no lugar dele eu arriscaria. Terminado o almoço, o Cláudio me disse: “Almino, vou me encontrar com ele em Mercedes, portanto viajo hoje ainda”. Então nós nos despedimos. Voltei às minhas tarefas, que não eram poucas. No meio da madrugada seguinte, toca o telefone. Era a mulher do Cláudio: “Ministro, o presidente morreu”. “Como assim?” Ela disse: “Pois é, não sei detalhes, mas Jango está morto”. Eu fiquei arrasado. Ela me disse que estava indo pela manhã a Uruguaiana, que era para onde estava sendo levado o corpo, para, dali, entrar no Rio Grande do Sul. Decidi ir também, e foi a custo que conseguimos entrar no Brasil, os militares de início proibiram. Por fim, acabaram permitindo, desde que o cortejo não parasse em lugar algum entre Uruguaiana e São Borja, onde seria o enterro. Chegando lá, encontrei Maria Thereza, mulher de Jango, e lhe perguntei o que tinha acontecido. Saí de São Borja acreditando na versão do infarto. Foi só recentemente, com as discussões sobre a exumação do corpo que parei para juntar as peças: se o Jango pediu para me consultar sobre a volta ao Brasil, certamente teria conversado com outras pessoas. Como ele era vigiado constantemente pelos espiões da ditadura, evidentemente esse seu desejo vazou. Agora, você imagina, uma ditadura que havia tomado parte na tal Operação Condor, que não hesitava em eliminar inimigos, você acha que eles aceitariam uma volta do Jango, com todo o risco político que isso iria trazer? A mim, parece muita coincidência – e some-se a isso as mortes de Juscelino e Carlos Lacerda, tudo em menos de nove meses. Ainda há pouco se revelou um telegrama do general Sylvio Frota, de setembro de 1976, em que ele menciona uma possível volta do Jango ao Brasil.
Para resumir, meu caro, é um fato importante que deve ser apurado com rigor, seja para comprovar, seja para negar. Comprovado, deve servir como mais um documento selado da história contra a brutalidade do regime militar.
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Os fatos que Almino Affonso revela mostram que há uma lacuna ainda grande na história conhecida de um momento tão crítico da vida nacional. Preenchê-la será terapêutico. Como, de resto, costuma ser a justiça.
JANGO EM TRÊS LONGAS-METRAGENS
Se o número de biografias escritas sobre João Goulart deixa a desejar, o mesmo não se pode dizer quanto aos filmes. O ex-presidente foi tema de três longas, dois deles recentes. O primeiro, Jango, de Silvio Tendler, foi lançado quando a ditadura agonizava, no segundo semestre de 1984, no momento em que a pressão pelas Diretas para presidente estava nas ruas, em monumentais comícios. Era nitroglicerina pura que a censura não conseguiu abortar. João Goulart, o presidente eleito democraticamente em 1960 e derrubado em um golpe 20 anos antes do filme, ressurgia como um fantasma e um pesadelo para quem ainda queria permanecer no poder por meio da farda e das condecorações. Jango surgia como um filme passional, apaixonado e apaixonante. Era tudo que queríamos ver e ouvir naquele momento. E se tornou um fato fundamental para a abertura política.
Em sessões sempre lotadas, a produção de Tendler lavou a alma de quem queria liberdade política e democracia. Tanto que se tornou praxe, após as sessões, o filme ser aplaudido, muitas vezes entre lágrimas e arrepios. Jango aparece na tela grandioso, idealista, sonhador, democrata, como de fato parecia ser. O impacto das imagens não deixa dúvidas de que os militares tinham interrompido um caminho que conduziria o País a um novo patamar de desenvolvimento e democracia. Era a verdade que se impunha, finalmente. Ao contrário do que pregava a propaganda golpista, que justificou sua queda para impedir um movimento comunista que jamais se conseguiu provar o menor indício, a não ser especulação de alguns partidários arrependidos e pouco confiáveis.
O que lateja não pode ser esquecido. É isso que mostra Dossiê Jango, o documentário de Paulo Henrique Fontenelle, diretor premiado já em sua estreia, com Loki, cinebiografia do ex-Mutante Arnaldo Baptista. A questão central levantada no filme é a suspeita de que Jango não tenha morrido de infarto, a versão oficial, mas tenha sido envenenado por arapongas do regime militar. Um só entrevistado nega – e com veemência – essa hipótese: o historiador Moniz Bandeira, para quem Jango teria morrido mesmo do coração, sendo todo o restante mera especulação. Na direção contrária, há o depoimento do ex-araponga uruguaio Mário Barreiro Neira, preso em Porto Alegre desde 2003, por crimes comuns. Quem o vê falando não sabe bem se está diante de um arquivo vivo ou de um mitômano – como, aliás, o vê Moniz Bandeira.
O filme mostra ainda dezenas de depoimentos, alguns gravados especialmente, outros garimpados em arquivos. Revezam-se na tela figuras como Ferreira Gullar, Almino Affonso, Luiz Carlos Barreto, Carlos Lyra, a viúva de Jango, Maria Thereza e, entre os que já se foram, Miguel Arraes e Leonel Brizola. Dossiê Jango segue a trilha dos bons documentários realizados nas últimas duas décadas no Brasil. Com equilíbrio e competência, consegue se esquivar dos berros e choros que se poderiam esperar de um filme que aborda diretamente ao menos dois atentados: o suposto envenenamento de Jango e o estrangulamento da democracia brasileira. Fontenelle aborda ambos com riqueza de ângulos e imagens.
Além da violência institucionalizada em nome da suposta liberdade e do combate ao comunismo, o documentário O Dia que Durou 21 Anos, de Flávio e Camilo Tavares, mostra, por meio de documentos oficiais norte-americanos, que o golpe de 1964 foi , preparado, assessorado militarmente e financeiramente pelo governo dos Estados Unidos. Entre as pérolas está a gravação de uma audiência concedida pelo ex-presidente John Kennedy a Lincoln Gordon, então embaixador do EUA no Brasil, na Casa Branca. Ele sugere a intervenção americana, e o presidente aceita. Sugere ainda a nomeação do coronel Vernon Walters para a função de adido militar na embaixada dos Estados Unidos. A justificativa é que ele havia servido na Itália durante a Segunda Guerra e lá conheceu vários generais brasileiros, entre eles, Humberto de Alencar Castelo Branco. Kennedy consente.
O projeto, segundo Flávio, era produzir um documentário sobre a ditadura militar a partir do que ele chama de “golpe derrotado” – o movimento de resistência liderado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, em 1961, para garantir a posse do vice-presidente João Goulart. Mas, quando o filme estava quase pronto, ele e o filho entrevistaram o pesquisador Peter Kornbluh, diretor do National Security Archives, da Universidade George Washington. Foi ele que os alertou sobre a existência desses documentos. Flávio Tavares foi torturado, preso e exilado durante o regime militar.
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