O outro lado da moeda política

o outro lado da moeda politica

Era uma vez um tempo em que fazer marketing político não tinha relação alguma com dinheiro, mas sim com ideologia e idealismo. Eu vivi essa época e foram os mais belos anos de minha vida. Foi entre 1984 e 1992. Larguei minha carreira de jornalista para fazer o que eu acreditava. Depois de 20 anos de ditadura, eu já tinha passado pelas redações de Veja, Jornal da República, TV Globo, Folha de S. Paulo, Placar, TV Bandeirantes e TV Record. Não concordava com a injusta distribuição de renda no Brasil e queria mudanças. Convidado por Perseu Abramo, na condição de jornalista simpático às causas petistas, fui dar uma “olhada” no roteiro que o PT fez do seu primeiro programa de TV em rede nacional. Pronto, pirei! Estava ali a oportunidade de mostrar a nossa versão de sociedade, mostrar o outro lado da moeda. Depois dos 20 anos de censura, fazer um programa em rede nacional de TV, numa época em que não existia TV a cabo nem internet, era uma oportunidade de ouro!

Naquela segunda-feira de 1984, às 8h30 da noite, logo depois do Jornal Nacional, todas as emissoras do Brasil transmitiriam uma hora de programa, em que poderíamos falar livremente, sem censura, das mudanças que propúnhamos para o Brasil. A última coisa que eu pensaria naquela hora era quanto eu ia ganhar com isso. Nem mesmo o que iria acontecer depois disso com minha carreira de jornalista. Eu tinha 34 anos, com a cabeça repleta de idealismo. Comecei a trilhar, naquele momento, um caminho de quase dez anos de muito trabalho e dedicação, engajamento e emoções que eu não trocaria por nada.

Li a proposta inicial do roteiro e não gostei. Achei muito duro. Tínhamos de adaptar a política à TV e não o contrário. Com alguns jornalistas de TV, como Laurindo Leal Filho, partimos para tentar fazer um programa de TV agradável, para todo mundo assistir.

Como muita gente dizia na época que “o Lula estava morando numa mansão no Morumbi, depois que ele deixou o sindicato”, achei que a melhor maneira de abrir aquele programa seria o ex-repórter da TV Globo, Chico Malfitani – ou seja, eu mesmo –, mostrar a verdadeira casa do Lula em São Bernardo. Filmamos Lula apitando um jogo de futebol de garotos, em frente à casa que ele morava. Depois, tomei café da manhã com Lula, Marisa e os filhos do casal. Exatamente como fazia com entrevistados diversos, quando era repórter do Bom Dia São Paulo. A partir daí, o programa se estendeu por reportagens mostrando o que era o PT, como funcionava, o que propunha. Fizemos revelações que o brasileiro não estava acostumado a ver e ouvir na TV. Criamos intervalos comerciais, com depoimentos de artistas, como Paulo Betti e Antônio Fagundes, jogadores de futebol, como Sócrates, Reinaldo e Wladimir, apoiando o PT. Ninguém recebeu um tostão. Tudo espontâneo e por ideologia.

O programa foi um sucesso. Luiz Fernando Mercadante, na época diretor de jornalismo da TV Globo, escreveu no Jornal da Tarde: “Segunda-feira, 2 de julho. Em 60 minutos, o PT conseguiu prender na TV uma audiência de Copa do Mundo com 73 pontos de Ibope. Esse número, garanto, é mais que suficiente para construir a reputação de um autor de novela das 8, para fazer o Boni rir, feliz”. Fizemos esse e muitos outros programas de TV com paixão pelas ideias em que acreditávamos. Dinheiro envolvido nisso? Nem pensar!

Foram tempos de surpreendentes “novelas” petistas nos primeiros dias de horário eleitoral do Suplicy para prefeito em 1985, contra Fernando Henrique e Jânio Quadros. Novela batizada de “sem carranca, nem chapa branca” ou “nem forças ocultas nem tão cultas”, gravada nas madrugadas, depois de encerradas as peças de teatro com Lélia Abramo, Mira Haar, Cristina Mutarelli, Odilon Wagner e outros artistas voluntários, além é claro dos “amadores” Suplicy, Marta, Erundina e Lula. Tempos de “experimente Suplicy, diferente de tudo que está aí”.

Eram experiências, ideias que assustavam alguns dirigentes petistas da época. Como no melhor estilo do belo filme chileno No. Aliás, vendo esse filme, me senti como García Bernal, interpretando o publicitário chileno. Vivi na pele as incompreensões de uma parte da esquerda, com o nosso jeito de fazer política na TV. “Colocar o Lula em uma novela, tomar café da manhã com Marisa, fazer Suplicy conversar com um boneco (Zé do Muro), tudo isso despolitiza”, diziam. E como era bom contra-argumentar com liberdade e veemência, sem ter medo de perder o “cliente”. Não havia dinheiro envolvido.

Ainda no primeiro semestre de 1985, antes da campanha para prefeito começar, o PT exibiria um programa de uma hora em rede estadual. Tive a ideia de fazer um encontro inusitado na casa do Eduardo. Reuni Marta, Lula, Marisa, Paulo Freire, Antônio Fagundes, Lucélia Santos, Supla, Juarez Soares, Carlito Maia e eu para um grande bate-papo, sem roteiro ou direção.

Sem saber, fizemos um primeiro e inédito Big Brother na TV com personagens anos-luz à frente dos atuais. Foram oito horas de bate-papo entre todos, em que se conversou sobre tudo. Falamos de relações humanas, política, vida pessoal, futebol… Marisa revelou que Lula ajudava a lavar louça, Lula contou que, quando comprou sua primeira casa, a de São Bernardo que mostrei no primeiro programa, ela tinha sido invadida e ele teve de chamar um parente da Marisa, policial militar, para ajudá-lo a expulsar o invasor. “Como alguém que tem uma única casa pode concordar que outro invada a sua propriedade?”, perguntou ele.

Editamos uma hora de uma conversa aberta, franca, em que cada um mostrou o que pensava sobre a vida e a política. O programa agradou em cheio ao público. E todos trabalharam sem qualquer remuneração. Quanto custaria hoje a produção desse programa?

Décio Pignatari, em sua crítica semanal de TV na Folha de S. Paulo, escreveu: “Esse programa político do PT, pela sua qualidade inovadora, independente da nossa crença em seu conteúdo, pode representar para a televisualidade política, o que Beto Rockfeller representou para a televisualidade novelesca”. Você acha que, ao ler isso, dinheiro tinha alguma importância para mim naquela hora?

Fiz mais dois programas em rede nacional, em parceria com o então jovem – e já talentosíssimo – Fernando Meirelles, que não recebeu nada por isso. No primeiro, dividi a condução do programa com a então estagiária de produção Sandra Annenberg. Ela tinha 17 anos e nem imaginava que aquele seria o seu lançamento na TV.

Como posso esquecer, quando a três dias do início do horário eleitoral de Luiza Erundina para Prefeitura em 1988, preocupado em como abrir o nosso primeiro programa, tive uma ideia que até hoje não acredito que consegui realizar.

A novela das 8 da Globo que estava no ar na época era Vale Tudo. Antônio Fagundes, ator principal da novela, estava voltando das gravações no Rio para o aeroporto de Congonhas. Peguei meu Maverick verde-água e toquei para o aeroporto. Fiquei de olho no desembarque da ponte aérea. Depois de uma ou duas horas de espera, eis que aparece finalmente o Antônio Fagundes. Na maior cara de pau, fiz a ele uma proposta “indecorosa”: “Fagundes, você topa sair daqui, ir comigo agora para o estúdio e gravar dizendo que ‘se, na novela pode valer tudo, na política não! Tem que valer a ética, a seriedade, a vontade de trabalhar para melhorar a vida do povo. E por isso apoio a Luiza Erundina para prefeita!’”.

O incrível é que deu certo… Ele topou. Fagundes, um dos melhores atores que o Brasil já viu, o ator principal de Vale Tudo, dois dias depois, aparecia nas TVs de milhões de lares paulistanos falando aquele texto, momentos antes da novela. Sem receber um tostão por isso!  

Quando, na véspera da eleição, recebi a informação de que Luiza Erundina havia ultrapassado o Maluf nas pesquisas e a vitória já era certa, peguei a minha vespinha, saí dirigindo pela Marginal Pinheiros chorando de emoção. Eu havia ajudado a eleger uma mulher nordestina, baixinha, com fama de radical, do PT, para ser prefeita da maior cidade do Brasil! Sua eleição, junto com o nascimento dos meus filhos, foi a maior emoção da minha vida. Por acaso alguém pensa em dinheiro quando o filho nasce?

De lá para cá, muita coisa mudou no Brasil e no marketing político. Milhões de brasileiros mudaram de vida para melhor, o País cresceu, se desenvolveu e é respeitado lá fora como nunca foi. Mas as campanhas eleitorais cresceram em valores, muito mais do que deviam. Como todos sabemos, elas são uma das principais fontes que irrigam a corrupção no Brasil. Afinal, são poucos os empresários que, ao doarem dinheiro para um partido ou candidato, não o fazem pensando em receber com polpudos lucros, o dinheiro “investido”, depois que o candidato se torna governo. Por isso, como um profissional do marketing político e, sobretudo como brasileiro, sou plenamente favorável a uma profunda reforma política. Reforma que certamente instituirá o financiamento exclusivo e público de campanha, passo decisivo para diminuir muito a corrupção no Brasil.

Assim, políticos sérios e partidos ideológicos deixarão de ser reféns do poder econômico e poderemos voltar a um tempo em que a ideologia, as ideias e os valores de vida eram mais importantes do que os valores monetários. Como publicitário, posso até ganhar dinheiro com o meu trabalho no marketing político. Mas não precisarei vender a minha alma para o poder econômico ou para as ideias que não acredito.

O financiamento público e exclusivo vai dificultar muito o toma lá dá cá e dará condições para os tribunais eleitorais fiscalizarem os abusivos gastos das campanhas, já que os recursos envolvidos serão previamente definidos por lei.

Quem é, de verdade, contra a corrupção, só pode ser a favor da reforma política e do financiamento público de campanha. E nada melhor que um plebiscito para o povo conhecer, discutir e decidir, esse que é um dos mais graves problemas do nosso sistema político. Com 30 anos de vivência em campanhas, posso afirmar que chegou a hora de sabermos quem é, de verdade, a favor da ética e da seriedade na política no Brasil!


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