Fernanda Torres e a dança da morte

Recebi e divido com vocês “A dança da morte”, um belo e comovente texto de Fernanda Torres sobre seu pai, Fernando Torres, que me foi enviado pela amiga jornalista Marilda Varejão, diretamente de Petrópolis, onde ela curte sua mais do que merecida aposentadoria:

A peça Seria Cômico Se Não Fosse Sério, de Friedrich Dürrenmatt, foi o
melhor espetáculo teatral que meus pais produziram em anos e anos de
parceria.

Baseada na Dança da Morte, do dramaturgo sueco August
Strindberg, ela se passa no início do século passado e conta a
história de um general aposentado, Edgar, e sua esposa, Alice, que
vivem às turras, isolados em um farol.

Um dia, o casal recebe a visita de um primo mafioso, que se esconde com eles no alto da torre. Depois de desassossegar a vida dos dois por doze vertiginosos rounds, o primo cafajeste se manda, devolvendo o par à sua mais derradeira solidão.

Jamais vou esquecer meu pai com barbas de Matusalém, vestido de
general da I Guerra, dançando furiosamente a Dança dos Boiardos. Era
sensacional. Lá pelo fim do espetáculo, Edgar se levantava louco,
altivo, e dizia:

– Agora vou dançar a Dança dos Boiardos!

E começava uma coreografia ensandecida, meio russa, meio gaúcha,
pulando em torno de uma espada no chão. Querendo exibir vigor ao primo
escroque da esposa, Edgar dança até o limite de suas forças e acaba
sofrendo um AVC. A peça termina com Edgar numa cadeira, seqüelado pelo derrame, e Alice arrumando a desordem da casa por causa da passagem do primo.

Era de uma beleza terrível, cortante, teatro com T maiúsculo. Quem viu
sabe. Como com teatro não se brinca, havia ali o prenúncio de algo que
viria a acontecer com meus pais anos depois, só que de maneira muito
mais doce, amorosa e redentora.

Minha mãe cuidaria dele, e ele dela; mais ela dele, por problemas de saúde, no terço final de seus 57 anos de casados. Uma amiga gostava de dizer que meu pai ainda estava vivo porque minha mãe e ele queriam assim.

Em 1986 meu pai sofreu um primeiro derrame, não detectado, durante a
representação da tragédia grega Fedra. Ele esqueceu o texto em cena e,
como a neurologia ainda engatinhava, levamos anos para entender que
não era um problema psíquico, mas físico, o início de sua dança da
morte, que levou vinte anos para acontecer.

Meu pai é um mistério tão grande para mim que fica difícil falar dele
numa crônica. Mas, como estou chegando à conclusão de que todo pai é
um mistério para os filhos, ao contrário das mães, que são desabridas,
arrisco aqui um modesto perfil.

Dono de um humor cortante, que seria cômico se não fosse sério, doce e
sádico, careta e maluco, velho e criança, meu pai foi produtor,
diretor e ator, um homem dedicado a todas as facetas do teatro.

Teve coragem de largar a medicina, enfrentando o pai médico e político dos
tempos da política do café-com-leite, para fazer parte dessa profissão
etérea. Dizem que o estalo se deu no trote da faculdade, quando em
plena Cinelândia ele gritou: ‘Fiat Lux!’.

E as luzes da praça se acenderam numa sincronicidade cósmica. Foi ali, logo de cara, que perdemos um médico e ganhamos um diretor. Devo a ele toda a minha curiosidade científica, devo a ele dizer o que penso, devo a ele o
cinema, a infância, Veneza, Machu Picchu, Buenos Aires e as montanhas
russas.

Devo ao meu pai tudo o que sou que não é ser atriz, e certamente devo ao meu pai a promessa de alguma serenidade diante da velhice e da morte.

Como ele adoeceu há muito tempo, as lembranças do homem de teatro, do
pai jovem e doidão, do barbudo enraivecido pela censura de Calabar se
misturam fortemente com as do Fernando de saúde frágil com quem
convivi nos últimos tempos.

É muito difícil para um filho lidar com a doença de seu pai. Por isso, gostaria de agradecer às muitas pessoas que nos ajudaram nesse período, em especial à Roberta, sua fisioterapeuta, aos enfermeiros Jorge e Cristiano e, acima de todos, à doutora Lúcia Braga, do Hospital Sarah Kubitscheck, que deu ao meu pai cinco, seis, dez anos a mais de vida, libertando-o dos especialistas em doenças, cortando catorze medicamentos e colocando no lugar o teatro, os barcos, o pingue-pongue e a vida; e à doutora Claudia
Burlá, geriatra, especialização cuja profundidade só fui entender na
noite em que meu pai morreu, em casa, conosco em torno dele, e com
ela.

Sem tubos, sem CTIs, sem prolongadores artificiais de respiração
ou batimentos cardíacos. Foi ela que mandou chamar a mim e ao meu
irmão, foi ela quem nos ajudou. A morte do meu pai foi uma experiência
tão caseira, humana, pacífica e acolhedora, apesar do sofrimento e da
dor, que me fez por alguns segundos achar que esse absurdo que é a
morte, afinal de contas, pode fazer parte da vida.

Um salva de palmas para ele. Foi um guerreiro discreto, forte e
corajoso. Espero conseguir ser assim quando chegar a hora de eu dançar
a minha Dança dos Boiardos.


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