Seis dias após conquistar o Troféu Jabuti – de melhor Reportagem, e autor do Livro do Ano, na categoria Não Ficção, com As Duas Guerras de Vlado Herzog – Da Perseguição Nazista na Europa à Morte Sob Tortura no Brasil –, Audálio Dantas também foi eleito Intelectual do Ano, láurea conferida com o Troféu Juca Pato. A entrega do prêmio foi realizada nesta segunda-feira, 18.11, no Auditório Simon Bolívar, do Memorial da América Latina. Em seu discurso de agradecimento, o veterano jornalista alagoano, nascido em Tanque d’Arca, mencionou comentário bem-humorado de um amigo que, dias após a entrega dos dois Jabutis e ciente da conquista do Juca Pato, o chamou de “tartaruga emplumada”.
Promovido pela União Brasileira dos Escritores (UBE), representada na cerimônia por seu atual presidente Joaquim Maria Botelho, o prêmio Intelectual do Ano foi instituído em 1962. Passou a ser entregue no ano seguinte, com a criação do Troféu Juca Pato, que reproduz a imagem do célebre personagem criado pelo cartunista e jornalista Belmonte. Careca “de tanto tomar na cabeça”, famoso, pela indignação, inconformismo e renitência, defendendo lema de um realismo dos mais pessimistas: “Podia ser pior!”, Juca Pato foi muito popular no Brasil, na primeira metade do século 20. A galeria de notáveis que foram laureados com o troféu inspirado por ele reúne um verdadeiro quem-é-quem de importantes personalidades do País. Entre elas, Alceu Amoroso Lima, Caio Prado Junior, Érico Veríssimo, Jorge Amado, Juscelino Kubitscheck, Sobral Pinto, Sergio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Henrique Cardoso, Frei Beto, Antônio Callado, José Mindlin, Lygia Fagundes Telles, Antônio Candido e Rachel de Queiróz.
Como manda a tradição, o Troféu Juca Pato foi entregue pelo homenageado antecessor, no caso um representante, o escritor Ricardo Gouveia, filho da escritora Tatiana Belinky, morta em 2012. Mas, muito mais do que celebrar o ingresso de Audálio nesse seleto grupo, a cerimônia foi antecedida por um grande debate acerca da recente polêmica suscitada por grandes artistas, como Roberto Carlos, Chico Buarque e Caetano Veloso, com a possibilidade de se dar fim à censura prévia de biografias. O encontro reuniu o deputado federal Newton Lima (PT-SP), autor do Projeto de Lei n° 393/2011, que pretende derrubar os artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro – justamente aqueles que legitimam tal censura prévia –, os biógrafos Fernando Morais e Paulo César de Araújo, além do jornalista Ricardo Kotscho, repórter-especial da revista Brasileiros. Mesmo não participando do debate, Audálio Dantas iniciou seu discurso de agradecimento reverberando o consenso dos participantes: “Gostaria de saudar os companheiros que aqui vieram para discutir a questão das biografias. Como foi muito bem dito por eles, é uma tentativa que se faz, por interesses menores, pecuniários, de proibir a liberdade de expressão. Ótimo, não ficarmos apenas no cerimonial de entrega desse prêmio, mas também termos a oportunidade de discutir uma questão fundamental para qualquer país democrático.”
Leia, à seguir, os depoimentos dos participantes do debate e o discurso proferido por Audálio Dantas na entrega do Trofeú Jabuti:
Deputado Federal Newton Lima (PT-SP), autor do Projeto de Lei n° 393/2011, que prevê o fim da necessidade de autorização prévia para a produção de biografias
“Roberto Carlos disse, no Fantástico, que ninguém conhece a vida dele melhor do que ele. Evidentemente, na interpretação que ele dá para a própria vida. Mas, nós, certamente, ficamos com a biografia feita pelo Paulo César de Araújo, um historiador. Partimos, agora, para a fase final desse processo e preciso, sem qualquer ironia, agradecer, de maneira sincera, a repercussão que o tema passou a ter depois que nossos ilustres ídolos, por razões as mais diferentes e pouco críveis, acabaram, por intermédio da ONG Procure Saber, colocando o assunto em pauta nacional. Meu projeto seria, definitivamente, arquivado, no final de 2014, pois estava na fila com o número 1.215. Esse debate foi importante, para nós recolocarmos o tema da liberdade expressão e direito à informação como um bem maior. Pessoas públicas têm menor privacidade do que as pessoas comuns, e nossa Constituição garante, para quem for vítima de fraudes de má fé, de eventuais biógrafos, a oportunidade da reparação de sua imagem e de sua honra. Só conseguimos um consenso dentro da Câmara dos Deputados, de todos os partidos políticos e de todos os líderes, a partir desse debate que foi trazido, em especial, pela coordenação da Paula Lavigne. Conseguimos apoio absolutamente consensual à urgência da matéria e trouxemos a possibilidade concreta de o projeto ser votado nas próximas semanas, tão logo a pauta que está em debate, que também é muito importante, o Marco Civil da Internet, seja votada. Há um compromisso, assinado, e o projeto das biografias será votado. Estamos às vésperas de poder comemorar com os biógrafos o fim desse resquício autoritário. Certamente nos prepararemos para conhecer a obra sobre Roberto Carlos que Paulo César vai reescrever, com um novo capítulo que incluirá mais esse traço da biografia de nosso ídolo”
Ricardo Kotscho, jornalista, repórter-especial da Brasileiros e autor de, entre outros, Serra Pelada: uma ferida aberta na selva e Explode um novo Brasil — Diário da campanha das Diretas
“O debate sobre biografias é assunto vencido. Não pode existir no Brasil a censura prévia. Ponto. Está na Constituição e não se discute mais. Portanto, não existe biografia autorizada. Ainda mais, com participação dos lucros. Tanto na Câmara quanto no STF a turma da Paula Lavigne vai perder de goleada. Até parece que tem fila de biógrafos na casa do Djavan, e dos outros, esperando para contar a história da vida deles. Acho que Paulo César não está nessa fila… Graças à empresária Paula Lavigne, Caetano, Chico e Gil, meus ídolos, entraram numa roubada, queimaram o filme. O engraçado dessa história toda é que o ‘sofá’ (o antigo projeto que prevê a autorização prévia) já estava na sala, esquecido num canto. Havia a discussão de uma lei para tirar o ‘sofá’ da sala. Aí, dona Paula, resolveu colocar o ‘sofá’ bem no meio da sala. E agora ele vai para o lixo. Viva a liberdade de expressão! Antes de encerrar, queria prestar minha homenagem ao Audálio Dantas e acho que está faltando uma biografia sobre essa figura. Eu não aceito a tarefa, pois já tenho certa idade e não me resta muito tempo para escrever uma história tão longa. Por isso, proponho que o próprio Audálio faça uma autobiografia não autorizada. Uma novidade literária, já que ele deve ter histórias para contar que nenhum de nós sabe. Parabéns, meu velho e grande amigo Audálio Dantas!”
Paulo César de Araújo, jornalista e historiador, autor de Eu Não Sou Cachorro Não e da biografia Roberto Carlos em Detalhes, atualmente, proibida, com base nos artigos 20 e 21 do Código Civil Brasileiro
“Parece que estamos vivendo um momento histórico. A história passando e a gente caminhando junto com ela. É importante dizer que esse caso da proibição de meu livro sobre Roberto Carlos, pela violência que foi o processo, ficou mais emblemático, mas, definitivamente, não é apenas o meu caso ou o caso do Roberto Carlos que estão em questão. É o caso da sociedade brasileira. O que está em jogo é a liberdade de pesquisar, escrever e de informar. Não somos apenas nós biógrafos e escritores que perdemos, mas toda sociedade. É informação que não vai chegar. E não apenas dos livros que já estão proibidos, mas também dos que nem vão ‘começar’. Ninguém pensa mais nem em iniciar uma pesquisa, exatamente, por saber que haverá barreiras que poderão dar somente prejuízo, mas até mesmo prisão. O processo que Roberto Carlos moveu contra mim não apenas pediu a proibição do livro, mas também uma indenização, de R$ 500 mil por dia, e minha prisão, por um tempo superior a dois anos. Ou seja: pesquisar, publicar e escrever livros, baseado nos artigos 20 e 21 do Código Civil, pode dar cadeia. O argumento de Roberto é simples, e outros o usaram, pois não foi apenas o meu livro que foi proibido: o livro sobre Noel Rosa, do João Máximo e do Carlos Didier, também foi proibido; um livro que Alaor Barbosa escreveu sobre Guimarães Rosa também foi; outro sobre Lampião… Fernando Moraes, que aqui está, também foi alvo de processo, por causa de um livro sobre a agência W/Brasil; o livro do Garrincha, de Ruy Castro. Enfim, são várias obras proibidas, e Roberto explicou que pediu minha prisão baseado no seguinte argumento: ‘Minha história é um patrimônio meu, particular. Esse autor, ao escrever um livro sem autorização, se apropriou desse meu patrimônio e o usou em benefício próprio’. Ora, quem se apropria de um patrimônio alheio comete o quê? Roubo. É ladrão. E ladrão tem de ir para onde? Para a cadeia. Essa é a lógica perversa. Uma ideia patrimonialista. O que eles querem é tratar a história, uma construção coletiva, que pertence a todos nós, que pertence à sociedade brasileira, com essa visão patrimonialista. Roberto Carlos é uma figura conservadora e não apenas me processou, como processou Ruy Castro, por uma reportagem, processou o jornal Notícias Populares, processou até mesmo seu ex-mordomo, que era amigo dele, e escreveu um livro. Recentemente, Roberto avançou até mesmo sobre uma pesquisadora (Maíra Zimermann) que fez um livro chamado Jovem Guarda – Moda, Música e Juventude. O livro não tem nem sequer o nome Roberto Carlos no título, ou no subtítulo, e o argumento foi o mesmo: ‘A minha história, bicho, é um patrimônio meu!’. Mas a história da Jovem Guarda é uma história que foi construída por todos nós, pela sociedade brasileira. Roberto é parte dessa história, mas a história não é dele. Nossa decepção foi ver figuras como Caetano, Gil e Erasmo, também abraçarem essa ideia. Para nós, foi uma grande surpresa. Mas, para o bem e para o mal, o gesto revelou o absurdo da questão. Sinto isso, andando nas ruas, quando estou com meus alunos… O debate foi exposto, Paula Lavigne, para nossa sorte, falou bastante, as pessoas perceberam qual era a discussão e entenderam que não tem cabimento. O processo não está ganho ainda, vamos esperar a confirmação, mas, sem dúvida alguma, esse é um momento histórico. Quase uma virada para estabelecermos de vez o Estado Democrático de Direito no País, porque temos uma Constituição cidadã, que garante plena liberdade de expressão e não podemos conviver com dois artigos aberrantes, que não sabemos sequer quem foi o autor. Aliás, quero saber quem redigiu os artigos 20 e 21. Vou tentar descobrir, pois quero muito escrever a biografia dele.”
Fernando Morais, escritor, autor, entre outros títulos, das biografias Chatô – O Rei do Brasil, Olga e O Mago
“Obrigado pelo convite para estar aqui participando dessa festa dedicada ao meu querido ‘irmão caçula’ Audálio Dantas, agora, colecionador de animais domésticos. É uma enorme alegria, e o momento é muito adequado para discutirmos essa questão que o Newton, o Ricardinho e o Paulo, tão bem, falaram antes de mim. Não vou chover no molhado. O que penso, eles já disseram, mas acho importante chamar a atenção para três aspectos. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro para a sociedade que nós, autores, não estamos numa briga corporativa. Não se trata de uma defesa de mercado de trabalho. Até porque, muitos dos escritores que são exclusivamente biógrafos poderiam escrever sobre outros temas. Ninguém aqui está defendendo o leite das crianças. Defendemos, sim, o direito da sociedade brasileira de se informar a seu próprio respeito em todas as áreas: na política, na música, nos esportes, nas artes, no que der na telha do autor. Outra questão que me preocupa é a seguinte: não se trata de um movimento que fere as biografias, mas a produção de conteúdo como um todo. Seja ela feita por jornalistas, por acadêmicos ou por ‘anfíbios’, como é o caso do Paulo César, que é historiador, professor universitário e é jornalista. Se vingar essa proposta medieval do Procure Saber, acabou não só a produção de biografias no Brasil, mas toda a produção de não ficção no País. Aos olhos de Paula Lavigne, nenhum dos quatro livros de Elio Gaspari sobre a ditadura teriam sido publicados. A concentração de preocupação apenas nas biografias limita nossa ação. Em terceiro lugar, parte do drama já está sendo causado. Além da brutalidade que Paulo César, Ruy e tantos outros foram vítimas, já está implantado um estado de censura nas editoras. Hoje, se você leva uma obra para a editora, seja você um best-seller ou um iniciante, antes do editor ler, ele vai dar para o departamento jurídico, para saber se pode ou não pode publicar. E o jurídico está ali para dizer que não pode. Quem está decidindo o que as editoras vão ou não publicar, no universo de não ficção, não são os editores, são os advogados, que estão, ali, policiando a obra, lógico, não para descobrir se ela tem bom conteúdo ou tratamento literário. Estou junto com Paulo nessa luta. A gente podia até fazer uma dupla caipira, para rodar esse Brasil dando cacete no Procure Saber. Estivemos juntos, inclusive, nos últimos três dias, em Fortaleza, no Ceará, no primeiro Festival Internacional de Biografias, e emitimos um documento que vai ser enviado para os ministros do STF e para o presidente da Câmara, deputado federal Henrique Alves (PMBD-RN).” (leia a íntegra da carta)
Discurso do jornalista Sergio Gomes em homenagem à Audálio Dantas na ocasião da entrega do Prêmio Juca Pato
“Uma semana depois da solenidade em que os restos mortais do ex-presidente João Goulart foram transladados para Brasília e recebidos com honra de Chefe de Estado, as vésperas do ano em que se encerrarão os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, é muito significativo que hoje, aqui e agora, estejamos todos celebrando essa conquista do nosso Audálio Dantas, como Intelectual do Ano, por conta desse livro tão esperado. Esse testemunho definitivo de uma personagem da história recente e de fatos, desencadeados, que mudaram a história e apressaram a conquista da democracia no Brasil, nos coloca, hoje, frente aos intrincados desafios de conquistar, finalmente, a justiça social e a liquidação da truculência policial contra os pobres e a juventude reivindicante.”
Discurso proferido por Audálio Dantas na entrega do Prêmio Juca Pato
“Tenho recebido, nos últimos dias, centenas de mensagens de congratulações pelos prêmios com que fui distinguido. Dois de uma vez, o Jabuti e o Juca Pato, os dois prêmios literários mais importantes do País. Confesso, no primeiro momento encolhi-me, perguntei-me se merecia tanto, mas as manifestações recebidas foram, aos poucos, me convencendo de que algum merecimento havia. Uma dessas mensagens, especialmente, me ajudou a chegar aqui um tanto convencido. Veio de Marco Antonio Rocha, companheiro jornalista, editorialista de O Estado de S. Paulo: ‘Você é a ponte-viva entre os jornalismos brasileiros antigo e moderno. Atravessou-a sem tisnar minimamente sua consciência e sua técnica do ofício’. Marco Antonio disse tudo isso e concluiu dando uma força ainda maior: ‘Aconselho eu, receba esses prêmios com a maior falta de modéstia possível, pois são altamente merecidos, numa época em que o imerecimento campeia e na qual triunfam nulidades’. De Zuenir Ventura, meu velho companheiro de O Cruzeiro, assinado Zu, chegou outro recado: ‘Audálio, você já teria ganho o Jabuti da categoria, se ele houvesse, como ‘Nosso Líder’, naqueles tenebrosos dias. Agora ganhou como repórter. Parabéns, meu ídolo’. Não é para entrar numa crise de falta de modéstia? Nem fiquei encabulado, quando um amigo gozador topou comigo na padaria e disse: ‘E aí tartaruga emplumada!’. Apanhado de surpresa, demorei um pouco a entender que ele se referia ao Jabuti e ao Juca Pato. E, assim, cheguei aqui com o mínimo de modéstia possível… Representante do povo, Juca Pato foi também escolhido para representar o escritor brasileiro: mal pago, inconformado, embora, insistentemente produtivo. E é isso que devem fazer nossos companheiros biógrafos: ser insistentemente produtivos, a despeito das investidas contra a liberdade de expressão. Devo este prêmio a luta que foi de muitos e também foi minha. Dedico esse prêmio à memória de Vlado, e de centenas de outros brasileiros, entre os quais, jornalistas que, antes dele, morreram lutando pela liberdade. A luta do homem pela justiça, como foi a luta do Juca Pato, deve continuar. Muitos dos meus contemporâneos, entre os que lutaram contra a opressão, protestando contra o assassinato de opositores do regime, deram-se por satisfeitos com o fim da violência da ditadura militar. Mas, hoje, muitos também se esquecem, ou não querem saber, dos crimes praticados sobre a democracia que a tão duras penas conquistamos. As vítimas de hoje são os pobres, os negros que sobrevivem nas favelas, nas periferias das grandes cidades, ou dos campos, aonde prevalece a violência dos senhores de terra. Fecham-se os olhos e tampam-se os ouvidos para a tortura e a morte que continua em delegacias de polícia, em falsos confrontos nas ruas, ou nas veredas ignoradas do campo. Disse essas mesmas palavras, ou parecidas com elas, há alguns anos, na entrega do Prêmio Vladmir Herzog, na presença da, então, Chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ela me ouviu e disse: ‘São verdades esses fatos, Audálio, mas as coisas não se resolvem, assim, de uma hora para outra’. Também sei que é assim, mas elas tem de começar a serem resolvidas. A responsabilidade é daqueles que ocupam cargos no Poder Legislativo, no Poder Judiciário, que nem sempre está ao lado do povo, e no Poder Executivo, que tem o dever de promover a solução de questões graves de desrespeito aos direitos humanos em nosso regime democrático. Amarildo, não é apenas nome de uma vítima. É o símbolo de uma violência impune, graças à essa nossa consciência acomodada. Obrigado!”
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