[30 de 100] A tirania paterna, segundo Charles Bukowski

022Embora amparado na ficção, toda a vida do escritor Charles Bukowski (1920-1994) serviu para alimentar seus poemas, novelas e romances. Mas três volumes, em especial, foram mais diretos e cobriram parte significativa de sua existência: “Cartas na Rua” (1971), “Factótum” (1975) e “Misto Quente” (1982). A trilogia abrange, em ordem inversa, infância/adolescência, juventude e vida adulta. O último, em especial, tem o sentido de ser um romance de formação que ajuda, e muito, ao tratar da turbulenta relação com seu pai, a se compreender a vida conturbada e de excessos que ele viria a cometer. “Misto Quente” é um grande livro que foge aos clichês que o próprio Bukowski criou em trabalhos que o consagraram como autor marginal e cult, como “Mulheres”, “Pulp” e “Hollywood”, entre outros.

Em síntese, estão lá as sensações que se tornaram sua marca registrada, como repulsa, nojo, ódio, amor, paixão e melancolia. Não por acaso, portanto, que o jornal alemão “Die Waltmoche”, de Zurique, observou que o romance poderia se tornar para os anos de 1980, quando foi lançado, o que foi “O Apanhador no Campo de Centeio” para a América na década de 1950. Ou seja, o livro mitológico de uma geração – como aconteceu no Brasil na década de 1980 com “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva. A previsão não se concretizou, mas nem por isso o livro de Bukowski perdeu sua força e vigor. Ou relevância. Apenas não conseguiu alcançar a popularidade que merecia, pois o mais surpreendente livro do escritor é também sua obra mais confessional, mais sincera. 

Além de ser a mais impressionante e tocante. Bukowski usa recursos literários para mostrar como foi, de verdade, uma criança atormentada por um pai extremamente autoritário e frustrado, que descontava os seus problemas espancando ou impondo castigos absurdos a seu único filho pelos motivos mais fúteis. Piorou na adolescência, quando a autoestima do futuro escritor chegou ao fundo do buraco, agravada por ele ter o rosto e toda a parte superior do corpo literalmente tomada por espinhas, acnes e todo tipo de inflamação comum nessa idade. No seu caso, porém, era tão grave que foi obrigado a se submeter a tratamentos médicos no hospital público de sua cidade. Na escola, o terror doméstico fez dele uma pessoa retraída, de poucos amigos. Era sempre o penúltimo a ser escolhido para o time de beisebol. Até descobrir, às raias do desespero, duas coisas que o ajudaram a tornar a sua vida suportável: o álcool e os livros.

Talvez o escritor alemão naturalizado americano nunca tenha sido tão corajoso ao retratar a relação odiosa entre pai e filho. Claustrofóbica, a trama é uma boa sugestão para os críticos arrogantes que torcem o nariz para o valor literário da obra de Bukowski, que deve ser respeitado também como um grande poeta social e político da vida americana – seus discursos demolidores e de uma lucidez e independência acima da média estão no indispensável volume “Notas de um Velho Safado”. A abertura de “Misto Quente” é arrebatadora e exemplar, pois dá o tom do que se segue até a última página. “A primeira coisa que me lembro é de estar debaixo de alguma coisa. Era uma mesa, eu via a perna da mesa, via as pernas das pessoas e uma parte da toalha pendendo. Estava escuro lá dentro e eu gostava de ficar lá. Ninguém parecia saber que eu estava ali”.

A intenção de desabafo e ironia mostra-se  clara quando se lê que ele dedica o livro “a todos os pais”. Ao revelar sua torturante luta para sobreviver à perseguição paterna na América das décadas de 1920 e 1930, Bukowski desmistifica o ideal de vida americana, criado para vender um estilo de vida familiar exemplar e feliz, mesmo com o longo período de pobreza que se seguiu à quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929. É um Henry Chinaski – alterego que consagrou o escritor em diversos romances – como o leitor não está acostumado a ver, longe de garrafas de vinhos baratos e prostitutas decadentes. “Tudo que um garoto precisava era de uma chance. Alguém estava sempre controlando quem teria uma oportunidade e quem não teria”. Filho único, Henry cresceu se sentindo insignificante. “Havia confusão na minha casa, muitas brigas entre meu pai e minha mãe e, como conseqüência, eles praticamente se esqueciam de mim”.

Bukowski sabia ser genial, com sua famosa ironia para ver a vida: “Me levantei e saí. Comecei a andar pela casa. Portanto, era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas. Seria fácil para mim. Olhei em volta. Juan e seu amigo não estavam me seguindo. As coisas estavam melhorando”. Mais do que servir de munição para seus críticos reduzirem a literatura desse escritor nada convencional, que nunca seguiu ou adotou escolas, correntes e tendências, em “Misto Quente”, a veia de querer chocar está mais presente que nunca. Mas é outro escritor que conduz essa narrativa, marcada por um estilo direto para contar uma história em que um autor maduro troca o palavreado chulo pela sutileza de convencer o leitor a mergulhar num mundo comum, marco pela neurose e a quase loucura.

Terno, cruel, emocionante, inesquecível, solitário, carente. Nesse romance perturbador, Bukowski é tudo isso. E não precisaria ter escrito outros livros para se consagrar além de “Misto Quente”. Felizmente, não foi o que aconteceu.


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