Onde está Tony

“Quem é o cavaleiro que vem lá de Aruanda?/ É Oxóssi em seu cavalo, com seu chapéu de banda/Vem de Aruanda uê/Vem de Aruanda uá/Vem de Aruanda uê/Vem de Aruanda uá.” Difícil alguém com mais de 40 anos que não tenha ouvido esses versos. Gravada em 1973 por Ronnie Von, “Cavaleiro de Aruanda” vendeu mais de dois milhões de cópias e virou um dos pontos de umbanda mais famosos do País. Todo mundo se surpreende, porém, quando se descobre o autor da música. É um argentino, o guitarrista Tony Osanah, 60 anos, ex-Beat Boys, o grupo de cabeludos com suas guitarras elétricas que acompanhou Caetano Veloso em “Alegria, Alegria”, no festival da TV Record de 1968. Depois, ele fez músicas para Elis Regina e Roberto Carlos e tocou com Gilberto Gil, Tim Maia e Raul Seixas, entre outros.

Ex-hippie e ex-Hare Krishna, o portenho Osanah não tinha qualquer familiaridade com temas e personagens das religiões afro-brasileiras quando compôs “Cavaleiro de Aruanda”. Nem noção de quem era Oxóssi, um orixá do candomblé brasileiro. Mas, de repente, em casa, começou a dedilhar o violão e, quatro minutos depois, saiu a música. Isso aconteceu em fevereiro de 1972, após um inesperado encontro na calçada em frente ao antigo prédio do Mappin, na Praça Ramos de Azevedo, centro de São Paulo. Osanah esbarrou em um desconhecido e teve uma surpresa. “O sujeito olhou pra mim e falou que eu precisava de ajuda. Ele parecia um velho índio. Pediu para eu acompanhá-lo e disse que eu nem imaginaria o que ia acontecer na minha vida nos próximos meses”, relembra.
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O homem, um pai-de-santo, o levou para um terreiro. De volta para casa, o músico “recebeu” a letra e a melodia de “Cavaleiro de Aruanda”. “Ela foi psicografada para mim”, acredita. A vida do argentino, a partir daí, sofreu uma reviravolta. “Eu vivia sempre tentando alguma coisa nas gravadoras. Era muito jovem, já casado e despreocupado”, avalia. Daí em diante, fez fama e ganhou dinheiro. Hino a Oxóssi absorvido pela umbanda, a música é muito tocada até hoje. Acaba de ser incluída no disco novo de Ney Matogrosso e foi regravado recentemente pela cantora Rita Ribeiro. Não à toa, seu autor agradece sempre a esse orixá, ligado à produção do conhecimento, à inteligência e à caça. Osanah já tinha um respeitado currículo quando encontrou o pai-de-santo na rua. Brilhou com Caetano em “Alegria, Alegria” e depois em “Soy Loco por Ti América”, uma homenagem a Che Guevara. Havia tocado ainda com Gil na gravação de “Questão de Ordem”. Na jovem guarda, foi parceiro de Ronnie Von, Eduardo Araújo e Antonio Marcos. Para Ronnie cantar, fez especialmente os sucessos “Tranquei a Vida” e “Colher de Chá”. O nome Osanah ele ganhou de Elis Regina. A “Pimentinha” o batizou assim depois de ser presenteada com a canção “Osanah” (mensageiro, em hebraico). Profeticamente, a letra dizia: “Sei para onde vou/Agora eu sei quem sou/Sei do meu caminho/Eu sei com quem eu vou”.

E ele foi em frente. Sempre bem acompanhado, como dizia a canção entregue a Elis. Viveu intensamente as mais diferentes fases da música popular brasileira. Fez para Roberto Carlos “Para ser só minha mulher”, em 1977. Viajou pelo País com Tim Maia e Raul Seixas, acompanhou Valter Franco em festivais e, em fins de 1979, tornou-se um dos vocalistas do Raíces de América, grupo que expressava o sentimento comum latino-americano no período da repressão política em canções de autores como Violeta Parra e Atahualpa Yupanqui. Polivalente, passou por grupos como o Som Nosso de Cada Dia – um dos expoentes do rock progressivo e psicodélico dos anos 1970 -, fez jingles com Zé Rodrix e Renato Teixeira, atuou até em filme de Renato Aragão (Bonga, o Vagabundo). Foi também produtor de uma turnê de Joe Cocker pelo Brasil, em 1976, e tornou-se amigo do lendário BB King (“eu o conheci no Brasil e nos encontramos várias vezes na Europa”).

Sergio Jorge Dizner, seu nome de batismo, aportou no Brasil em 1966. Deixou Buenos Aires naquele momento para fugir da truculenta ditadura argentina. Um ano depois, já tocava no Beco – famosa casa de shows paulistana, dirigida por Abelardo Figueiredo. Ali, conheceu Caetano, Gil e Elis, entre outros. Depois de aventuras e peripécias mil nas ondas do rock e da MPB e já se considerando um brasileiro genuíno, Osanah desencantou-se com a onda de violência e deixou o País em 1989. “Fui assaltado várias vezes. Roubaram minha casa no Itaim (zona sul de São Paulo) e levaram até o cachorro e o botijão de gás”, lamenta.

Rumou para a Europa. Vagou pela Espanha e, na Itália, dirigiu uma casa de shows. Instalou-se em definitivo na Alemanha. Nesse país, passou a se apresentar em bares e casas de jazz. A guinada em sua vida veio quase por acaso, ao tornar-se um ativista social e ajudar jovens presos. Uma assistente social, que acabara de conhecer, o chamou para tocar nas prisões de Wiesbaden e Halfeld, na região de Fulda, a cerca de cem quilômetros de Frankfurt. “Fui lá sem pensar em dinheiro ou receber qualquer coisa.” Rapazes com mais de 17 anos detidos em penitenciárias ao lado de adultos (a lei local permite) pediram a Osanah para ensiná-los a tocar guitarra.

Ele topou o desafio. “Ninguém tem muita paciência com esses jovens. Mas, nessa parceria, saiu até um disco deles, que produzi em 1999”, orgulha-se. Fluente em sete idiomas, Osanah também passou a dar aulas de espanhol na cadeia. E foi adiante. Como além de tocar guitarras sabia fabricá-las, pensou numa proposta ambiciosa. Afinal, já tinha fabricado manualmente guitarras especiais para Roger, líder do grupo de rock Ultraje a Rigor, e para o “Titã” Marcelo Frommer (morto em 2001). Esse ofício de luthier, Osanah aprendera em constantes visitas ao prédio da antiga fábrica de violões Giannini, na Vila Leopoldina, bairro de classe média de São Paulo. Habitué do local, tornou-se amigo do dono, o italiano Giorgio Cohen, e passou a trabalhar na empresa como supervisor de qualidade. “Comecei aí a inventar novos modelos de guitarras”, esnoba o luthier.

Hoje, cerca de 700 jovens alemães e outros 300 adultos absorvem esse conhecimento de Osanah, que deve lançar um disco de blues até o final do ano. Na cadeia juvenil de Wiesbaden, os alunos têm uma marcenaria para produzir suas guitarras. Muitos desses jovens são de origem russa e considerados violentos. Mas mudaram após o contato com a música, garante o novo professor. Ele se emociona ao contar uma história digna de um roteiro cinematográfico. Certa vez, dois desses jovens russos foram encontrados desolados e o motivo, pasmem, é que haviam recebido o alvará de soltura. Chateados, pediram a Osanah que falasse com o diretor da cadeia. Queriam ficar mais dez dias presos. “Eles só queriam sair de lá com as suas guitarras.” O diretor, um alemão forte de olhos azuis e 70 anos, ficou comovido. Em 35 anos de trabalho naquele presídio, afirmou nunca ter visto uma cena daquelas. E cedeu. O caso mereceu um registro histórico no prontuário do presídio. E eles só saíram de lá com o objeto do desejo em mãos.

GRANDES AMIGOS
Osanah coleciona histórias pitorescas ao lado de grandes ídolos. Com Caetano, ele toureou automóveis com o paletó na Rua Augusta, nos idos de 1967. “A gente se divertia”, afirma. “Conheci Caetano e Gil assim que eles chegaram da Bahia. Cantei uma música para o Caetano que eu ouvia na Argentina (“Amanhã”). E a música era dele. Eu não sabia e o Caetano ficou emocionado com isso”, diz.
Com Raul Seixas, a emoção foi maior. Ele chegou a voar num bimotor Bandeirantes pilotado pelo “Maluco Beleza”. A aventura foi numa viagem de Porto Velho (RO) a Itaituba (PA).

E Raul não sabia pilotar. “O piloto era fã dele. Ele simplesmente entregou o avião para o Raul e disse: ‘pega aí que eu quero ver’. E dava as dicas: ‘cuidado, levanta, um pouquinho mais pra cima, acelera’.” A aeronave chegou a cair 400 pés, quando já era possível ver as copas das árvores, conta o argentino. “Aí, o piloto dizia: ‘sobe, sobe um pouquinho mais’. E o Raul então respondia: ‘pô, que negócio arretado esse aqui’.” Osanah viu Gilberto Gil ser preso pela polícia no tempo da repressão, num apartamento dele na Praça da República, quando era hóspede do ex-ministro da Cultura do governo Lula.

De Tim Maia, com quem tocou e viveu próximo nos anos 1970, guarda boas recordações. “Era um cara surpreendente. Certa vez, eu tinha arrumado um emprego numa gravadora. Ele acordava cedo e fazia o café pra mim, pra eu não perder a hora. E dizia: ‘isso é um trabalho de responsa, meu irmão’.” A imprevisibilidade de Tim, já naquela época, era uma marca. Certa vez, Tim estacionou seu carro, um Dodge Charger, na Rua das Palmeiras, no centro de São Paulo, para conversar com Osanah e os músicos Manito (tecladista), Zapata (baixista) e Pedrinho (baterista). “Vocês não querem fazer um show hoje?”, perguntou. “Eu vou cantar três músicas num programa de rádio aqui por perto, volto e a gente vai”, afirmou. Eram cinco horas da tarde. E havia um problema sério: o show era em Friburgo, estado do Rio de Janeiro, às 19h30. “Eu perguntei se o Tim já estava com as passagens da ponte aérea. E ele disse: ‘ô meu irmão, não tem não e eu estou meio sem grana’.” A solução, então, foi alugar uma Kombi. “Fomos todos dentro da Kombi alugada, junto com a aparelhagem. Chegamos à meia-noite e meia. O público ficou esperando cinco horas, com criancinha de colo dormindo”, relembra.


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