O Brasil tem pelo menos três reis declarados pelo povo: Pelé, Roberto Carlos e Luiz Gonzaga. Mas só o último terá, a partir de dezembro, um museu à altura de sua relevância: o Centro Cultural e Museu Cais do Sertão Luiz Gonzaga, em Recife, espaço que combinará a tradição do acervo físico (objetos do artista e da cultura regional) e deslumbrantes intervenções tecnológicas. Localizada no antigo Armazém 10 do Porto, como parte de um projeto maior e mais ambicioso de revitalização do centro antigo da capital pernambucana, a obra tem custo estimado de R$ 97 milhões. Os recursos são bancados pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco e pelo Ministério da Cultura.
O local acabou por despertar uma percepção curiosa dos realizadores: a proximidade com a água retoma a profecia de Antônio Conselheiro, líder rebelde da Guerra de Canudos, na Bahia, de que “um dia o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Assim, a união dos dois elementos inconciliáveis – água e caatinga – ganhará como moldura um dos projetos arquitetônicos mais arrojados em curso no Brasil. A construção leva a assinatura do Brasil Arquitetura, escritório de São Paulo responsável, entre outros, pelo Museu Rodin (BA) e a Praça das Artes (SP). Com os arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci à frente, o Cais do Sertão transformará 7.500 m2 de área construída em uma experiência que seus criadores chamam de imersão na cultura popular nordestina.
A abertura terá duas etapas. A primeira, programada para dezembro, com o museu físico e virtual (um galpão em concreto armado com coberturas metálicas). Mas o prédio, que deverá ser aberto no final de 2014, abrigará um centro cultural com auditório, salas para oficinas, restaurante, café e áreas de ambientação e convivência. Na parte externa, o museu terá uma grande marquise em concreto protendido, com vão livre de 25 m e abertura circular na parte central, onde foi plantada a muda de um juazeiro – musicada por Luiz Gonzaga, a árvore gigantesca é símbolo da resistência à seca.
Na parte interna, o museu foi concebido com um sulco tortuoso escavado no piso, formado por seixos e iluminação especial, que simboliza o rio São Francisco. O traçado divide os espaços temáticos. Uma estrutura metálica em forma elíptica, revestida de chapas de aço, denominada Útero, chamará a atenção por suas dimensões. O espaço terá ainda mezaninos de concreto armado, com vãos livres para exposições e ferramentas tecnológicas para exibição de filmes.
A parede lateral do prédio será composta de cobogós, como são chamadas as caixas pré-moldadas e abertas de 1 m2 para amenizar o calor. No caso, foram criados especialmente para a construção, com linhas livres que representam ao mesmo tempo a renda, a terra trincada e a visão do sertanejo da galhada na caatinga. Estão previstas 2.200 unidades de concreto branco com 220 kg cada. “A marca visual do espaço vai ser esse conjunto de cobogós e pode se tornar um marco na paisagem urbana de Recife”, aposta Ferraz. Segundo ele, até o desenho final, foram quase dois anos de testes para confirmar a funcionalidade da ideia.
O arquiteto conta que a iniciativa de construir o museu foi do então presidente Lula, em 2009. “Pautados por um belo texto de Antonio Risério (antropólogo) do que seria o museu, começamos a trabalhar.” Com a mudança de governo, a obra ficou parada durante um ano, no começo da gestão Dilma Rousseff. Até ser encabeçada pelo governo pernambucano. No desenvolvimento da ideia, observa Ferraz, passou a ser o museu do sertão e Luiz Gonzaga entrou como afirmador do Nordeste. Por outro lado, tudo foi planejado em respeito ao alinhamento do porto. Pessoalmente, Ferraz mergulhou fundo na concepção do museu. Foi à cidade natal do compositor, Exu, duas vezes, leu biografias, conheceu todo o seu cancioneiro. Depois, ele e Fanucci montaram uma equipe com outros 12 arquitetos.
Ferraz destaca também a força do conteúdo interno como ferramenta para causar impactos diversos nos visitantes. Não apenas nos moradores dos estados vizinhos, que devem ter identificação imediata com a sua religiosidade, luta pela terra, história e antropologia, por meio de objetos, documentários, filmes, etc. Mas visitantes de todo o País e do exterior também deverão se impressionar com a quantidade, a qualidade e a intensidade do que ficará exposto em mostras permanentes ou temporárias. “Luiz Gonzaga entra nesse processo como um guia espiritual, como alguém fundamental para a cultura brasileira, porque cantou tudo do sertão em mais de quatro décadas de carreira e em cerca de 700 canções”, ressalta Ferraz.
Para a produção do conteúdo, uma equipe de 30 pessoas foi montada, sob a liderança da diretora de cinema e produtora cultural Isa Grinspum Ferraz, que também trabalhou na concepção do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. No Cais do Sertão, ela fez o plano museológico e curatorial e o acompanhamento da criação e concepção. No momento, ela e seu grupo estão em campo na busca por materiais que simbolizem a cultura regional, como um banco de ambiente familiar, um coxo de animal, um retrato na parede.
Enquanto isso, artistas pernambucanos e de outros estados – como o compositor Tom Zé e o musicólogo José Miguel Wisnik – trabalham em ritmo acelerado em obras exclusivas para o espaço, inclusive na produção de documentários. Profissionais da área digital fazem a recriação do baião utilizando alta tecnologia. O propósito é fundir museografia e arquitetura.
O museu se diferencia de outros de ponta no Brasil, segundo Isa, pela mistura de tecnologia e objetos reais ou criados para o centro. “São muitas linguagens que se completam”, afirma. A meta é fazer um espaço altamente democrático, que agrade a todos.
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