Foto: Eric Brochu |
O crescente grau de histeria que as festas natalinas e as comemorações de final do ano impõem aos habitantes das grandes cidades vem proliferando reações tormentosas diante da forma que teria assumido a celebração do Natal entre nós. Uma rápida busca na internet basta para encontrar expressões de aversão ao que se considera o caráter consumista da festa. Fala-se de “fúria”, “frenesi”, “delírio” de consumo. Em 2006, em sua mensagem de Natal, o papa Bento XVI criticava o “consumismo desenfreado” que ensurdece o “choro que rompe corações daqueles que morrem de fome”.
Essas manifestações parecem ecoar, numa versão contemporânea, um evento que foi manchete em toda a imprensa francesa em torno do Natal de 1951. Depois de meses de indignação diante da “paganização”do dia de Natal, autoridades eclesiásticas de Dijon incitaram a queima de um boneco de Papai Noel diante de um grupo de crianças de orfanato. O “crime” se deu no âmbito de uma acalorada discussão sobre a contínua americanização dos festejos natalinos nos anos que seguiram o final da Segunda Guerra.
Claude Lévi-Strauss faz a respeito desse episódio um brilhante ensaio de antropologia estrutural para o grande público, onde explora os significados do Natal entre nós, mostrando ao mesmo tempo como opera o método estrutural. Não por acaso, a Cosac Naify homenageia o centenário do autor lançando O suplício do Papai Noel, de 1952, ao lado da nova edição de Antropologia estrutural, do mesmo período. De fato, o primeiro pode ser visto como um análogo ao capítulo sobre as organizações dualistas, contido no segundo. Nos dois casos, o autor parte de uma mesma questão: como explicar fenômenos similares presentes em diferentes áreas geográficas? Trata-se de afastar as explicações superficiais, seguir as pistas nos pequenos detalhes, para desvendar, como em um caso policial (para seguir a metáfora do historiador Carlo Ginzburg sobre o método indiciário), “verdades mais profundas”. O caminho percorrido por Lévi-Strauss vai das representações conscientes (os elementos que podem ser explicados por simples difusão, ou seja, historicamente) para o inconsciente, onde se alcança uma explicação a um só tempo mais simples e mais geral para o fenômeno estudado.
A análise da figura de Papai Noel tem início nas manifestações de senso comum que veem nele puro empréstimo dos Estados Unidos. Aos poucos o autor mostra como esse personagem vem associado a inúmeros outros fragmentos provenientes de contextos diversos – a troca de presentes, os pinheiros, as luzes decorativas, as botas na lareira, os cartões – revelando uma matriz arcaica. A árvore de natal, por exemplo, sintetizaria num só objeto a árvore mágica, a luz duradoura e a folhagem persistente, presentes em costumes medievais dispersos. O mesmo pode-se dizer do papel do bom velhinho distribuidor de presentes às crianças, que resultaria da fusão sincrética de várias figuras, como o Bispo dos Tolos, o Julebok escandinavo e São Nicolau.
Mas é a comparação com a figura das katchina dos índios pueblo do sudoeste americano que confere singularidade à análise de Lévi-Strauss. As katchina são personagens fantasiados e mascarados que encarnam deuses e ancestrais e voltam periodicamente às aldeias para punir ou recompensar as crianças. A analogia com o personagem de Papai Noel permite uma reflexão sobre os ritos de iniciação e a função de negociador entre duas classes da população: as crianças e os adultos. Mas o mito pueblo explica que as katchina são almas das primeiras crianças indígenas, são portanto prova da morte e testemunho da vida após a morte. É nessa oposição mais profunda entre vivos e mortos que jaz a explicação estrutural do antropólogo para o sentido do Papai Noel contemporâneo, e que caberá ao leitor descobrir em minúcia no ensaio.
Lévi-Strauss mostra que nos ritos de Papai Noel não estamos diante apenas de vestígios históricos, mas de formas de pensamento. A sobrevivência de costumes antigos não explica sua permanência. A distinção de um ponto de vista histórico de um ponto de vista estrutural é o que permite compreender na atualidade desse personagem a constância do medo da morte em termos de empobrecimento e privação. Diante dessa imagem, o “frenesi” de consumismo que nos exaspera nesta época do ano ganha uma interpretação algo mais profunda: para além do “empréstimo” de uma sociedade capitalista injusta que perdeu seus valores, ele apontaria para a tentativa desesperada de disfarçar nossa verdadeira condição diante de uma vida breve.
*Florencia Ferrari é antropóloga e editora da série de antropologia da Cosac Naify
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