O Rei do Ritmo na terra dos grandes bateristas

1255271262_bossaEdgar Nunes Rocca, o pioneiro Bituca, Edison Machado, Dom Um Romão, Wilson das Neves, Hélcio Milito, Chico Batera, Pascoal Meirelles, Jorge Autuori, Airto Moreira, Toninho Pinheiro, Ronald Mesquita, Rubinho Barsotti, Ivan “Mamão” Conti, e tantos outros. Não restam dúvidas: o Brasil dos anos 1960 e 70 foi prolífico em revelar grandes bateristas. Músicos inventivos e essenciais para reescrever a história do instrumento no País e compor um irresistível jeitinho brasileiro de conduzir pratos, bumbos e tambores. Tradição que teve em Antonio de Souza, ou melhor, Milton Banana, a figura de um desbravador. Acompanhando João Gilberto e Tom Jobim no histórico concerto da bossa nova realizado em Nova York, no Carnegie Hall, Milton fez mais que história. Deu ao instrumento novas possibilidades e estabeleceu rico diálogo entre as tradições rítmicas do samba e a riqueza técnica do jazz.

Naquela noite de 21 de novembro de 1962, em Nova York,arrebatados pela revelação da beleza harmônica das canções interpretadas por João Gilberto, os músicos presentes na plateia – e não eram poucos – também devem ter dado um nó na cabeça ao descobrir o modo peculiar com que Milton construía sua elegante teia percussiva para o baiano e o jovem maestro Tom. Se a João é atribuída paternidade da batida bossa nova ao violão, o mesmo vale para Milton em relação a seu instrumento, visto que, como o baiano, ele propôs um salto de modernidade sem precedentes. Depois deles, aos músicos que lidavam com os dois instrumentos, como diria a bela canção de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, nada seria como antes.

Nascido em 1935, no bairro de São Cristovão, Zona Norte do Rio de Janeiro, aos 20 anos o autodidata Milton Banana (nome artístico sugerido por sua mãe, acrescido da fruta pela qual tinha verdadeira compulsão) começou a tocar bateria profissionalmente na orquestra do maestro Waldir Calmon, que se apresentava regularmente na boate Arpège (ouça Zorra, releitura de Calmon para Pop Corn – With a Feeling, de James Brown). Meses depois, Milton passou a integrar o conjunto dançante da boate Drink, de Djalma Ferreira, também líder do popular Milionários do Ritmo, cujo crooner era o ás do sambalanço, Miltinho (ouça Samba do Drink).

Se as noites na casa de Djalma, situada na divisa do Leme e Copacabana, na Avenida Princesa Isabel, eram dedicadas à dança, na calçada do lado oposto, no Hotel Plaza, uma espécie de “laboratório” da bossa nova funcionava a revelia do grande público. No Hotel Plaza, quem dava as cartas regularmente era o grande Johnny Alf; vez ou outra, um jovem visitante armado de seu violão, chamado João Gilberto, dava canja. Foi no “after-hour” das noites solitárias e esfumaçadas do Plaza, entre uma escapada e outra da boate de Djalma, que Milton começou a trilhar os caminhos que o levaria a “paternidade” da batida bossa nova na bateria.

No final de 1955, após Johnny partir para São Paulo, convidado a liderar o conjunto do novo bar Baiuca, na boemia região central da capital paulistana, Milton passou a integrar o conjunto de Luizinho Eça, outro jovem prodígio do piano que, depois de ser laureado por ninguém menos que o presidente Juscelino Kubitscheck, ganhou bolsa para ir a Europa e foi ter aulas com o maestro dodecafonista H.J. Koellreutter (que viveu longos períodos no Brasil, leia perfil). Ao voltar do Velho Mundo, decidido a abrir mão da formação erudita, Luizinho montou o fundamental Tamba Trio (leia reportagem sobre os bastidores do primeiro disco do combo instrumental).

O grupo liderado por Luizinho no Plaza era da pesadíssima. No contrabaixo, Ed Lincoln, que depois se tornaria célebre em bailes e LP’s ao “pilotar” seu órgão Hammond B-3, com doses cavalares de sambalanço (ouça Cochise); no acordeon, um certo pianista e trombonista acreano chamado João Donato, ex-namorado de Dolores Duran, com quilometragem de sobra em jam-sessions, e um primeiro LP na praça, Chá Dançante; tentando fugir do rótulo limitador de “Princesinha do Baião”, a miúda Claudette Soares assumiu os vocais do grupo e também encontrou ao lado de Luizinho, Ed, Donato e Milton, novos e frutíferos caminhos no bar do Hotel Plaza (veja Claudette interpretar Vivo Sonhando).

Habitué, João Gilberto passou a ser espécie de referência moderna para o local. Afinal, se o baiano, conhecido na Zona Sul carioca por estar renovando estruturas musicais, frequentava religiosamente o bar do hotel é porque ali havia pessoas com visão futurista e interessadas no novo – “gente descolada”, como diria a juventude de hoje. O Plaza passou, então, a aglutinar protagonistas da vanguarda musical carioca naquela última metade dos anos 1950. Foi lá que, acompanhando João Gilberto e Tom Jobim, Milton Banana abriu caminho para tornar-se referência mundial em seu instrumento. No livro Chega de Saudade, Ruy Castro relembra e defende: “João Gilberto não era o único a estar cozinhando ousadias no Plaza. O baterista Milton Banana recebeu permissão para acompanhá-lo, desde que tocasse bem baixinho. Aos poucos, limitando-se a escovinha em cima do pano e a uma baqueta contra o aro da caixa, Banana conseguiu transpor para a bateria Pingüim a mesma batida do violão”. E foi, assim, nas madrugadas boêmias do bar do hotel, na base do improviso, e sob o rigor técnico de João, que nasceu a batida bossa nova na bateria. Entre 1958 e 1959, não por acaso, Milton integraria as gravações dos primeiros compactos de João e do marco-zero da bossa Chega de Saudade (ouça o álbum completo).

No início de 1962, depois de experimentar uma temporada argentina com João, Os Cariocas e Badden Powell na boate 686, em Buenos Aires (e despertar enorme admiração no grande Astor Piazzolla, presença constante em seus shows), de volta ao Brasil, Milton integraria as gravações de Muito A Vontade, um dos clássicos da extensa discografia de João Donato (ouça a faixa título e Vamos Nessa). Ao lado de João Gilberto, Tom e d’Os Cariocas, o baterista participou também de outro momento divisor para a música popular do País, a temporada de shows Um Encontro – Milton fechou a cozinha com o baixista Octavio Bailly Jr, que depois integraria o Bossa Três de Luis Carlos Vinhas, com a saída do primeiro baterista, o grande Edison Machado. Produzido por Aloysio de Oliveira no nightclub Au Bon Gourmet, o show Um Encontro revelou ao Brasil a faceta de cantor do poeta e diplomata Vinicius de Moraes (ouça a íntegra do álbum lançado pela Elenco). O espetáculo foi também a primeira e última ocasião em que Tom, João e Vinicius dividiram um mesmo palco.

Se os últimos dias de 1962 foram marcados pelo histórico concerto no Carnegie Hall e uma fossa terrível – Milton namorava, à época, a cantora Elza Soares, que o deixou para ficar com Mané Garrincha, ironicamente, o maior craque do seu time do coração, o Botafogo –, o ano seguinte seria de conquistas ainda maiores para ele. Além de integrar, em Nova York, as gravações de Getz/Gilberto, LP que tornou a bossa nova cultuada no mundo todo (leia reportagem exclusiva de Ruy Castro para a Brasileiros sobre os bastidores do disco de João Gilberto e Stan Getz), acompanhando João, o baterista fez uma temporada de três meses no Bussoloto, clube anexo à imponente casa de shows La Bussola, na cidade de Vaireggio, no Sul da Itália. A incrível banda de João também integrava Tião Neto (que apesar de vergonhosamente não ter sido creditado, foi o baixista de Getz/Gilberto) e João Donato, que aceitou convite do baiano e partiu com ele, de Nova York para a Itália. Na mesma ocasião em que os brasileiros fizeram sua temporada, o “Rei do Twist”, Chubb Checker, fez vários shows no La Bussola. Reza a lenda, não perdia uma apresentação de João e seu conjunto.

Tião Neto, Tom Jobim, Stan Getz, João Gilberto e Milton Banana, em 1963, durante as gravações de "Getz/Gilberto" (foto: Verve Records)
Tião Neto, Tom Jobim, Stan Getz, João Gilberto e Milton Banana, em 1963, durante as gravações de “Getz/Gilberto” (foto: Verve Records)

Mas o grande feito de Milton, em 1963, foi mesmo o lançamento de seu primeiro disco solo, O Ritmo e o Som da Bossa Nova. Dando conta da importância do músico, a gravadora Audio Fidelity deu ao álbum o solene sub-título Apresentando Milton Banana, o Maior Baterista da Bossa Nova, com o conjunto de Oscar Castro Neves (parte da história do selo americano do produtor Sidney Frey foi contada em texto de Quintessência que trata dos bastidores do primeiro álbum do Sambalanço Trio, lançado pela Audio Fidelity, confira).

O álbum é composto de 12 temas instrumentais. A maioria deles standards da bossa nova, como Você e Eu, Desafinado, Samba de Uma Nota Só, Chega de Saudade e Influência do Jazz. Além dessas cinco unanimidades, não menos importantes, outros sete temas: de João Roberto Kelly, Boato; de Pernambuco e Antonio Maria, O Amor e a Rosa; de Dé Rosa e Vera Brasil, O Menino Desce o Morro; de Luiz Bandeira e Luiz Antonio, O Apito no Samba; de Oscar Castro Neves (morto em setembro deste ano, em Los Angeles, vitimado por um câncer), Bossa Nova Blues, Não Faz Assim e Chora Tua Tristeza (esta em parceria com Luvercy Fiorini). Dão auxílio luxuoso e acabamento requintado ao disco de estreia do baterista os seguintes músicos: o irmão de Oscar (multi-instrumentista que nele toca piano), Iko Castro Neves (contrabaixo), Roberto Pontes Dias (percussão), e os americanos Leo Wright (sax alto e flauta) e Henry Percy Wilcox (guitarra).

Lançado pela filial paulistana da Audio Fidelity, sediada na Rua Rego Freitas, no coração da cidade, O Ritmo e o Som da Bossa Nova seria sucedido por uma série de discos gravados em São Paulo com um novo conjunto, o Milton Banana Trio, formado pelo baterista, o pianista Wanderley e o baixista Guará (ouça a íntegra de Balançando Vol. 1, de 1966, e de O Trio, de 1968). 

Entre 1965 e 1979, Milton lançou nada menos que 13 álbuns autorais. Nos anos 1980, voltaria a morar no Rio e lançaria LP’s dedicados ao repertório dos amigos Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes. Em 1992, o diabetes levou Milton a desenvolver graves problemas circulatórios. Sete anos mais tarde, em abril de 1999, ele teve parte da perna direita amputada. Mesmo assim, não deixou o instrumento, como atesta esse emocionante vídeo que flagra sua última apresentação). Em 15 de maio daquele ano, extremamente debilitado e vivendo severas privações financeiras, Milton Banana morreu aos 64 nos, vitimado por um infarto fulminante. Tom Jobim jamais revelou tal fato em vida, mas amigos próximos garantem que foi o maestro quem manteve por anos as despesas fixas do baterista, incluindo-se aí, o aluguel de seu diminuto apartamento em Copacabana. No velório do pai da bateria bossa nova, entre inúmeras coroas de flores, uma delas se destacava pela dedicatória: “À Milton, a quem o Brasil não homenageou, nem conheceu nunca. Ass.: Todos os músicos do Brasil”. Lógico, ele jamais surgiria em público ou daria uma entrevista para confirmar, mas o belo tributo a Milton Banana, diversas fontes garantem, foi cortesia do amigo João Gilberto.  

Ouça a íntegra de O Ritmo e o Som da Bossa Nova

 Boas audições e até a próxima Quintessência!


Comentários

Uma resposta para “O Rei do Ritmo na terra dos grandes bateristas”

  1. Avatar de Renato Felipe Santos do Couto
    Renato Felipe Santos do Couto

    Há dezoito anos atrás, vasculhando os LP’s de uma tia, descobri um LP de um Trio de Bossa/Jazz chamado Milton Banana Trio. Chamou a atenção o fato do líder ser o baterista pois no geral eram os pianistas. Levei o disco pra casa num dia qualquer de 1996. Daí pra cá nunca mais parei de ouvir Milton Banana. Virou um vício. Hoje é meu exemplo de baterista, o que eu sempre aponto como predileto e inspirador. Sua bateria quente e crua virou minha cabeça. Seu ritmo impecável vai até o fim comigo e este mesmo ritmo é o que eu tento nas minhas execuções como baterista. E devo a Milton a escolha definitiva pelo instrumento. Sua arte me inspira, encanta e embriaga.

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