Uma brasileira no topo do mundo

No extremo norte das Américas o tempo adquire um valor diferente. Um lugar onde o dia pode durar seis meses e a noite deixa escuros os outros seis. Um lugar de grandes silêncios. O Alasca esconde entre as montanhas cobertas de neve segredos raros só revelados a quem se arrisca em temperaturas que chegam a 40 graus negativos no inverno. Tudo parece inóspito, mas transborda vida. No verão, “agradáveis” 9 graus seduzem os turistas do mundo todo. Porém, viver ali é um desafio além da imaginação. O maior estado dos Estados Unidos tem apenas 626 mil habitantes e quase a metade mora em Anchorage.

Entre os bravos habitantes está uma mulher de sorriso farto e fácil, de inglês perfeito e sangue brasileiríssimo. Josy Bevington nasceu Josileyde, filha de um engenheiro e uma jornalista do Rio de Janeiro, há 42 anos. Cresceu nas praias cariocas, sob o sol escaldante e embalada pela bossa nova. Com um brasileiro teve a primeira filha. Casou-se depois com um descendente de alemães e encomendou um menino. Separada do marido, conheceu e se apaixonou por um rapaz americano deslumbrado com as maravilhas do Brasil e da gente da terra. De mala, cuia e filhos, Josy abandonou o curso de direito e aceitou começar nova vida nos Estados Unidos. Isso foi há 10 anos.
[nggallery id=15557]

No estado do Colorado descobriu o verdadeiro talento: nascera para vender. Tem o tom de voz afinado, o poder de convencimento, a lábia dos que sabem seduzir o freguês. Entrou em uma faculdade para aprender as leis do país e debruçou-se sobre os livros meses a fio. Tornou-se realtor – corretora de imóveis. “Meu inglês era ruim, mas minha energia era boa. Ninguém conseguia resistir. Mais do que vender, eu procurava sentir o que o cliente precisava”, diz ela. O resultado de tamanho empenho apareceu rápido: Josy passou a vender muitas casas e a ganhar mais do que o marido. Era o começo do fim. “Ele não aceitava que eu fizesse mais dinheiro. Eu tinha muitos amigos, sou uma pessoa alegre. Com ciúmes, ele resolveu me tirar de lá. Mudamos para o Alasca.”

No fim do mundo
Choques culturais nunca amedrontaram essa mulher com vocação nômade. Já os ambientais são fardos mais pesados para se carregar. Em Anchorage, na estação fria, o sol nasce enevoado e fraco às 11 horas da manhã e se esconde duas horas depois, transformando os dias em noites prolongadas. É a chamada darkness, ou noite eterna. Fã de praia, descobriu-se deprimida sem luz. O corpo esguio de Josy ganhou 30 quilos. “Nos primeiros dois anos o espírito jovem me mantinha alegre, depois, perdi minha identidade.” Para tentar vencer a depressão comum entre os forasteiros, ela voltou a estudar. Conseguiu a licença para vender imóveis no Alasca e, no primeiro mês de trabalho, teve outra dor. Foi abandonada pelo marido, que a deixou sem casa, carro, dinheiro, comida.

Josy precisou reinventar-se. Junto com os filhos, foi abrigada pela família de um pastor da igreja que freqüentam. Ele assumiu as despesas enquanto a brasileira enfrentava meses árduos e uma jornada dupla: de tailleur e salto alto vendia casas durante o dia e, de chinelos, limpava casas à noite. Em um ano ela ganhou US$ 115 mil na venda de 14 propriedades e na faxina de outras tantas. Era maravilhosa a sensação de vencer sozinha em terra estrangeira, mas o corpo cobrou dela os excessos. Em 2006 Josy foi parar no hospital, vítima de colapso físico e mental. As rédeas da casa foram tomadas pela filha Stephanie, na época com 20 anos. Ela passou a cuidar do irmão e a pagar as contas com o seu salário de acompanhante de idosos. Assim que se restabeleceu, Josy tornou-se rigorosa com a alimentação e remédios. Por ordem médica, passou a fazer tratamento com luz artificial (como aquelas das máquinas de bronzeamento), estratégia muito usada pela população local para substituir o sol e metabolizar as vitaminas durante o inverno. Além disso, fez do caderno, confidente. Lápis e papel na mão, a corretora escreveu a própria história e os sonhos – alguns já realizados. A brasileira é hoje sócia de uma importante firma imobiliária do Alasca. Tem um escritório com vista para as montanhas Chugach, comprou uma casa confortável, um carro novo. Aprendeu sozinha a falar espanhol, estuda francês e foi contratada pelo Tribunal de Justiça do estado para ser tradutora. É voluntária do serviço social oferecido pela igreja, a mesma freqüentada pela candidata republicana à vice-presidência dos Estados Unidos, Sarah Palin, “o carisma em pessoa, baby“, garante Josy.

A CIDADE DE SARAH PALIN
Os povos Inuit do Alasca dizem que o mundo não se abre para as mulheres. A governadora Sarah Palin tenta mudar a máxima local. Wasilla, a cerca de 70 quilômetros de Anchorage, transformou-se quando foi governada pela agora candidata à vice-presidência dos EUA. O pequeno município de cinco mil habitantes nem aparecia em alguns mapas; só tinha a oferecer a pesca farta de salmão e a beleza estonteante das montanhas cobertas de gelo, das árvores amareladas com o cair do outono. Durante o mandato de Sarah Palin instalaram-se na cidade grandes redes de fast food, supermercados e lojas. A população cresceu com o progresso. São hoje cerca de 15 mil pessoas, nem todas partidárias da governadora. Adesivos e camisetas com o nome de Barack Obama são encontrados com facilidade. Revistas e jornais defendendo que o Alasca se torne um país independente dos EUA, também.

Caçando clientes
Como 80% dos clientes interessados em imóveis no Alasca são estrangeiros, a corretora faz das belezas naturais da região, cortada pelo Círculo Polar Ártico, suas aliadas. Faz questão de apresentá-los ao “Alasca selvagem”. Leva os potenciais compradores para a mata, escala montanhas no estado que já pertenceu à Rússia e foi comprado pelo governo dos Estados Unidos no século XIX pela bagatela de US$ 7 milhões. Durante muitas décadas os americanos pouco se importaram com as terras dos esquimós. Hoje, saem dali 30% do petróleo que abastece o país. O óleo é retirado de Prudhoe Bay, no Oceano Ártico, e transportado até Valdez, no Golfo do Alasca, por um oleoduto de 1.300 quilômetros. Nos próximos 10 anos, a tubulação, construída na década de 1970, será refeita. “O Alasca vai tornar-se uma mina de ouro. Muitos engenheiros, professores, médicos terão de se mudar para cá para garantir estrutura para as famílias durante as obras”, profetiza ela. É a chance que Josy aguarda para encerrar um ciclo no distante topo do mundo. Ela planeja vender muitas casas, aumentar a pilha de dólares para voltar às origens e realizar outro sonho: construir no Brasil uma instituição com abrigo e ensino profissionalizante para menores abandonados. Josy quer ser de novo Josileyde. Espera fincar os pés descalços na areia de alguma praia do litoral fluminense e sentir a luz natural do sol dourar sua pele o ano inteiro.

SATISFAÇÃO GARANTIDA
Viajar pelo Alasca exige perseverança. O biólogo Rogério de Paula – fotógrafo da expedição – e eu embarcamos de São Paulo para a Flórida e, de lá, rumo a Anchorage. Da maior cidade do estado, seguimos de barco para ver os fiordes e geleiras do Mar de Bering, no extremo norte do Pacífico. Depois, de carro até a “última fronteira”: Prudhoe Bay, no Oceano Ártico, onde fica o campo de extração de petróleo do governo americano. Cada trecho dos mais de três mil quilômetros percorridos é de tirar o fôlego. Cada curva de estrada vale a pena. Todo o cansaço passa despercebido quando o céu se pinta de verde, azul e lilás na dança luminosa da Aurora Boreal. Cruzam nosso caminho animais selvagens, simpáticos vilarejos, gente simples e calorosa – apesar do frio de sete graus negativos. Frio, para nós. No vocabulário das tribos do Alasca a palavra “frio” não existe. Nunca houve calor…


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.