Bento, 60, aposentado: calouro da USP

Faz tempo que não tinha uma história tão boa para contar aqui no Balaio, que anda meio pesado e tumultuado nestes últimos dias.

O texto não é meu, nem a bela história de vida, fé e superação que vocês lerão a seguir.

É do meu amigo Bento Bravo, colega de academia de ginástica, sexagenário e aposentado como eu, que não tinha segundo grau completo e, depois de uma bem sucedida carreira de executivo, resolveu ralar durante todo o ano passado, voltando a estudar para começar tudo de novo.

Esta semana, Bento ficou sabendo que foi aprovado no curso de Letras da USP. Como ele diz no final do seu emocionado e emocionante texto, “espero que este breve depoimento possa ajudar pessoas que, como eu, decidiram parar de trabalhar, mas não querem parar de viver”. Pela amostra, ele tem tudo para se tornar também um bem sucedido homem de Letras.

Segue a mensagem que ele mandou, a meu pedido, para os leitores do Balaio, nesta tarde de sábado de muita chuva:

Prezado Ricardo:

Às vésperas de me tornar oficialmente um calouro, e um sexagenário, queria dividir com os amigos do Balaio o meu contentamento pela aprovação no vestibular da Fuvest.

Quero agradecer novamente o carinho e a torcida dos amigos, como você e a Mara, que acreditam que existem alternativas reais para pessoas da nossa geração continuarem a tocar o barco. Sim, companheiros, existe vida fora do mercado de trabalho convencional!

Há pouco mais de um ano, estávamos eu e a Raquel, minha esposa, retornando de Jaborandi (pequena cidade do interior de São Paulo, próxima a Barretos), dias após o Natal de 2007 quando, tendo já decidido há alguns meses sacramentar o inevitável – a minha aposentadoria -, começamos a analisar as possibilidades para alguém como eu, às portas dos 59 anos de idade, com a situação financeira relativamente equacionada e prestes a se tornar mais um “Jaques”.

Após decidirmos no carro o meu retorno aos estudos, e me recordo bem que estávamos na Anhanguera, na altura de Ribeirão Preto, lembramos de que ainda havia um obstáculo pela frente. Eu havia abandonado, sem mais nem por quê, o último ano de colégio, faltando apenas duas provas para concluir o curso Técnico de Química Industrial no Oswaldo Cruz, em 1968.

Naquela época, já trabalhava e começava a me destacar na empresa, e era algo absolutamente comum para jovens de classe média pensar em fazer carreira mesmo sem um diploma universitário – coisa impensável hoje, mas possível naquele tempo.

De repente, ainda jovem, trabalhava em uma das maiores multinacionais do mundo. De promoção em promoção, fui assumindo postos de direção cada vez mais altos e o sonho de uma universidade, naquela altura desnecessário, simplesmente se esvaneceu Mas não morreu.

Quando resolvi retomar os meus planos de estudo percebi que tinha que voltar um pouco mais atrás para poder seguir em frente. Antes antes mesmo de pensar em ingressar numa universidade, eu precisaria me livrar daquelas matérias do colégio para obter o diploma do segundo grau, o atual Ensino Médio.

Revendo o histórico escolar daquela época, observamos duas pendências: Matemática e Química Inorgânica – esta última não constava mais na grade curricular atual e, em contrapartida, foi incluída Geografia.

Arrepiava-me a idéia de enfrentar um ano de colégio por conta de duas matérias e, de quebra, ainda ter que usar uniforme junto com um bando de “pirralhos” Isto quase me fez desistir de retornar aos estudos.

Por sorte, conversando com a direção do Oswaldo Cruz, foi levantada a possibilidade de cursar apenas as disciplinas pendentes numa escola de ensino a distância, e foi o que fiz. Em janeiro de 2008 já estava matriculado e metendo a cabeça nos estudos.

Agora você imagine a cena: após 40 anos, ter que voltar a “relembrar” as regras da Matemática e, de quebra, Geografia. A solução foi, além das aulas virtuais, e a internet, que ajuda demais, contratarmos um professor particular de Matemática.

Eu, que sempre fui ótimo em matemática intuitiva, fundamental para quem negocia, tinha que voltar a ser apresentado para alguns distintos cavalheiros como Pitágoras, Báskara e Thales.

Foram 3 meses de muito “malho”. Em meados de abril, fiz os exames presenciais, conseguindo notas que me deixaram bastante animado para o passo seguinte: 8,5 em Matemática e 9,5 em Geografia.

O grande empecilho havia sido superado e, de olho no vestibular, começamos a procurar um cursinho. Comecei em maio, nas famosas turmas de maio, um semi-extensivo que acelera em maio e junho para, no segundo semestre, entrar alinhado com as turmas do extensivo, que começa em fevereiro, no Objetivo da Paulista, no período da tarde.

Escolhi o Objetivo por uma razão muito simples. Morando na Oscar Freire, não assumo nenhum tipo de compromisso que me obrigue, de forma sistemática, a pegar o carro e me meter no trânsito de São Paulo. De casa até o Objetivo, é uma caminhada de 35 minutos.

Como dizem os americanos, “piece of cake”: oito meses de ótimas aulas, com grandes professores e, como bônus, saudáveis caminhadas.

Nesse ponto da narrativa, é importante mencionar que um cara da nossa idade, quando se mete a conviver com a garotada numa sala de aula, tem que ter em mente algumas verdades.

A primeira é que somos um ponto fora da curva. Aquilo _ o cursinho _ foi pensado para receber jovens e tudo o que isso significa. E a segunda, e mais difícil, é que você tem que deixar do lado de fora da sala de aula a “sabedoria” que você pensa que tem.

Você está ali, única e exclusivamente, para aprender a responder o que a Fuvest perguntar, do jeito que a Fuvest entende que seja a resposta certa.

Vou dar apenas um exemplo: o período da Ditadura Militar. Nossa geração foi testemunha ocular daquele lamentável período da História recente do Brasil. A tentação de dar “pitacos” nas aulas era enorme, mas logo descobri que existem diferentes ângulos de abordagem e análise para as diversas situações havidas e nem todas coincidiam com aquilo que eu achava que, de fato, havia acontecido.

Enfim, Ricardo, após um ano de muito estudo, muitas dúvidas e incertezas, ondas de desânimo (o que eu estou fazendo aqui?) e algumas tentações – propostas de trabalho – chegou o final de 2008 e com ele a temível hora da verdade: o vestibular.

Embora tenha prestado também em outras universidades, meu foco era a USP. E não faltavam os inevitáveis alertas pessimistas: “É muito difícil”; “Se passar da 1ª fase já é uma vitória”; “Se não der este ano, sempre poderá tentar novamente”

Ao chegar para fazer a prova da primeira fase, já tomei um choque. Era um mar de jovens, com os respectivos pais, tomando toda a rua e adjacências. No ar, aquele clima de final de Copa do Mundo. Risadas nervosas, olhares desconfiados. Afinal, estão todos concorrendo para o mesmo objetivo.

Dentro da sala, você poderia cortar o ar com uma faca. Para quem não sabe, vão para a primeira fase, aproximadamente 140.000 vestibulandos. Apenas 35.000 passarão para a fase seguinte. Ou seja, não é mole, não

Dificilmente esquecerei aquele domingo. Não só porque senti que fui bem na prova – e naquela mesma noite, após conferir o gabarito, já tive a certeza de que havia passado para a segunda fase – mas porque, na saída, parando num bar na Liberdade, vi o nosso querido São Paulo bater o Vasco por 2 a 1 e, praticamente, sacramentar o Hexa/Tri.

Bem, o próximo passo seria a preparação para a segunda fase que aconteceria cinco semanas mais tarde, mas com uma pequena – e fundamental – diferença: seriam apenas três matérias. No meu caso, Português, História e Geografia, mas com questões dissertativas e não mais com respostas em múltipla escolha.

Isto significa apenas uma coisa: ou você sabe, ou dança. Não dá pra chutar.

Pela primeira vez na vida, passei o Natal e o Ano Novo estudando, especialmente Literatura. Português tem peso duplo, vale 80 pontos, contra 40 de Geografia e 40 de História.

Para falar a verdade, foi uma delícia. Revisitei Graciliano Ramos (Vidas Secas), Machadão (Dom Casmurro), uma máquina lingüística chamada Guimarães Rosa (Sagarana) e, para mim, uma novidade esplendorosa, o Teatro de Gil Vicente. Eu pensava “Eles acham que estou estudando mas estou me divertindo”.

E veio a temida segunda fase da Fuvest. Para todas as carreiras, o jogo agora estava zerado. Independentemente do número de vagas disponíveis, havia três vestibulandos – e se foram para a segunda fase é porque eram bons – lutando por uma vaga. Éramos 35.000 candidatos para 10.000 vagas.

Bem, apenas para ser breve. Foram três dias de provas e, à medida que elas iam caindo na minha mão, aumentava a certeza de que o sonho universitário estava próximo.

Sem falsa modéstia, ao terminar a última delas, a de Geografia, saí do colégio leve, com a alma lavada. Ao entrar no carro (tive que abrir esta exceção) fiquei, por dez minutos, paralisado, com a chave no contato, sem conseguir dar a partida.

Chorei, de soluçar, me lembrando do duro caminho até ali e das pessoas que tornaram aquilo possível. Minha falecida mãe, dona Odette, meu pai, minhas irmãs, meus cunhados, meus filhos, meus netos, meus amigos e, claro, a grande parceira e inspiradora desta jornada, minha amada Raquel.

E quando, nesta quarta-feira passada, após uma noite insone, de grandes expectativas, incluindo uma espera angustiosa, a Raquel veio gritando e chorando na minha direção com o resultado final publicado na internet, abraçado a ela eu sabia que não havia apenas entrado na USP. Eu havia viabilizado o meu futuro.

Um grande abraço, Ricardo. Espero que este breve depoimento possa ajudar pessoas que, como eu, decidiram parar de trabalhar mas não querem parar de viver, possam “pensar” em opções, não necessariamente remuneradas, que as mantenham ativas e, por que não, rejuvenescidas para novos desafios que a vida sempre nos trás.


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